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quinta-feira, novembro 23, 2006

Para recontar a história de Torquato Neto

















MAURO DIAS

Louvar, só o que deve ser louvado, como avisava na letra de Louvação, sobre melodia, um baião pré-tropicalista, de Gilberto Gil - e aqueles tempos não eram para ser louvados, por certo. Na manhã do dia 10 de novembro de 1972, o autor da letra, poeta, escritor e jornalista Torquato Neto, desistiu até de conviver com o que não era para ser louvado. Fechou a porta, abriu o gás e morreu. Tinha feito 28 anos no dia anterior. Tinha saído para comemorar com os amigos, que não perceberam traço de depressão ou nada que pudesse indicar
a iminência do suicídio.

No bilhete de despedida, Torquato escreveu: "(...) Para mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar." A viúva, a artista plástica Ana Duarte, casada com o poeta desde 1967, também não ouvira o marido falar em suicídio. Admite que em algumas de suas letras houvessem chaves indicativas de que a idéia tenha estado presente durante muito tempo, mas tais chaves só foram percebidas mais tarde.

Torquato Neto costuma ser lembrado como um dos fundadores do tropicalismo, o movimento (momento?) musical encabeçado por Caetano Veloso e Gilberto Gil e que teve particiapação, ainda, de Tom Zé, José Carlos Capinam, Rogério Duarte, Rogério Duprat e Júlio Medaglia. A foto de Torquato está na capa famosa do disco-manifesto do tropicalismo, Tropicália, ou Panis et Circensis (1968). Além dos citados, aparecem na foto Nara Leão e os Mutantes.

Pelo menos um dos hinos tropicalistas foi escrito por Torquato, em parceria com Gilberto Gil: o baião Geléia Geral, faixa que abre o disco Colecionave Torquato Neto - Todo Dia É Dia D, que acaba de ser editado pela gravadora Dubas, selo alternativo criado pelo compositor Ronaldo Bastos, parceiro constante de Milton Nascimento e amigo pessoal de Torquato (amigo também dos baianos: foi Caetano Veloso que lhe deu o apelido Dubas - Ronaldo Bastos -, que acabou dando nome à gravadora.

Colecionave Torquato Neto é uma das homenagens que o poeta recebe, nos 30 anos de morte. A editora pretende lançar, até 2003, a biografia Rasgue Isso depois de Ler, em elaboração pelo jornalista Toninho Vaz (o mesmo que biografou Paulo Leminski em O Bandido Que Sabia Latim, lançado no ano passado). Além disso, até o fim do ano, sai pela Rocco a obra completa de Torquato, em dois volumes, com organização do jornalista Roberto Pires e edição do poeta Wally Salomão.

O primeiro volume, Do Lado de Dentro, reunirá os poemas editados no livro Os Últimos Dias de Paupéria, mais as 40 letras de música (muitas inéditas) deixadas por Torquato. Paupéria teve duas edições, ambas organizadas por Ana Duarte e Wally Salomão, em 1973 e 1982. Está esgotado. O segundo volume receberá o nome de Geléia Geral, com textos que Torquato publicou em jornais (na coluna Música Brasileira, do Jornal dos Sports, do Rio, em 1967, na
coluna Geléia Geral, publicada entre 1971 e 1972 na também carioca Última Hora), além de colaborações esporádicas para outras publicações e correspondência ativa e passiva com o artista plástico Hélio Oiticia - aliás, o criador do termo Tropicália. Os dois volumes somarão 700 páginas.

O repertório do CD Todo Dia É Dia D foi compilado por Leonel Pareda e Ronaldo Bastos, que usaram como (sub)título o nome de uma canção pouco conhecida, escrita por Torquato sobre melodia de Carlos Pinto, cantada por Gilberto Gil e incluída no disco Cidade de Salvador (1973). É uma das duas faixas raras, entre as 14 escolhidas. A outra é Três da Madrugada, também com música de Carlos Pinto, na voz de Gal Costa, tirada de um compacto que vinha encartado na segunda edição de Os Últimos Dias de Paupéria.

Gilberto Gil é o principal parceiro, com seis músicas: as pré-tropicalistas Domingo (com Gal Costa, do disco Domingo, de 1967), Louvação (com Gil, do disco homônimo, 1967), A Rua (com Gil, também do disco Louvação), a tropicalista Geléia Geral (de Panis et Circensis, 1968, com Gil) e a pós-tropicalista A Coisa mais Linda Que Existe (com Gal Costa, do disco Gal Costa, 1969), além da doce Cantiga, que só seria gravada por Nana Caymmi (no disco Resposta ao Tempo) em 1998.

Edu Lobo aparece com três parcerias: Veleiro (1966, com Elis Regina, na gravação que soa mais datada do disco), Lua Nova (1967, com Edu) e Pra Dizer Adeus (1967, com Maria Bethânia, do disco Edu e Bethânia). Caetano Veloso é o autor da melodia de Mamãe, Coragem (gravado por Nara Leão, no disco Nara Leão, 1968). Jards Macalé assina a autoria da última composição autorizada de Torquato, Let's Play That (do disco Jards Macalé, 1972); e, póstuma, fecha o repertório a canção Começar pelo Recomeço, música de Luís Melodia (do disco 14 Quilates, 1997). Melodia foi um dos nomes que, usando o jornal, Torquato ajudou a tornar conhecido.

Ronaldo Bastos queria dar ao disco (que tem texto de apresentação em português, inglês e francês) mais um subtítulo: The Talking Head of Tropicalism, ou A Cabeça Pensante do Tropicalismo. Talking Heads era o nome do grupo ao qual pertencia o músico norte-americano David Byrne, responsável pela redescoberta de outro tropicalista de primeira hora que passou muito tempo esquecido, o baiano de Irará Tom Zé. Byrne esteve no Brasil, encontrou um disco de Tom Zé, encantou-se com ele e editou uma antologia de sua obra, nos Estados Unidos, no início dos anos 90. O disco encantou o meio intelectual de lá e Tom Zé retomou a carreira interrompida.

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Terezina, no Piauí, em 9 de novembro de 1944. Aos 17 anos, mudou-se para Salvador, onde conheceu Gil, Caetano, Maria Bethânia. Pouco depois, foi para o Rio, estudar Filosofia.

Trabalhou em jornais, rádios e gravadoras de disco. Poucos dias antes da edição do AI-5, em 1968, embarcou para Londres, em companhia de Hélio Oiticica. Na volta, estava rompido com os companheiros tropicalistas, um afastamento que Caetano Veloso classifica mais físico do que ideológico.

O biógrafo Toninho Vaz lembra que Torquato teve, para o movimento, uma importância mais conceitual - como rompedor de conceitos - do que autoral - a obra musical é pequena e (fora e dentro do movimento) e embora Geléia Geral seja, talvez, a música que melhor define (ou conceitua) o tropicalismo, é quase peça única.

O fato é que o núcleo tropicalista, formado por Gil e Caetano, afastou-se de todos os outros participantes, os considerados também conceituadores - como Rogério Duarte -, os criadores - como Tom Zé - e outros que estiveram próximos dele - como o violonista e compositor Jards Macalé, que, não por acaso, continuou trabalhando em parceria com Hélio Oiticica (que fez capas para seus discos) e Torquato.

O próprio Caetano assume, no longo ensaio Verdade Tropical (uma teoria sobre o tropicalismo, sua gênese e seu momento posterior), que havia divergências sobre como conduzir a explosão criativa que co-capitaneou. Macalé e Torquato afastaram-se porque não queriam ver o que consideravam revolucionário como mais um modismo, um pretexto para o sucesso popular. O mesmo se deu com Tom Zé, que não abriu mão do experimentalismo e amargou um ostracismo de quase 20 anos.

Torquato foi, sobretudo, jornalista, e de suas colunas influenciou o pensamento do fim dos anos 60 até o início dos 70. Avesso a dogmas, brigou com o Cinema Novo e chegou-se ao cinema experimental. Protaganizou o filme Nosferato no Brasil, de Ivan Cardoso (1971). Sua imagem mais famosa é aquela em que aparece como de vampiro. Ironia. Metaforicamente, vampiro vive do sangue (da criação) do outro. Torquato preferia os riscos.

(Fonte: O Estado de São Paulo, 21/07/2002)

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