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quarta-feira, novembro 29, 2006

Os Mutantes e Arnaldo Baptista – do impossível retorno ao milagre de Londres




















Arnaldo Baptista e Fábio Massari

Sonia Maia, de Londres

Queria ter escrito este texto logo depois do show do Barbican, no dia 22 de maio, mas com Arnaldo e Lucinha na cidade onde moro há sete anos sobrou muito pouco tempo para qualquer coisa além de tentar estar lá, ao lado deles. Logo em seguida, peguei um desses vírus pesados e fiquei de cama por mais de duas semanas. Aí a vida volta ao normal e você pensa que o momentum se foi... Mas lendo uma recente entrevista de Arnaldo na Época, resolvi adiantar o texto que um dia escreveria...


Cultivo uma amizade muito querida com Lucinha e Arnaldo há mais de 16 anos e que começou quando convenci, a duras penas, os editores da revista Bizz em 1989 a publicar uma entrevista com Arnaldo Baptista. Arnaldo estava fora de circuito há quase dez anos. Havia um temor de que as seqüelas deixadas após o acidente de 1982 iriam expor o ídolo e manchar sua imagem. Tinha sido convidada pela DJ Sônia Abreu a visitá-lo.


Quando cheguei à sua casa fiquei impressionada não apenas pela quantidade de desenhos e pinturas espalhadas pela parede, mas também com suas idéias nada populares na época: de como o uso do petróleo promovia guerras e inflação (daí sua defesa pelos carros movidos com energias alternativas); sua preferência por amplificadores valvulados e outros equipamentos de som específicos, vistos como uma “obsessão”; sua defesa por um meio ambiente mais saudável; seu lado vegetariano; seu carinho pelos animais e seu jeito muito particular de falar e colocar suas idéias, que embora destoassem como até hoje do linguajar “normal”, não deixava de ser, na minha opinião, brilhante.


Quebrar aquela barreira foi um desafio que abracei. Lembro que acabei fazendo a entrevista no estilo “por conta própria” - e sua publicação dependeria do material final. Mas não foi difícil conseguir publicá-la. O material era bom, não tão bom quanto queriam. Hoje atribuo a publicação da entrevista mais ao fato de ter exercido um certo poder na revista, uma vez que já era contratada da Editora Abril bem antes da revista nascer e de ter sido envolvida na sua criação pelos executivos que a idealizaram. Esse acesso às chamadas esferas de poder da empresa de certa forma me ajudava a defender melhor minhas pautas undergrounds.


Esta barreira inicial das pessoas em relação a Arnaldo – e que só começou a melhorar depois do lançamento da coletânea Sanguinho Novo também em 1989 –, trazia em si um misto de paternalismo e preconceito por parte dos jornalistas e outros fomentadores culturais da época, portanto não apenas da Bizz.


De qualquer forma, a entrevista quebrou este primeiro gelo e o lançamento de Sanguinho Novo trouxe Arnaldo de volta aos olhares públicos e de lá para cá ele não parou de crescer e ser chamado a participar de eventos, exposições, shows, compilações – como a lançada em 2001, Dê uma Chance à Paz em homenagem a John Lennon – na regravação de suas canções por diversos artistas e bandas, dos mais famosos aos mais obscuros, no Brasil e no exterior.


Arnaldo e Lucinha contaram, neste recomeço, com a ajuda da fotógrafa Fabiana Figueiredo, que além de organizar várias exposições, cuidar da agenda de Arnaldo por sete anos, lutar pelo relançamento de seus álbuns, organizar legalmente seus direitos autorais, tentou, ainda, reaproximá-lo do irmão, do filho, de Rita Lee e até dos tropicalistas...


O sonho de Fabiana era o mesmo de todos: o de tentar furar a cortina de mal entendidos que reinavam entre os ex-Mutantes. Esse era um desafio maior do que ela mesma poderia imaginar – como testemunharia também o jornalista Carlos Calado, que em 1995 publicou uma biografia do grupo. “O menos louco dos três é o Arnaldo”, foi um de seus comentários para resumir o calvário que atravessou para finalizar seu compêndio.

Os Mutantes talvez até tivessem razão em algumas críticas que fizeram ao livro, mas não há dúvidas que ali estavam três personalidades osso duro de roer. Lembro também do dia em que Fabiana voltou chocada de um encontro que tentou promover entre Arnaldo e Rita. Fabiana escreveu uma carta para Rita e resolveu pedir a Gilberto Gil que a entregasse. Gil foi extremamente duro – e injusto – com Fabiana ao lhe dar um pito, como um pai faz com a filha peralta: “Você não tem nada a ver com isso, não se meta!”, foi o tipo de comentário que Gil lhe dirigiu.


Arnaldo sempre enfrentou estes momentos de coração aberto. O acidente e suas seqüelas o libertaram dos ranços do passado, já que ele mesmo nunca foi um ser fácil antes de seu renascer. Apesar de ainda manter uma personalidade forte e algumas vezes intransigente, o Arnaldo que emergiu do acidente é uma pessoa de uma doçura encantadora, que tanto emocionou os que testemunharam em Londres sua volta à frente dos Mutantes junto ao irmão Sergio.

Ao longo de todos estes anos, Arnaldo vem se soltando cada vez mais, sendo seu primeiro grande salto musical em mais de duas décadas o brilhante álbum que é Let It Bed, com o “little help of my friends”, como ele mesmo gosta de colocar, dos não menos brilhantes Rubinho Troll e John Ulhoa.


Tudo isso pode soar um tanto longo e repetitivo, mas é que a vinda a Londres dos Mutantes me fez lembrar um problema horrível do Brasil e dos brasileiros, que é a falta de memória, ligada tanto a falta do hábito de registro, como a uma preguiça em pesquisar...


Sem generalizar, um exemplo, longe de ser o único, foram os garotos do Canal Brasil, muito simpáticos diga-se de passagem, que vieram para Londres para fazer um documentário sobre Arnaldo. Eu estava lá em uma ou outra ocasião e uma das minhas sugestões foi a de filmar Arnaldo junto com Rubinho Troll, que também mora em Londres, visitando uma loja de equipamentos eletrônicos, passeio programado para o próximo dia e que acabou não acontecendo. Percebi logo que mal sabiam quem era Rubinho Troll. “Ah, o cara daquela banda, o Sexo Explícito”, disse um deles num tom de total desinteresse.


O Sexo Explícito foi uma das bandas mais importantes do não menos importante movimento rock/pop dos anos 80 no Brasil. Sexo Explícito era a banda também de John Ulhoa, mentor do Pato Fu. Rubinho Troll foi/é um compositor e letrista brilhante e, mais importante para o contexto deste retorno dos Mutantes, o produtor que ficou no sítio de Juiz de Fora gravando Let it Bed com Arnaldo. Sem ele o CD não teria acontecido, como não cansa de atestar Lucinha Barbosa, pelo menos não naquele momento, daquela forma. E o momento, quando se trata de algo tão mágico como a música, é o que faz tudo girar e acontecer.


Sem Let it Bed, consequentemente, Aluizer Malab, empresário do Pato Fu e o intermediador principal nesta volta dos Mutantes, não teria conseguido a façanha que ainda lhe renderá muitos louros. Sei que Rubinho está pouco se lixando para este tipo de crédito, o que sempre me fez admirá-lo ainda mais, e sei também que este comentário vai me render muitas tiradas de sarro de Rubinho (“Sônia, você tem que lavar este sangue fervente que corre em suas veias”, como disse certa vez)... Mas a falta de informação dos meninos do Canal Brasil, principalmente levando em conta que estavam fazendo um documentário sobre Arnaldo em Londres, onde reside seu mais importante produtor dos últimos tempos, me deixou chocada. Outro exemplo de desleixo foi eu ter de ficar no pé da produção para conseguir a credencial de Rubinho, a última a sair.


E não pára aí: a revista brasileira mais popular da Grã Bretanha, a Jungle Drums, lançou apenas uma nota cheia de dúvidas sobre o show dos Mutantes em Londres. A Folha de São Paulo não teve dúvidas em publicar uma matéria pós-show sem consistência, negativa e, principalmente, imatura. Estava claro que o tal “jornalista” usou a importância dos Mutantes para fazer crescer seu próprio nome. Tanto Folha, como Jungle Drums e o tal Evangelista tiveram que engolir com amargor o vexame. A Folha se viu obrigada a publicar uma bela réplica enviada por Fábio Victor.


Agora, eu pergunto, como um jornal como a Folha de São Paulo, com profissionais do calibre de Alcino Leite, José Simão, Mário César de Carvalho, para citar apenas os que mais admiro, toma uma atitude como esta. Não existe mais checar a matéria? Não dava para ligar para o Thomas Pappon, da BBC, que também estava lá, por exemplo, e conferir? Como foram assinar em baixo um texto visivelmente infantil sobre um momento histórico envolvendo a banda mais importante do Brasil?


E eu poderia continuar a listar diversas outras situações, incluindo entrevistas e matérias do passado, mas há momentos muito mais importantes a retratar e apesar de estar decidida a manter esta parte do texto, sei que todos a quem me refiro aqui com carinho estão acima de tudo isso e que talvez valeria mais a pena ter ignorado a todos os outros. Mas ignorar é fazer coro aos ignorantes.


Fevereiro de 2006 – Mutantes se reúnem novamente pela primeira vez.


Eu estava no Brasil quando a primeira reunião entre os Mutantes aconteceu em São Paulo na casa de Sergio Dias Baptista. Não pedi para presenciar o encontro, porque não quis ser intrusiva, afinal, nunca tinha encontrado Sergio antes. Mas tomei café da manhã no hotel onde Lucinha e Arnaldo pernoitaram e demos muita risada com o relato. Tudo foi gravado em vídeo, que deve um dia circular dentro de outro maior. Passaram todo o tempo rindo ao relembrarem as safadezas e traquinices que aprontavam na época dos Mutantes.


Pensei imediatamente em Carlos Calado, Fabiana, e todos relatos que ouvi ao longo de todos estes anos do quanto era difícil lidar com os Mutantes, entender suas desavenças e intransigências. Rita Lee não estava lá, como não esteve até agora. Mas tinha sido informada em primeira mão de tudo e convidada. Mas a rixa entre os irmãos, na minha opinião, sempre foi o grande entrave na reaproximação, e este sempre pareceu um problema insolúvel, seja por conta do lado intransigente de Arnaldo, seja pelo alardeado superego de Sergio.


Mas a música é algo mágico. E apesar de a possibilidade de fazer dinheiro tenha dado um forte impulso inicial, foi na verdade a música que tornou tudo possível. Estava, sim, mais do que na hora do grupo reverter financeiramente para si o que vários vêm ganhando em cima deles por décadas a fio. Arnaldo dava risadas e mais risadas re-contando o reencontro na manhã seguinte.


Daquele momento em diante, tive certeza que o projeto iria adiante. E tinha certeza que o show seria um arraso, porque acompanhei o progresso dos ensaios em vários telefonemas e emails trocados com Lucinha e se ela dizia que tava ficando muito bom podia-se ter certeza de que tava bom mesmo. Lucinha tem um senso crítico apuradíssimo.


Mas foi preciso uma traquinagem, apenas uma traquinagem, uma atitude de moleque, para que os Mutantes começassem a pensar seriamente em se reunir novamente.


A Tropicália segundo Londres


Sentada na área de alimentação do Barbican enquanto ajeitavam os instrumentos para a passagem de som do show dos Mutantes, Miles, Relações Públicas da casa e um dos mentores do projeto Tropicália, sentou-se à mesa que eu dividia com Jeff McCarty, norte-americano que há mais de um ano vem trabalhando num projeto para um documentário sobre os Mutantes.

Por alguma razão que até agora desconheço, Miles começou a falar incessantemente sobre o projeto Tropicália, sem nem se apresentar ou perguntar quem éramos. Talvez seja porque aquele era seu último momento – o show fechou o projeto levado de fevereiro a final de maio, trazendo shows, filmes, debates, uma mega exposição de arte e um compêndio que, segundo Marcelo Dolabela, é o melhor e mais completo livro já publicado sobre o movimento.

Quão vergonhoso isso é, não consigo deixar de pensar até agora. Sem tirar o mérito do Barbican, quão vergonhoso é o fato de que tivemos que esperar por mais de três décadas para que a melhor literatura sobre a Tropicália fosse editada pelos ingleses e não por nós mesmos.


Miles falou por quase meia hora. A maior dificuldade enfrentada com o projeto foi a complexidade do movimento e a impossibilidade de colocá-lo dentro de um conceito fechado. “A maior parte dos eventos e exposições trazidas para a Inglaterra e os movimentos a que pertenceram têm uma conectividade imediata, o público sabe do que se está falando, há uma certa identificação e entendimento. Com a Tropicália não: era algo totalmente novo, não digerido, pouco explicado, repleto de complexidades. E mesmo não sendo possível colocá-lo dentro de uma ‘caixa’, tivemos que por vezes fazê-lo para poder vender a Tropicália ao público e à imprensa, para criar uma linha na qual pudessem seguir e entenderem do que estavámos falando”.


Perguntei se ele tinha lido Verdade Tropical, de Caetano Veloso, e Miles, sem esconder um certo constragimento, respondeu: “Não. Por um lado não havia tempo e por outro quis estar livre de qualquer influência para poder absorver e digerir toda aquela informação mais livremente. Sei que vou ter que voltar a tudo no futuro para completar o processo. E aí será a hora de ler Verdade Tropical.”


Para o Barbican, a reunião dos Mutantes era a cereja em cima do bolo, como dizem por aqui, e os criadores do evento tomaram uma atitude muito pouco comum para o padrão inglês, acostumado a fazer tudo de acordo com as regras do jogo. Anunciaram, sem que os Mutantes fossem sequer consultados, que o grupo estaria fechando o evento com uma reunião histórica em seu teatro.


Desde o momento em que o Barbican lançou a isca, a roda começou a girar – movida, principalmente, por Aluizer Malab, que tinha cuidado do lançamento de Let It Bed. Aluizer decidiu tomar para si o desafio de reunir a banda. Não foi fácil. Até o primeiro ensaio na casa de Sergio, mais desavenças aconteceram...


A primeira foi a passagem relâmpago de Liminha no processo. Liminha queria fazer um show enxuto, poucos músicos, com muita coisa sampleada. Sergio queria tudo tocado por seres humanos. Liminha queria um repertório com as músicas mais ‘fáceis’. Sergio queria um leque complexo e, portanto, difícil.

Como Sergio é Dias Baptista e, portanto, Mutante original, Liminha desistiu de participar. Mas tudo sem deixar mágoas, como nunca aconteceu entre os Mutantes, e a porta continuou aberta tanto para Liminha como Rita. Esta, como todos sabem, desejou sorte a todos, abençoou a escolha de Zélia Duncan, e deixou no ar uma esperança de que um dia talvez venha a se juntar à trupe.


A dificuldade seguinte era decidir quem seria a vocalista central, ‘a substituta da Rita Lee’. “Até o dia em que Zélia entrou no estúdio de Sergio e ficou definido que seria ela, Arnaldo ia aos ensaios como um boi vai para o abatedouro”, contou Lucinha com seu sempre delicioso senso de humor. “Ele adorou a Zélia”. “Ela tem um lado hard rock que trouxe muito para os Mutantes”, comentou Arnaldo.


Antes de Zélia, outros nomes foram cogitados e algumas cantoras até passaram por testes. Entre elas, a talentosa voz no estilo Janes Joplin de Esmérya Bulgari, mantida nos backing vocals. Esmérya sabe que poderia levar o desafio adiante, tanto que no show Zélia faz questão de chamar a atenção para seu talento. Mas se Esmérya ainda tiver alguma tristeza rondando seu coração por não terem lhe dado a posição, alguém precisa dizer-lhe que está muito menos vulnerável como backing vocal e com mais chances de ser notada do que se estivesse à frente da banda.


Para mim, a grande contribuição de Zélia foi a de justamente não ‘substituir’ Rita, como ela mesma comentou. Zélia usa sua pessoa como um laço que abraça todos à sua volta, atando o nó final que embala esta unidade tão particular, absurdamente criativa e eternamente moderna, tocante que foram – e podemos dizer agora são – os Mutantes. Somente uma estrela com humildade e inteligência excepcionais conseguiria esta façanha. E esta combinação é muito rara no mundo artístico.


Dinho, além de fechar o triângulo para um retorno mais completo dos Mutantes e trazer todo seu charme, simpatia e a batida histórica dos Mutantes na bateria, vem ajudando Sergio e Arnaldo imensamente nas estratégias e decisões executivas e de produção da banda.


Junte-se a estes todos os músicos de ‘sanguinho novo’, jovens orgulhosos de poder colocar seu talento a serviço da banda que mais os influenciou. Exalavam felicidade pura durante o show. Foram todos escolhidos por Sergio Dias Baptista, que já vem trabalhando com eles há algum tempo em vários projetos. Dentre eles, destaque para o multi-instrumentista Vitor Trida, o teclado de Henrique Peters e a percussão de Simone Soul.


Sergio foi o grande maestro, arranjador e produtor deste retorno e vem conduzindo seu trabalho de forma brilhante. Pela terceira vez repito: a música é uma coisa mágica! Esta reunião não teria sido possível se Sergio não tivesse baixado a guarda, se não tivesse buscado no fundo de seu coração uma humildade inerente a todo ser humano.

No hotel em que ficaram em Londres, onde a sala de espera se transformou em sala de estar dos Mutantes, foi tocante ver a forma como Sergio sentou-se ao lado de Arnaldo para participar de uma entrevista levada por uma dupla de jornalistas brasileiras. Arnaldo já tinha gravado por 20 minutos. Arnaldo, como era de se esperar, foi o mais procurado para entrevistas, tanto que foi ele quem ficou mais tempo em Londres após o show para cumprir possíveis compromissos com a imprensa.


Quando Sergio sentou-se à poltrona, uma das garotas pediu que ele se apresentasse. Sergio, rindo, respondeu: “Eu sou o irmão de Arnaldo, Sergio”. Esta entrevista em vídeo ficou uma pérola e espero que seja usada na medida de sua importância.

Arnaldo e Sergio falaram como dois verdadeiros irmãos, o que não é óbvio neste caso. Sejam quais foram os motivos que os separaram por anos a fio, tudo pareceu enterrado, seja no show, seja no momento desta entrevista específica. Havia um carinho entre eles, que me fez imaginá-los quando garotos brincando no jardim da casa, um laço que se desgasta, pensei, mas jamais se quebra.

Não quero dizer que tudo será um mar de rosas, ainda é muito cedo para colocar a mão no fogo sem risco de se queimar, mas foi emocionante, está sendo emocionante e a gente só pode desejar e esperar que Sergio cultive cada vez mais esta humildade, porque quanto mais humilde Sergio se posicionar na banda e no projeto, o show vai ficar ainda mais genial do que já está e podemos esperar mais pérolas no futuro, novinhas em folha... O desejo entre eles é de que o grupo continue e produza novas canções. O próximo momento histórico será quando Sergio visitar o estúdio de Arnaldo no sítio de Juiz de Fora.


A emoção de um show que poucos ali viram um dia


Tudo que disse acima, mesmo com todos estes músicos talentosíssimos, com a clarividência de Zélia Duncan, a maestria de Sergio, a simpatia de Dinho, nada, absolutamente nada teria resultado no que resultou não fosse pela presença e atuação de Arnaldo Dias Baptista.

A música é algo mágico! A música como indústria de entretenimento e, consequentemente, cruel e mortífera, quase nos tirou Arnaldo. Mas foi a música de Arnaldo, a paixão e carinho que vem despertando em gerações e gerações que nos trouxe Arnaldo de volta.

Saí do show pensando: Deus do Céu, imagine no quinto show, imagine quando tudo estiver tinindo, quando Arnaldo se soltar mais ainda e resolver atacar os teclados como faz em Juiz de Fora, então isso será algo ainda mais extra-terrestre do que já foi em Londres, o mais próximo de uma viagem de ácido que um ser humano pode chegar, sem ingerir química alguma.


Arnaldo desembarcou em Londres todo prosa. Pela primeira vez, era ele quem ia à frente de Lucinha, conversando com as pessoas, pedindo indicações, andando pela cidade como se fosse a velha conhecida que na verdade é... (Arnaldo passou dois meses em Londres em viagem pela Europa nos velhos tempos).

Arnaldo chegou até a perseguir uma turma de traficantes que tentaram destruir as câmeras dos meninos do Canal Brasil em Camden Town. É que, ao passar pela turma, os meninos não os notaram e estes, por sua vez, ficaram furiosos de se verem filmados “em flagrante delito”. Perseguiram André e Paulo com o claro intuito de destruir suas câmeras. Welcome to Hell! Aqui também tem! Eram garotos, jovens, alguns menores de 18 anos... Arnaldo não teve dúvidas: saiu correndo atrás dos traficantes em defesa de seus amigos...


Depois do show, era comum Arnaldo ser parado nas ruas de Londres por fãs de idades diversas, tanto brasileiros como ingleses. A reação era: “Ah! Olha ele aqui! Meu ídolo! Pô, cara, demais, lindo show! Fiquei emocionado! Obrigado!”, seja em inglês ou em português, o discurso era sempre o mesmo.


Houve uma tensão inicial, porque a passagem de som atrasou e, consequentemente, não tiveram o tempo que queriam. Por conta disso, no show nem todos os instrumentos falavam como deveriam – o teclado de Arnaldo estava muito baixo, praticamente inaudível, o gravador de Zélia não funcionou, a guitarra de Sergio deu um trabalho imenso para conectar, o que atrasou ainda mais o show ..... Kuru, o empresário que divide as responsabilidades com Aluizer, estava literalmente puto no camarim no meio da passagem de som, tanto com o técnico de som brasileiro como com os do Barbican.

Tentei levantar o moral, dizendo: “não se preocupe, a música é algo mágico e quando eles entrarem no palco, tudo vai acontecer como num conto de fadas...”. Na verdade, a situação me deixou também nervosa, tanto que antes do show beijei Lucinha, beijei Arnaldo e sai o quanto antes do backstage para não demonstrar o nervosismo. O show de abertura do Nação Zumbi foi o mais longo de toda a minha história neste mundo do rock e pop.


Mas foi mesmo como num conto de fadas. Como disse Lucinha logo após o show, “Foi tudo imaginação, não foi?”, se referindo ao hiato de mais de 30 anos entre o último show dos Mutantes a este retorno em Londres.


À entrada dos irmãos, o Barbican veio abaixo. Na platéia, metade brasileiros, metade europeus e ingleses. O show recebeu cinco estrelas no The Guardian, com uma crítica que finalizava dizendo: “nunca houve – e ainda não há - nada como os Mutantes”. A Time Out os chamou, mesmo antes do show, de a melhor banda de rock psicodélico do mundo. Chrissie Hynde estava na platéia. E Eliete Mejorado, do Tetine, não conseguiu gravar em seu celular “Dia 36”, o ápice do show na nossa opinião, porque só fazia chorar. Depois que saí do show, durante pelo menos quatro dias em minha mente só giravam a lembrança de “Dia 36”. Pois é, Mutantes além de te levar numa viagem alucinógena, dura muito mais...


“Dia 36” foi o momento mais solo de Arnaldo, acompanhado por Vitor – sentado ao chão e à frente do teclado de Arnaldo tocando contrabaixo Gibson (preferido de Arnaldo) com um arco de violoncelo –, Simone Soul na percussão e um distorcedor no seu microfone, que enfatizava ainda mais a voz já levemente distorcida de Arnaldo, um de seus charmes.

Como comentou John Ulhoa ao produzir o material de Let it Bed, “essas gravações de Arnaldo cantando hoje em dia são tremendamente emocionantes”. E foi esta emoção que todos sentiram ao vivo, que fez o público reverenciar Arnaldo, sair da Terra em “Dia 36” e aplaudi-lo de pé quando Sergio apresentou a banda. E, ainda, ao reviver o famoso dueto de vozes entre Arnaldo e Sergio nas outras canções, como apontou e mais emocionou o jornalista e músico Thomas Pappon.


O lado moleque de Arnaldo, que culminou com sua famosa cambalhota ao deixar o palco no final do show, o encantamento que provoca nas pessoas ao cantar, interpretar, teatralizar as canções, deixaram claro o porquê dele ser até hoje admirado.


O show dos Mutantes e esta reunião de Arnaldo com o irmão depois de tantos anos nos trouxe, enfim, uma mostra de quanto o amor, a compreensão, a humildade e a boa vontade são capazes de promover momentos mágicos e transformadores.

(Publicado no blog da Sonia Maia, em 17 de junho de 2006)

terça-feira, novembro 28, 2006

A Genialidade Valvulada



































Por Marcelo Dolabela


Rogério Duprat, no vídeo-documentário Maldito popular brasileiro: Arnaldo Dias Baptista, de Patrícia Moran, foi categórico em suas duas aparições: Os Mutantes foram a coisa mais importante do tropicalismo. E ninguém conseguiu deixar isto claro. Mas eu sei bem disso que a cabeça disto tudo, a cabeça dos Mutantes era o Arnaldo Baptista. (...) Insisto e resumo, em poucas palavras, o Arnaldo é responsável por quase tudo que aconteceu de 67 pra frente.

Kurt Cobain, em sua passagem pelo Brasil, saudou Arnaldo com uma carta-elogio.


Mas o que há entre a arqueológica opinião de Duprat e a missiva de Cobain? Mitificação a um artista louco? Ou uma outra versão para uma história já sedimentada?


Bom, Arnaldo, assim como Rita Lee e Sérgio Dias, teve sua vida e sua obra fracionada em duas etapas: a das glórias da Tropicália e dos Mutantes; e, no caso de Arnaldo, da piração posterior. Mas o que dizer dos cinco álbuns de sua carreira solo? E como chamar de loucura sua opção pela amplificação valvulada, agora que novas gerações de valvulados demonstram, mais uma vezes, a sua supremacia perante os leves e descartáveis transistores? Seria loucura também sua opção por guitarra Gibson em detrimento da Fender, usada por seu irmão Sérgio? E seus dois livros de ficção científica? E suas centenas de pinturas a óleo?


A verdade é que a genialidade de Arnaldo só poderia ser tratada, pela mentalidade mediocrizante brasileira, de um forma, como loucura. Nem uma possível morte, várias vezes anunciada, seria adequada. A loucura. Assim teríamos nosso Syd Barrett, nosso Arthur Rimbaud, nosso Antonin Artaud. Mas contra este estigma, basta apenas ouvir a obra de A.B.


Seu primeiro álbum-solo, Lóki? é, sem dúvida a obra-prima do rock brasileiro. Lançando em 1974, com a participação dos Mutantes - Rita, Liminha e Dinho - e arranjo de Duprat, e com a recomendação: este disco é para ser ouvido em alto volume, traz: Será que eu vou virar bolor?, Uma pessoa só - do repertório derradeiro dos Mutantes –, Não estou nem aí, vou me afundar na lingerie, Cê tá pensando que eu sou lóki?, Te amo podes crer e outras. Na seqüência, Arnaldo se transfere para o Rio de Janeiro, formando o grupo Unzioutros, com Lulu Santos.


Em 1976, passa a tocar com o grupo Patrulha do Espaço - John Flavin, guitarra; Osvaldo Gennari, contrabaixo; e Rolando Castello Júnior, bateria. No ano seguinte, grava um álbum no Estúdio Vice-Versa, que se manteria inédito até 1988, quando Osvaldo e Rolando remasterizam a fita original e lançam o LP Elo perdido, que traz Sunshine, Sexy sua, Corta Jaca, Trem, Emergindo da ciência, Raio de sol, Um pouco assustador e Fique comigo.


Em 1980, lança o álbum Singin' Alone, na estréia do selo Baratos Afins, de Luís Calanca. Arnaldo toca todos os instrumentos. No repertório: I feel in love one day, O Sol, Hoje de manhã eu acordei, Sitting on the road side, Ciborg, Young blood, entre outras.



No início de 1982, internado em uma clínica de São Paulo, sofre acidente. Sua fama de louco e suicida volta à cena.


Em 1987, Rolando Castello lança novo material da época do Patrulha. Agora trechos de uma gravação ao vivo, de 1978. O álbum Faremos uma noitada excelente... traz, basicamente, músicas do Elo perdido e do Singin' alone, exceção para a instrumental Arnaldo Soliszta. Ainda em 1987, a Baratos Afins lança, em edição limitada para fãs, o caseiro álbum Disco voador, gravado originalmente em dois canais, pelo artista, e masterizado no Vice-Versa. O disco traz duas versões, em francês e inglês de Balada de um louco e outras sete composições.


Em 1989, a gravadora Eldorado lança o álbum-homenagem Sanguinho novo... Arnaldo Baptista revisitado, com as participações dos grupos Sexo Explícito, 3 Hombres, Vzyadoq Moe, Sepultura, Último Número, Akira S. & As Garotas Que Erraram, Ratos de Porão, Fellini, Atahualpa Y Us Panquis, Maria Angélica e de Skowa e Paulo Miklos.


A partir daí a moeda-Arnaldo Baptista volta a circulação em regravações - Kid Abelha, Lobão, João Penca & Os Miquinhos Amestrados, Paula Morelembaum, Pato Fu e outros -, mostrando um pouco da monumental, e desconhecida, obra do Gepetto valvulado de Juiz de Fora.


Para ler as resenhas de Marcelo Dolabela sobre cada um dos discos dos Mutantes acesse: http://www.arnaldobaptista.com.br/discografia.htm

O Marcelo também está preparando uma nova edição do livro “ABZ do Rock Brasileiro” (nas edições anteriores, não foi registrado nenhuma banda amazonense...).

Como a cena rock da cidade está cada vez mais forte, recomendo aos líderes de bandas e estudiosos do assunto (Marcos Animal, Daniel Valentim, Marcos Tubarão, etc) a entrar em contato com o autor, enviando release, dados biográficos, formações anteriores, discografia, demos, discos, fotografias, clipes, fanzines, flyers, cartazes, memorabilia, etc., para ele divulgar na coluna “Hoje em Dia”, de Belo Horizonte, e incluí-la em uma nova edição do livro, que cobrirá o período de 1955 aos dias atuais. Mexam-se.

Marcelo Dolabela
Rua Grão Mogol, 290 - apt. 104 - Carmo-Sion
30310-010 - Belo Horizonte - MG
telefone: (0xx31 3284.4116)
e-mail: mdolabela@brfree.com.br

Poesia visual e outros babilaques dolabelianos




























































olhai os ritmos das ritas
olhai os jamais dos joyces
olhai os diques das dickinsons
olhai os dadas das rôrôs
olhai os confúcios das patrícias
olhai os duchamps dos champions
olhai as energias dos benjamins
olhai os ecos das obras
olhai os luxos dos liechtensteins
olhai os cages das janelas
olhai o rock dos tones
olhai os blacks dso blakes
olhai os beatles dos blues
olhai os durans dos drummonds
olhais os ponds das liras
olhai os howls dos warhols
olhai os crumbs dos karmas
olhai as pazes dos crepazes
olhai os rouxinóis dos gils
olhai os allens dos noéis
olhai os mirós dos miramares
olhai os kaitanos dos hai cães
olhais as loas dos lao-tsés
olhai os rosebuds dos rimbauds
olhai os zens dos zeuses
olhai os arnaldos dos arnauts
olhai as cartas dos marxs
olhai os rolls dos carrolls
olhai os bashôs dos babos
olhai as luces dos luzianos
olhai os dantes dos mutantes

olhai os líricos dos campos



SAUVE QUI PEUT – LA POÉSIE

sim, eu disse estas palavras
essa palavra, naquele outono de 1977
e todos os invernos passei ao seu lado
idéia: babel & babylon
& não vendi poesia no templo.

sim denise rimbaud numa janela
crime onde os heróis não morrem
desastre paul godard: idéia
que eu disse

monge-zen: bom e mau
não há mal em te querer bem
olhar (que eu não te vi)
idéia idéia idéia idéia idéia
mesmo que dizem que são palavras

naquele outono de 1977
sim, eu disse sim



GRAFITE (1)

abaixo a carestia
chega de comer angú
stia e solidão



GRAFITE (2)

tudo muito chato.
tudo muito arte.



P.L. (n.º 3)

o poeta concreto
discute com o poeta
do poema/processo
qual deles é capaz de apanhar
do poeta marginal

enquanto isso o poeta marginal
tira mimeógrafo do nariz.



RECADO

eu poderia
mandar dizer pra ela
que estou com frio
morrendo d’amores
mas não
diga apenas que eu
estou comendo uma
tampa de caneta por dia.



AMOR ETERNO

o tico-tico que (hoje)
come o meu fubá
é o mesmo que (há pouco)
só passava a caviar



RATORMENTO

oh meu olhar insensato
que fareja seu desejo:
solitário olhar de um rato
na ratoeira sem queijo.



BRAILE CONTIGO

com você eu quero todo baile
um blues em bruxelas
um tango em tanger
um lundu em londres
um bolero na bolívia
um rock em roma
um cha cha cha no chade
um baião nas bahamas

um maxixe no méxico
um samba em são paulo
um pás de deux na guiné
uma rumba na romênia
uma mazurka na urca
um ska na esquina
um reggae no recife
um choro na china

uma salsa em salvador
um funk em frankfurt
uma valsa em valparaíso
um frevo na frança
um fox-trot em tróia
um calipso em cali
um mantra na mongólia
um baile em braile

MARCELO DOLABELA: GRAFISMO, DADAÍSMO E ROCK & ROLL
















Marcelo Dolabela nasceu em Lajinha (MG), em 1957. Poeta, artista plástico, cantor, compositor, pesquisador musical e professor universitário, ele fez pós-graduação em Letras pela UFMG, onde defendeu uma tese sobre Dolores Duran, e mestrado em Comunicação Social pela Universidade São Marcos (SP).


Ativista do grupo anarco-poético Cemflores, ele é autor de mais de 30 livros de poesia, entre eles "Adeus, América", "Violência", "Gatilho", "Através das paredes", "Arte, Suor, souvenir", "Coração malasarte", "Lúdicos do inferno", "Alimento", "Gata presença", "Mandarins sem fantasias", "Radicais", "Grão", “Amônia” e “Poeminha e outros poemas”.


Foi também autor do texto do curta-metragem "Uakti - oficina instrumental", premiado como "Melhor Curta" e "Melhor Montagem", no "Festival de Gramado de 1987", co-editor da revista Fahrenheit 451 e da equipe de articulistas da revista Fanzine Gass, e produtor e apresentador do programa "Rock Molotov", levado ao ar pela Rádio Liberdade, de Belo Horizonte. Em 1987, publicou o hoje clássico "ABZ do Rock Brasileiro", pela editora paulista Estrela do Sul.


Marcelo Dolabela iniciou a sua carreira musical em Belo Horizonte, em 1982, com o grupo mineiro de pós-punk Sexo Explícito, integrado por Rubinho Troll (voz), Roberto Nosso (guitarra), João Daniel (guitarra), Marompas (baixo) e Rogério (bateria).


Em 1984, o grupo se dissolveu e Marcelo formou a banda Divergência Socialista, ao lado de Gato Jair (voz), Fabiane Andropov (voz), John Ulhoa (baixo) e Rubinho Troll (bateria), cuja sonoridade musical sofria influência do "posite-punk" ao minimalismo de John Cage. Com essa formação, eles gravaram uma fita K-7 pelo selo independente Onda.



Três anos depois, com algumas modificações no núcleo inicial – saíram Fabiane Andropov, Gato Jair e John Ulhoa, substituídos por Silma (voz) e Marompas (baixo) –, o Divergência Socialista lançou outra fita, pelo selo independente Câmbio Negro Produções. O grupo encerrou as atividades no início dos anos 90. Alguns anos depois, o guitarrista John Ulhoa juntou-se a Fernandinha Takai e montou o Pato Fu. Marcelo Dolabela continua fazendo recitais poéticos em Belô.


AUTOEXPLICATIVO

Eu, por exemplo, o radical do traço, Marcelo Dolabela, poeta e dadamídia, o pop mais dadá de Beagá, na linha direta de Rimbaud,
Saravá!
a benção Lígia Clark,
a nossa Modrian da Alegria,
terra de Hendrix de João Gilberto,
a benção Oswald de Andrade,
tu que gritaste com humor todas minhas mágoas de amor,
a benção, Bashô,
a benção Tzara,
a benção Ezra Mallarmé,
sua benção, Hélio Oiticica (Meu irmão!...)
a benção Wladimir Maiakóvski,
a benção, Safo Ono,
a benção meus maus Glauber Sganzela,
vocês, sobrinhos de Vortov,
a benção, Tarsila Crepax,
sua benção Lewis Warhol,
a benção, todos os grandes tropicalistas do planeta,
pop, dadá e antropófago,
lindos como os olhos moles de Pagu,
a benção maestro Luciano Klhiébnikov,
parceiro e amigo querido,
que já viajaste tantas revoluções comigo
e ainda há tantas a viajar,
a benção, Beüys Lichtenstein, parceiro cem por cento,
você que une a ação ao sentimento e ao pensamento,
a benção, Baden & Vinícius,
amigos novos, parceiros novos,
que fizeram este samba comigo, a benção, amigo,
a benção Maestro Walter Benjamim, que não és um só,
és tantos, tantos como meu fuzil de todos os sins,
inclusive o de Guimarães Joyce,
saravá!
a benção, que eu vou partir,
eu vou ter que dizer a Zeus...



HADESKAIS (1)

o poeta tem no sangue
a sífilis de sua geração
e não há fuga, nenhuma paixão,
que o tirará deste mangue.

sempre irá no seu galope
este castigo infeliz:
se curar-se dessa sífilis,
só fabricará xarope.



HADESKAIS (2)

bater a cabeça nesse martelo,
eis o vil duelo da poesia:
quanto mais se erguer glória e castelo
mais farelo soprará a ventania.



HADESKAIS (3)

na loucura, a veia
da poesia sempre pula;
o que não for carne
nem for osso, será medula.



BALANÇO DA DÉCADA

uma década tem mais de cem séculos
dez bilhões de vozes num único eco
mil e uma noites num mero segundo
poucos trilhões de silêncio num ponto

quanto se conta os átomos é ótimo
a hora fica interminável num átimo
não se chega nunca a nenhum lugar
e apenas se volta ao mesmo volume

um só dia tem bem mais de dez décadas
num rústico eco a maior biblioteca
da luz do segundo nenhum consenso
até quanto nos faltará silêncio



MALETTA REVISITED # 86

eu estou: nas maravilhas do mundo
no Coliseu da cidade
no naufrágio dos poetas
ouvindo scherherazade

é o zum-zum da matilha do mundo
da Muralha da China, o barulho,
a baunilha dos vagabundos

única geração que ouve
a triste balada dos mouros
o transplante das décadas
a arcádia sem fé e sem ouro.




ESPELHANDO GODOT

primeiro acontece dentro
acontece como se houvesse
fogo queimado por dentro
pra fora como se acontece

mas depois se esquece quando
se é que o fogo aparece
ou se queima desde quando
é por isso que a gente esquece

esquece primeiro dentro
depois como se nada houvesse
acontecido lá dentro
se vive do que acontece.




PRESUNTOS

sim, há bueiros sobre nossas cabeças

e cães ladram vadios no nosso intestino;

cometemos todo crime, somos heróis:

eis o que nos ensina a lei e o destino.

aprendemos a matar desde menino,

no café da manhã, cortando o presunto;

seguimos, à tarde, seremos bons heróis,

que sabem saborear um bom defunto.

saibamos manejar cifras, colt, palavras,

como um bom cidadão, sensato assassino;

assim, teremos bueiros sobre a cabeça

e vadios cães no nosso verde intestino.

um bom herói se faz desde bem menino,

conhecendo suas leis e seu assunto,

passeando sobre a cidade, bom herói,

recebendo uma medalha por defunto.




REVOLUÇÃO SEXUAL

meu amor

nesta questão de amor

estamos kitsch




AUTO-RETRATO

ser estrangeiro

em qualquer país;

ser passageiro

e ser feliz.




DA LINGUAGEM DO ESPELHO

evito a imagem

mas só o seu espelho

me faz linguagem




DOLORES DURAN

fazer terremoto e neblina

navegar sempre em vão

a palavra mais doce

a palavra mais vida

a fina palavra não.




MESSALINAS

no fim, tudo que escrevo

tem a palavra começo,

descanso de um escravo,

carteiro sem endereço




EDUCAÇÃO SEXUAL

Bety Boop Brotoeja Barbarela

Dale Arden Darla Diana Palmer

Jane Porter

Little Annie Funny

Modesty Blaise Minie Miriam Lane

Narda

Olívia Palito

Violeta Valentina

ejaculação precoce?

não doutor

simplesmente amor amore amour




MÁRIO REIS

toda poesia: busca que me vasa

pela fresta mais secreta de meu mar,

onde uma nau sem rumo, mas em brasa,

persegue cada lance seu olhar.

A geografia poética de Artur Gomes












Por Cristiane Grando (*)


“todo poema tem dois gomes
toda faca tem dois gumes”
Artur Gomes


“A poesia é palavra que não fere o silêncio.”
Jorge Berchet


É possível encontrar na poesia de Artur Gomes uma série de referências culturais, uma espécie de mapa, uma geografia poética.

Seus versos são visitados por diversos artistas e intelectuais, vivos e eternos, da arte brasileira e universal, como os músicos Caetano Veloso, Miles Davis, Janis Joplin e John Lennon, os cineastas Godard, Truffaut, Fellini e Glauber Rocha, filósofos, dramaturgos, artistas plásticos, os poetas-amigos Dalila Teles Veras, Luíza Buarque e Zhô Bertholini, além de uma infinidade de escritores e poetas: Hilda Hilst, Paulo Leminski, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Drummond, Lorca, entre outros, e especialmente seus mestres – os Andrades, Mário e Oswald, e Guimarães Rosa.

Macunaíma, Serafim Ponte Grande e Sagarana são referências constantes na obra de Artur Gomes. Num diálogo intenso com a tradição literária, Macunaíma transforma-se em Fulinaíma, e, acrescida da obra do mestre Guima, metamorfosea-se em SagaraNAgens Fulinaímicas (livro e CD ainda inéditos), poesia, música e teatro, para os que têm o privilégio de assistir aos shows de Artur Gomes, declamando pelas ruas, bares, palcos... pela vida.

Em sua inquietude, Gomes impregna o mundo com o som de poemas no cotidiano, quando os torna existência em sua voz. O valor deste trabalho poético e musical ganha maior intensidade quando inserido no contexto da sociedade contemporânea, no qual a poesia quase não tem espaço nem estudo.

A poesia de Artur Gomes fere sem ferir. Num universo de navalhas, sexo, cio, náuseas, estrumes, sua poesia tem dois gumes: um, marcado pela tradição dos poetas malditos, retomando Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé em inúmeros poemas; outro pela musicalidade, arma com a qual assalta/assusta o leitor desprevenido.

Em lances de versos metalingüísticas, o próprio poeta define o fazer poético: “pense sinfonia em rimas raras”. Para ler Artur Gomes, devemos sempre estar atentos aos jogos de palavras, à riqueza do trabalho sonoro e rítmico, à musicalidade, à inquietude de seus conceitos, à plurissignificação, à multiplicidade das formas que as palavras assumem no espaço da folha em branco, às maiúsculas e minúsculas usadas de forma nada convencional, à criação de neologismos e novas expressões, como drummundo, sabe/sabre, fogo de palha/fogo & palha, bola de gude/gosma de grude, boca do estômago/bala no estômago. Um exemplo de trabalho formal e inovador e representado no poema “Dia D”, cujas estrofes iniciam-se por uma vírgula.

A cultura brasileira ganha valor e significado quando é convocada à sua festa criativa uma grande quantidade de elementos indígenas e africanos, relegados muitas vezes pela sociedade brasileira.

Da mesma forma, estios musicais variados, associados à vanguarda da música contemporânea, também são convocados a esta festa de livros e CDs de Artur Gomes que pode ser conferida ouvindo o CD Fulinaíma Sax Blues Poesia, onde desfia com os seus parceiros Luiz Ribeiro, Naiman de Reubes Pess a sua “Marca Registrada.

A palavra poética é uma ponte, uma celebração da liberdade pela qual as pessoas podem ou devem ao menos tentar cruzar, para se salvarem ou para gritarem contra as injustiças sociais e abusos que o império comete em seus extra-muros.

A arte que assume Artur Gomes em seus versos e em sua vida é a arte da palavra em movimento. Sendo ator, gestor e produtor cultural, Artur caminha por diversas vertentes artísticas. Assim como o mímico Jiddu Saldanha, Artur Gomes sabe “arrancar do gesto/ a palavra chave/ da palavra a imagem xis/ tudo por um risco/ tudo por um triz”.

Agradecimentos ao poeta Leo Lobos, pela leitura da obra de Artur Gomes e pelo diálogo, sugestões e comentários tecidos durante a elaboração do texto.

(*) Cristiane Grando é escritora, fotógrafa e professora. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada – Universidade de São Paulo (USP). Laureada UNESCO-ASCHBERG de Literatura 2002-2003

ARTUR GOMES E A POESIA EM CARNE VIVA




















Artur Gomes nasceu em Campos dos Goytacazes (RJ), em 27 de agosto de 1948. Poeta, ator e artista gráfico, acumula uma bagagem de 25 anos de carreira com prêmios nacionais e internacionais em teatro, música, literatura e artes gráficas.

Seu livro Couro Cru & Carne Viva foi premiado no Concurso Internacional de Poesia da Universidade de Laval-Quebec, Canadá, em 1987. Poemas do seu Suor & Cio são partes dos objetos de estudo para tese de Doutorado em Antropologia do Historiador Jorge Santiago, em Paris.

Criador da Mostra Visual de Poesia Brasileira, em 1983. Em 1993, com a realização pelo SESC-SP da MVPB – Mário de Andrade 100 Anos, em São Caetano do Sul e Santo André, foi premiado, junto com a Revista Livrespaço de Poesia, pela APCA, na categoria realização cultural do ano.

Criador do Projeto Retalhos Imortais do SerAfim Oswald de Andrade Nada Sabia de Mim, realizado em Campos dos Goytacazes (junho 95), Ouro Preto (julho 95), São Paulo (outubro 95) e São Caetano do Sul (novembro 95).

Durante os meses de julho de 1995 e 97, foi uma das atrações do Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais, na cidade de Ouro Preto, mostrando sua arte gráfica, poética e teatral. Foi um dos poetas selecionados para o projeto Poesia 96, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Viajou com o seu Ateliê de Performances por diversas cidades do país com um espetáculo de Dança.Teatro.Poesia, ao lado da bailarina Nirvana Marinho (Curso de Dança da Unicamp). Foi um dos organizadores da Mostra Euro Latino Americana - Poema Visual, realizada em 96 e 97 na cidade de Bento Gonçalves (RS).

De 27/4 a 1/5 de 1996 coordenou workshop sobre Utopia Versus Realidade Possível, na UNIFRAN, durante o IX Encontro de Estudantes de Arquitetura. Criou o Projeto Uma Viagem Pelas Galáxias de Gutemberg, que resultou na criação da Escolinha de Teatro Alpharrabio em Santo André (SP).

Coordenou o I Seminário - Arte Educação, realizado de 16 a 20/9/96, na Casa de Cultura do Ipiranga (SP). Criou e dirigiu o espetáculo O Dia Em Que a Federal Soltou a Voz e Surgiu um Coro de 67 Vertebrados, montado pela Oficina de Música e Teatro do CEFET-Campos (RJ).

Em 1998, criou e dirigiu os espetáculos Brecht Versus Suassuna e Mendigos Jantam Brecht, ambos montados com alunos da Oficina de Artes Cênicas do CEFET-Campos, com textos de Ariano Suassuna e Bertolt Brecht.

Em 2000, lançou Brazilírica Pereira, A Traição das Metáforas, sua primeira obra de ficção e, em 2002, o CD Fulinaíma - sax, blues e poesia, com Dalton Freire, Luís Ribeiro, Naiman e Reubes Pess, parceiros com quem apresenta espetáculos em espaços culturais de várias cidades brasileiras.

É responsável por alguns dos blogs poéticos mais bem transados da blogosfera:

http://arturgomes.zip.net/

http://carnavalha.zip.net/

http://jurassecretas.zip.net/



antLírica

eu não sou zen
muito menos zhô
nem tão pouco
zapa
nem ando na contra capa
do teu disquinho
digital
não alinho pela esquerda
nem à direita do fonema
vôo no centro/viagem
olho rasante/miragem
veia pulsante/poema



Galope

com espada
em riste
galopamos
pradarias
e lutamos
ferozmente
por dois segundos
e meio
tua fúria era louca
que agarrei-me
em tuas crinas
pra não cair na lama
mas o amor era tanto
e tanto era o prazer
que quando fomos pra cama
não tinha mais o que fazer.




Lady Gumes African's Baby

meto meus dedos cínicos
no teu corpo em fossa
proclamando o que ainda possa
vir a ser surpresa
porque amor não tem essa
de cumer na mesa

é caçador e caça
mastigando na floresta
todo tesão que resta
desta pátria indefesa

ponho meus dedos cínicos
sobre tuas costas
vou lambendo bostas
destas botas NeoBurguesas

porque meu amor não tem essa
de vir a ser surpresa
é língua suja grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
dessa língua portuguesa.



sousAndrática

leve
ave pena
leve
arara amazônica
breve sobrevoa
rara lâmpada
límpida

azul de zinco
impávida oceânica
cérebro vivo
ofusca
a serra
wall street

cega
bela city desumana

anti passarada
morte
que me roa
ave pena
leve
sousândrade



SampleAndo

o poema pode ser um beijo em tua boca
carne de maçã em maio
um tiro oculto sob o céu aberto
estrelas de néon em vênus
refletindo pregos no meu peito em cruz

na paulista consolação da na água branca barra funda
metal de prata desta lua que me inunda
num beijo sujo como a estação da luz

nos vídeosfilmes de TV eu quero um clip
em tuas coxas japa
uma cilada nos teus seios quentes
como uma flecha em tuas costas índia
ninja, gueixa eu quero a rota teu país ou mapa
teu território devastar inteiro
como uma vela ao mar de fevereiro
molhar teu cio e me esquecer na lapa




PunçãoPoÉtica

INs Piração
onde se cata
lixo intacto
remoVendo escombros
de letras por letras corroendo
o vírus letal da veia
clara da gema
como prova
lamparina não clareia
a palavra NÃO poema
Ovo
Ova



Foto

caranguejos explodem

mangues em pólvora
Ovo
de Colombo quebrado

areia branca inferno livre
Rimbaud áfrica virgem
carne na cruz dos escombros
trapos balançam varais
telhados bóiam nas ondas
tijolos afundando náufragos
último suspiro da bomba
na boca incerta da barra
esgoto fétido do mundo
grafando lentes na marra
imagens daqui saqueadas
jerusalém pagã visitada
atafona.pontal.grussaí
:
as crianças são testemunhas
jesus cristo não passou por aqui



Gomes&Gumes

todo poema tem dois gomes toda faca tem dois gumes
de um eu não digo os nomes da outra não mostro os lumes
se um corta com palavras a outra com corte mesmo
se um é produto da fala a outra do ódio a esmo

todo poema tem dois gomes toda faca tem dois gumes
e um amor cego nas asas brilhante de vagalumes
se em um a linguagem é sacana
na outra o corte é estrume
todo poema tem dois gomes toda faca tem dois gumes

se em um peixe é palavra na outra o brilho é cardume
é fio estrela na lavra mal cheiro vício costume
de um eu não digo os nomes da outra não mostro os lumes

se em um a coisa é sagrada ofício provindo das vísceras
na outra a fé é lacrada hóstia servida nas missas
se em um é cebola cortada aroma palavra carniça
na outra o ferro, é tempero fé cega - fome amolada
– poema é só desespero



Tecidos sobre a pele

Terra
antes que alguém morra
escrevo prevendo a morte
arriscando a vida
antes que seja tarde
e que a língua da minha boca
não cubra mais tua ferida

entre/aberto
em teus ofícios
é que meu peito de poeta
sangra ao corte das navalhas
e minha veia mais aberta
é mais um rio que se espalha,

amada
de muitos sonhos
e pouco sexo
deposito a minha boca
no teu cio
e uma semente fértil
nos teus seios como um rio

o que me dói
é ter-te
devorada por estranhos olhos
e deter impulsos por fidelidade

ó terra
incestuosa de prazer e gestos
não me prendo ao laço
dos teus comandantes
só me enterro à fundo
nos teus vagabundos
com um prazer de fera
e um punhal de amante

minha terra
é de senzalas tantas
entrerra em ti
milhões de outras esperanças
soterra em teus grilhões
a voz que tenta - avança
plantada em ti
como canavial
que a foice corta
mas cravado em ti
me ponho a luta
mesmo sabendo - o vão
- estreito em cada porta




Usina


mói a cana
o caldo
e o bagaço
Usina
mói o braço
a carne
o osso
Usina
mói o sangue
a fruta
e o caroço
tritura suga torce
dos pés até o pescoço

e do alto da casa grande
os donos do engenho
controlam:

- o saldo e o lucro.