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quarta-feira, janeiro 31, 2007

Vinicius de Moraes segundo Geraldinho Carneiro




Não me lembro se conheci Vinicius em certa noite no Antonio's ou se asilado na casa de Cecil Thiré (onde fui parar casualmente), egresso de uma de suas inumeráveis separações. Mas foi em 1968, com certeza, e, como era de seu feitio, Vinicius me disse palavras amáveis.

Dois anos mais tarde, também por acaso, presenciei o ato final de outra separação tumultuada, na casa de Nana Caymmi, onde o poeta tomou uma coça de sua ex-amada, diante de meus olhos juvenis. Marx tem uma frase brilhante sobre as repetições da História, ciranda de dramas, farsas, etc. Naquela altura do campeonato, eu ainda não tinha lido Marx e não fui capaz definir o gênero literário do episódio.

Em 1973, me lembro como se fosse hoje, fui a uma festa em sua casa na Gávea, na rua Frederico Eyer, com meu parceiro Egberto Gismonti e Dulce Nunes. Tive impressões contraditórias. De um lado, fiquei fascinado com o charme do poeta e a atmosfera vagamente feliniana da festa; de outro, meio paradoxalmente, achei que esse Vinicius de Moraes era um cara obeso e decadente, assim corno seus poemas, incompatíveis, ao menos em parte, com meu marxismo-hedônico ou hedonismo marxista da ocasião – pois, durante o dia, Machado Penumbra da nova geração, eu escrevia poemas e letras obscuramente bem-intencionadas para o Egberto e, durante a noite, batia ponto na esbórnia.

Para completar, ainda na contraditória festa do parágrafo anterior, surpreendi uma troca de olhares carregada de cumplicidade. Otelo de mim mesmo, decidi investigar e descobri que Vinicius, aIguns anos antes, tinha namorado a minha namorada. Senti ciúme retrospectivo. Mas descobri, também, que tínhamos certas afinidades eletivas.

No ano seguinte, Vinicius andou fazendo umas canções com Eduardo Souto Neto (aliás, os dois fizeram uma valsinha tchury-tchury) e ficou encantado com uma música que eu e o Eduardo tínhamos composto em 69, chamada Choro de Nada. A letra era toda rimada em ada, com exceção de um dos últimos versos, Vinicius queria trocar o tal verso e incluir o chorinho no seu novo disco com Toquinho. Eu não concordei.

Em 1975, fui passar uma temporada na Itália, trabalhando com Astor Piazzolla. Um belo dia recebi uma carta na casa do Astor, na Via dei Coronari. Era Eduardo, cheio de dedos, comunicando, com sua habitual delicadeza, a gravação do choro. Logicamente, Vinicius tinha trocado o meu verso branco. 2 X 0.

Mas, depois: de minha volta ao Brasil abdiquei das últimas restrições morais e musicais ao poeta. Em suma, apaixonei-me irremediavelmente. Tomamos alguns porres na casa de amigos comuns. Falamos muita besteira. Lembro de um réveillon de 73 ou 74, estilo milagre econômico, entre o horror político e o arrebatamento lisérgico. As hard-drugs começavam a pintar no Rio de Janeiro. Lá pelas 9 horas da manhã, debaixo de um calor senegalesco, restavam umas poucas pessoas na liça. Vinicius sugeriu que cantássemos. Eu peguei o violão e puxei uma das mais lindas canções do poeta, que soava meio irônica cm pleno verão carioca: “Por que toda manhã me traz / 0 mesmo sol sem esplendor?” Quase morremos de rir.

Assim, birita vai, birita vem, fui me desfazendo aos poucos de minha tendência parricida, espécie de fatalismo psicológico com que as novas gerações, por amor à auto–afirmação, brindam as anteriores. Mas, para falar a verdade, o ranço dessa herança bastarda continuou embaraçando sutilmente, quanta incompetência!, as minhas relações com Vinicius. Ficamos cúmplices, mas não ficamos íntimos.

Andei freqüentando a sua casa na Gávea, com ou sem pretexto. Para fazer uma antologia (abortada) de suas letras de música, por encomenda de Gastão de Holanda; para mostrar poemas; para entrevistá-lo; para conversar fiado. Duas vezes o poeta me recebeu em seu banho de imersão matinal, estirado na banheira, completamente nu. Parecia um patrício da velha Roma lmperial. Sêneca, por exemplo.

Fui visitá-lo pela última vez no princípio de 1980. Vinicius tinha ficado doente. Foi hidrocefalia, se não me engano. Agora começava a se recuperar. Tomava aulas de violão com Wanda Sá, andava entusiasmado com a perspectiva de ir a um encontro internacional de poetas, não me lembro onde, para o qual era convidado de honra. Fiquei deslumbrado com o seu pique.

Em fins de junho, Vinicius e Gilda Queirós Mattoso apareceram numa pequena reunião produzida por Marilda Pedroso. Eu e minha mulher tínhamos ficado grávidos naquele dia, e o poeta, com sua mania de médico amador, nos deu vários conselhos. 10 quilos mais magro, ele parecia consigo mesmo nas fotos da década de 40. Todos ficamos emocionados. Após a sua saída de convalescente, à meia-noite, cantamos e bebemos em sua intenção.

Poucos dias mais tarde, no caminho para o cemitério São João Batista, eu pensava na estranheza da presença/ausência de Vinicius, entranhado no fundo da história dos afetos do Brasil e, ao mesmo tempo, seqüestrado da tarde calorenta do Rio de Janeiro. Foi um enterro estranho. Não havia o menor sinal de desespero e, ao contrário da expectativa do poeta, revelada no poema A Hora Íntima, ninguém propôs solene­mente a construção do seu pedestal. Quase sorrindo, as pessoas cantaram canções de despedida: “Se todos fossem iguais a você! Que maravilha viver”.

O rosto emergindo entre as flores, Vinicius, filho de Oxalá, era um morto sem metafísica. Mas, por via das dúvidas, me lembrei de uma reza forte para saudar sua partida no barco da Grande Mãe: “Notre Dame de L’Amour, iluminai vossos vitrais, levantai âncora ó galera gótica dos meus martírios vossos santos aos remos o Corcunda no mais alto mastro Jesus na torre de comando e buscai serenamente o grande caudal no qual me abandono náufrago coberto de flores em demanda do abismo claro e indevassável da morte, Saravá!”

Geraldo Carneiro e a dessacralização da palavra


André Gardel (*)

Geraldo Carneiro é um artista múltiplo. Divide seu talento de escritor pela dramaturgia, a criação e adaptação de roteiros para cinema e TV, a tradução, a produção de letras de canções, e também pela poesia. Tendo estreado em livro em 1974 com Em busca do sete-Estrelo, participou da primeira antologia de Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje, de 1976. Publicou, entre outros livros de poesia, Folias metafísicas em 1995; e, agora, Lira dos cinqüent'anos (editora Relume Dumará, 122pp) uma espécie de balanço geral de sua produção poética, numa obra que implicitamente parece funcionar, a um só tempo, como marco vital e índice de maturidade criativa.

O jogo de duplos com a famosa peça homônima de Bandeira (que, por sua vez, já é uma reciclagem de a Lira dos vinte anos de Álvares de Azevedo) demarca um lugar de fala crítico e subjetivo que acaba por dialogar com o poeta modernista para além do mero brinquedo lúdico de desdobramento serial do título. Se, por um lado, a poesia de Geraldo Carneiro enfatiza, por vias próprias, e, por isso mesmo, de modo dissonante, acordes e notas típicas da poesia de Bandeira, por outro, circula por esferas que se distanciam em muito do universo bandeiriano.

A reiteração particular de alguns procedimentos do poeta pernambucano surge na importância dada ao universo social em Lira dos cinqüent'anos, sugerida pelo grande número de poemas dedicados, e pela produção de um soneto a quatro mãos (transcriação de um poema escrito originalmente em inglês pelo acadêmico João Ubaldo Ribeiro, feita por Geraldo); o que nos remete à afirmação de Bandeira, em Itinerário de Pasárgada, de que muito do modernismo em suas obras era proveniente da convivência criativa estabelecida com seus amigos de boemia e letras do período. Surge também em recursos expressivos, como versos à maneira de, os poemas desentranhados de outros textos, a busca de uma poesia não hermética, o uso de uma linguagem coloquial salpicada pelo estranhamento vocabular, as variações sobre um mesmo tema.

As figurações poéticas do livro de Geraldo Carneiro se deixam perpassar, além do mais, por algumas características recorrentes de uma determinada poesia brasileira que começou a se impor a partir dos anos 90, como o passeio por gêneros e formas fixas, o uso desreprimido de poemas experimentais, a multiplicidade de referências a poetas e obras da tradição poética ocidental, mas, no fundo, guardam ainda um espírito preso à poesia marginal.

O prefácio do autor, nesse sentido, é revelador, tanto pelo tom desabusado e coloquial do discurso, quanto pelo espaço em que se situa em relação à cultura oficial, assumidamente do lado da vida, sem hierarquias, diminuindo a distância com o leitor: ''(...) no que os eruditos chamam de polissemia, e nós, mortais, chamamos de poesia'', ou em ''(...) caro leitor, meu semelhante, meu brother''. Geraldinho tem um modo lúdico e irônico de se definir lírica e pessoalmente: ''E eu, embora pós-adolescente e semi-analfabeto (aliás, continuo mais ou menos assim).''

E a leitura de Lira de cinqüent'anos nos lança numa câmara de ecos da tradição lírica, atravessada por reutilizações de ditos e letras de canções populares. Dividido em oito seções, o livro é um mar de citações, trocadilhos, palavras-montagens, diálogos inter e infratextuais, neologismos, frases feitas desfeitas, retomadas críticas de poemas precedentes do próprio autor. Geraldo Carneiro, que na maior parte da obra opta pelo uso do chiste, é daqueles autores que podem até perder o poema, mas não perdem a piada, o jogo de vocábulos, a rima insólita funcionando, muita vez, como chave de ouro.

Com isso, a ambiência geral é de humor e anarquia dessacralizante, regada por comentários em alguns momentos corriqueiros, em outros filosóficos, sobre a existência, sobre os clássicos e seus autores, estes sempre tratados com intimidade e irreverência. O timbre da voz subjetiva é o de um bate-papo desenfadado com amigos, afinidades eletivas, no bar ou pelo telefone sobre assuntos literários e temas diversos, o que dá à obra um caráter ocasional de livro-álbum, mais do que de encadeamento poemático seletivo de livro-conceito.

Contudo, há momentos em que a pilhéria não se transforma em obrigação de afirmação estilística, nem a necessidade de leveza e compromisso afirmativo da vida uma opressão para um pouco mais de rigor e esmero, ou, talvez, apenas o poeta se leve mais a sério, e vemos surgir poemas de grande densidade de linguagem e força vital como, por exemplo, a pulsão trágica de ''Maldoror'': ''a dor do mundo dói dentro de mim./ ressoam no meu céu todas as dores.../ a dor de Dante, da pátria perdida,/ o horror supremo de Edgar Allan Poe,/ o horror da dor, o horror do nevermore.../ o horror da acrópole, do bar e dos bas-fond/ eu sinto o horror e sei qual é o seu som.''; ou a sutil delicadeza dramática de ''Novo panglossário 4'': ''adoro as pequenas burguesas de Tchecov/ com suas vidas suspensas,/ como coaguladas, vagando entre/ cristais e coisa nenhuma...''; ou, ainda, a generosidade sobrevivente de quase soneto a quatro mãos: ''sejam benditas, berenices, beneditas,/ também sejam benditos meus amigos,/ pois gosto deles, tenham longa vida,/ e até eu mesmo, que não a mereço,/ mas que a observo e sei qual é o seu preço''.

Nesses momentos, a poesia de Geraldo Carneiro além de moderna, carioca e brasileira, projetos subjacentes aos poemas que parecem confeccionar uma camisa-de-força criativa ao lançar mão de fórmulas recorrentes, torna-se, sem qualquer overdose de referencialidade, insistência na blague ou desconstrução satírica, pela sua própria iluminação interna e valor construtivo, em algo que se pode chamar de universal.



(*) André Gardel é Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ e compositor de música popular

Os gozos da alma de Geraldo Carneiro




Felipe Tadeu


Especial para o Jornal Musical, da Alemanha


O mineiro Geraldo Carneiro é homem de muitos ofícios: escreveu peças teatrais, roteiros para cinema e tv, traduziu obras de William Shakespeare e Goethe, publicou livros de poesia e uma biografia sobre Vinícius de Moraes. Mas há quem diga que seu maior talento mesmo é como letrista, ele que já compôs com gente da mais alta estirpe como Egberto Gismonti, o mestre do tango Astor Piazolla, Francis Hime, Wagner Tiso, o regente John Neschling, seu irmão Nando Carneiro e até com Jacob do Bandolim, dentre outros. Algumas de suas principais composições estão reunidas no terceiro volume da coleção Poetas da Canção, bela iniciativa do Sesc Rio concebida e produzida por outro poeta da música, Sérgio Natureza.

Gozos da alma é um CD acompanhado de libreto que está chegando à praça depois dos volumes dedicados ao maranhense Salgado Maranhão e ao carioca idealizador do projeto. As doze músicas que constam no álbum traçam um perfil muito bem delineado da trajetória de Geraldinho como letrista inconfundível da chamada música popular brasileira. Pouca gente sabe que o cidadão nascido em Belo Horizonte em 1952 e radicado no Rio de Janeiro desde os três anos de idade começou do outro lado, ou seja, criando música, e não texto. "Ele sempre brincou, dizendo que o maior benefício que ele e Egberto (Gismonti) puderam fazer como dupla para a música popular se deu quando ele, Geraldo, parou de fazer música, e o Egberto deixou de escrever letra", conta Nando Carneiro, o co-autor da música mais emblemática da carreira do Geraldo, a canção "Lady Jane".

A parceria com Egberto começou cedo, quando Geraldo tinha vinte anos, e a primeira música que fizeram juntos foi a primorosa "Água e vinho". Mas antes de Egberto, veio Eduardo Souto Neto, com quem Geraldo escreveu "Tristeza, tristeza", um samba que chegou a tocar bastante no Rio por volta de 1967/68. "Choro de nada", trabalho da dupla, está no disco em interpretação de Danilo Caymmi, um chorinho que foi gravado anteriormente por Vinícius de Moraes e Toquinho, e também por Tom Jobim. Já de Gismonti, a única faixa presente em Gozos da alma é "Palhaço (mais clara, mais crua)", um clássico da música instrumental que nasceu da letra de Geraldo. "Eu queria ter incluído no disco também a faixa 'Água e vinho', mas a EMI, a gravadora original da música, não nos passou os direitos", revela o poeta, que também lamentou o fato de Egberto não estar presente no disco como instrumentista: "Ele estava viajando no curto período em que gravamos o CD. Eu sinto a falta dele no CD, Egberto é uma pessoa central na minha vida".

"Palhaço (mais clara, mais crua)" reaparece em registro irretocável de Olívia Byington, o grande destaque dentre os intérpretes. Olívia é dona absoluta de quatro faixas do disco: ela canta também "Olha a Lua", de Geraldo e John Neschling, "Luz do tango", com música de Piazzolla, e "Lady Jane". Todas elas já haviam sido gravadas por Olívia, artista que está para Geraldo Carneiro assim como Aracy de Almeida para Noel Rosa. A "Luz do tango" do Gozos da alma consegue ser bem superior à do disco de estréia de Olívia Byington, o marcante Corra o risco. "Foi muito delicioso revisitar essas canções que fizeram parte da minha vida. "Palhaço", por exemplo, foi composta para um disco meu, o Anjo vadio", disse Olívia, que pretendia, à época do lançamento de seu último álbum, Canção do amor demais, gravar um disco inteiro com composições de Geraldo. Idéia já descartada, em virtude do presente lançamento.

Francis Hime, outro parceiro assíduo, emplacou três músicas no songbook: a faixa que dá nome ao disco, "O amor passou" e "Lundu", três fonogramas cedidos pela gravadora Biscoito Fino. Duas delas interpretadas pelo próprio Francis, sendo "Lundu" cantada por Lenine, uma inspirada faixa da dupla extraída da Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião. A mulher de Francis, Olivia Hime, brilha no disco em "Falta-me você", de Jacob do Bandolim e Geraldo. Assim como Zezé Motta, que volta atuar em "Rita Baiana", com música de Neschling, e "A flor e o cais", de Wagner Tiso e Geraldo, na voz de Danilo Caymmi. E há lugar também até para o AfroReggae, que vem com "A aquarela dela", feita com Anderson Sá, Cosme Augusto, Dinho, Jairo Cliff, Joel Dias e José Junior.

Não poderia faltar de forma alguma canção dos tempos de A Barca do Sol, o cultuado grupo da cena alternativa carioca que singrou os anos 70 e deixou três álbuns inesquecíveis. Com A Barca, Geraldo Carneiro iria arrebanhar uma legião de fãs apaixonados por rock e pelo experimentalismo da trupe capitaneada por Nando Carneiro, mais Jaques Morelenbaum, Alain Pierre, David Ganc, os irmãos Muri e Marcelo Costa e Beto Rezende, além de Marcelo Bernardes, Marcos Stuhl e Ritchie. A "Lady Jane" do primeiro álbum da banda (1974) volta aqui com todo seu encantamento.

GERALDINHO CARNEIRO E A PAIXÃO PELAS PALAVRAS




Geraldinho Carneiro nasceu em 11 de junho de 1952, em Belo Horizonte. Três anos mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro. Poeta, publicou Na Busca do Sete-Estrelo (74, Mapa Editora), Verão Vagabundo (80, Editora Achiamê), Piquenique em Xanadu (88, Espaço & Tempo, Prêmio Lei Sarney de melhor livro do ano), Pandemônio (93, Arte Editora), Folias Metafísicas (95, Editora Relume-Dumará), Por Mares Nunca Dantes (Editora Objetiva, 2000), Lira dos Cinqüent’anos (Relume-Dumará, 2002) e Balada do Impostor (Garamond, 2006).

Em prosa, publicou “Vinicius de Moraes: A Fala da Paixão” (Brasiliense, 84) e “Leblon: A Crônica dos Anos Loucos” (Rioarte/Relume-Dumará, 96). Lançou também a tradução de alguns sonetos de W. Shakespeare, na coletânea Sonhos da Insônia (Impressões do Brasil, 97), publicada em parceria com Carlito Azevedo.

Escreveu mais de duas centenas de letras para músicas de Egberto Gismonti, Astor Piazzolla, John Neschling, Eduardo Souto Neto, Nando Carneiro, Francis Hime, Wagner Tiso e outros, gravadas por diversos intérpretes, entre os quais os acima mencionados e mais Tom Jobim, Ney Matogrosso, Gal Costa, Olivia Byington, Miúcha, Fafá de Belém, Lenine, Zé Renato, Olívia Hime, Zezé Motta, Cauby Peixoto, Vinicius de Moraes e Toquinho , Moacyr Luz, AfroReggae e Michel Legrand.

Foi traduzido, radiofonizado e publicado em francês, inglês, espanhol e italiano. Também com Francis Hime, escreveu poemas para a cantata Carnavais, executada em 88, e para a Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião, encomendada pelo Governo do Estado, que estreou em 2000, no Teatro Municipal.

Escreveu artigos, poemas e ensaios para a maior parte das publicações brasileiras. Teve diversos textos teatrais encenados, originais e traduções, entre os quais A Tempestade e As You Like It, ambas de William Shakespeare (encenadas em 82 e 85, sendo a primeira publicada pela Relume-Dumará), A Bandeira dos Cinco Mil Réis (encenada em 86, por Aderbal Freire-Filho, publicada em 92), Manu Çaruê (ópera performática com música de Wagner Tiso, encenada em 88, por Walter Lima Jr.), Fausto, de W. Goethe (encenada em 2003 por Moacir Chaves), Baque, de Neil Labute (encenada por Monique Gardemberg em 2005) e Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, a convite de Maria Padilha (encenada em 2006, com direção de Paulo José).

Escreveu roteiros de cinema, minisséries e participou da criação do programa Você Decide, do qual foi supervisor de texto. Adaptou diversas obras literárias para a TV, entre as quais a minissérie O Sorriso do Lagarto (com Walter Negrão) e especiais para as séries Brasil Especial e Brava Gente. Foi um dos escritores da minissérie JK, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira.

Participa, desde 2004, como poeta e sócio-atleta, do Projeto Arca das Letras, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que implanta bibliotecas em comunidades rurais. No mesmo ano, deu início à oficina de poesia Escola das Rosas que Falam, no Centro Cultural Cartola, que coordena ainda hoje. No último dia 29, no Rio de Janeiro, lançou o CD “Gozos da Alma”, terceiro volume da coleção Poetas da Canção.

A prosa do observatório

o poeta esquadrinha a natureza
em busca de indícios: eclipses
o grafismo das garças no lago
estrelas cadentes e outros sinais
da língua de deus.
e deus, crupiê do acaso,
foi passar o verão noutra galáxia
deixou no céu uma guirlanda de enigmas
e mais meia dúzia de coincidências
pra orientar o frenesi dos tolos
e as especulações da astronomia


Pequenas ocupações da poesia

a procura da palavra mágica
a contrasenha do apocalipse
o codinome do diabo os esconjuros
as juras aquém-além palavra
amor e outros monstros inomináveis
Iracema é anagrama de América
termo é anagrama de morte
dog, em inglês, é o contrário de deus


Futurologia

o futuro é o jardim dos impossíveis
o shangrilá das paralelas da esperança
o céu onde revoa a ave vida
o rendez-vous das coisas nunca dantes
(onde florescem flores de utopia
e cada dia é sempre mais além).
futuro do pretérito é o contrário
é o sonho que seria se não fosse
o caos,certa palavra impronunciada,
o horror, os desenredos do amor
e enfim (à falta de outra flor) a morte


A semântica das rosas

o signo rosa significa a rosa
a rosa em si mora no mundo
e é no fundo a flor da metaflora
que só floresce nos jardins suspensos de Platão
(assim,se não se sabe se uma pena
é uma pena ou é uma pena
também nunca se sabe se uma rosa
é uma rosa ou é somente a insígnia
um enigma uma senha uma metáfora
significando alguma outra rosa)
em suma,cada signo é uma ponte
entre as palavras, seu império
e cada rosa sempre indecifrada
em seu mistério


À flor da língua

uma palavra não é uma flor
uma flor é seu perfume e seu emblema
o signo convertido em coisa-íman
imanência em flor: inflorescência
uma flor é uma flor
(de onde talvez decorra
o prestígio poético das flores
com seus latins latifoliados
na boca do botânico amador)
a palavra, não: é só florilégio
ficção pura,crime contra a natura
por exemplo, a palavra amor


À flor da fala

é daqui mesmo que eu te conheço?
ah,não? então de que outro lugar será
que eu não te conheço? se eu fosse místico
talvez redecifrasse a tua face
de alguma encarnação imemorial
(ou desde o princípio dos tempos,
antes que os deuses desinventassem
os carnavais do caos);
mesmo não sendo místico diria
desse pequeno prenúncio de apocalipse:
agora sim compreendo a música das esferas,
os teoremas de Arquimedes de Siracusa,
a mecânica celeste e todos os demais
mistérios do reino desse mundo: só quero
conhecer-te ainda nesta encarnação:
antes que a minha alma improvável
se arremesse na província do nada,
o rendez-vous dos seres sem amor


Os fogos da fala

a fala aflora à flor da boca
às vezes como fogos de artifício
fulguração contra os terrores do silêncio
só espada espavento espelho
ou pedra ficção arremessada
ou canção pra cantar as graças
as virilhas as maravilhas da amada
a deusa idolatrada do amor:
essa outra voz quase jazz
que subjaz ventríloqua de si mesma


O espelho

do outro lado um estranho
faz simulações como se fosse
um demônio familiar
é sempre noite,um assassino sonha
com mulheres assassinadas em série
sob as palmeiras de Malibu
o mundo é só uma ficção plausível
a imagem que baila ao rés-da-lâmina
é um último improvável vestígio
da existência de Deus
os restos são ecos de outras faces
gestos de espanto e despedida
a música dos relógios , a morte


Manual dos 40

1) não mencionar as ilusões perdidas
(é só um romance de Honoré de Balzac)
2) cultivar os poetas gregos
para provar que, desde os primórdios,
o mundo faz ( ou não faz ) sentido
3) trocar a máscara da rebeldia
pela fantasia da satisfação
esquecer os trotes e os foxtrotes do mundo
(talvez converter-se ao zenbudismo)
4) acreditar,conforme os mestres do espírito,
que as piratas e conspiratas da carne
são contrárias ao processo civilizatório
5) amancebar-se com Mnemosyne, a memória,
musa dos corações veteranos:
enfim, proustituir-se
6) recordar (à sorrelfa) que os poetas
espadachins espanhóis do Século de Ouro,
a despeito de suas façanhas físicas e metafísicas,
morreram ao redor dos 80


Crítica ao manual dos 40

1) é falsa a menção às ilusões perdidas:
o poeta continua crédulo e cretino,
no melhor dos mundos
2) esforço de afetar certo ceticismo
(fracassado, aliás)por pudor de confessar
secretas fantasias de poder
3) não merece comentário
4) o único fragmento ao menos sincero,
no qual o poeta exprime sua paixão
pelo sublime
5) alusão bizarra ao romancista Marcel Proust,
de quem o poeta não leu nem a Recherche
6) erro bisonho; no Século de Ouro
octogenário só Calderon de la Barca,
dramaturgo, não os poetas; provável
sintoma da decrepitude do poeta


Projeto

título: (provisório) os lusíadas
tema: a conquista da África e das Índias
as proezas da brava gente lusitana
amplificadas com engenho e arte,
os deuses clássicos como coadjuvantes
mais a fauna de ninfas sereias etc.
(esses deuses gentios só como fábula,
estilo: poema em decassílabos heróicos
em estilo grandíloco e corrente
como convém ao pathos da epopéia:
a linguagem solenizando os feitos
e ofuscando os desastres da língua-pátria
(explicar ao secretário de el-rei
que o elogio aos heróis e reis do passado
suscita, em relação a el-rei presente,
o prenúncio de façanhas futuras)
orçamento: trinta mil-réis por ano
(ou seja, um décimo do salário
do almirante-mor dos Mares Índicos
esse imbecil do Vasco da Gama)

Canção do exílio

o poeta sem sua plumagem
é um deus exilado do cosmo
strip-teaser metafísico
só lhe resta sambar no inferninho
do caos
sob os neons do nada
sempre nu diante do espelho
sem espelho diante de si


Fortuna crítica

sonhou sonhos de poder & glória
pavoneou-se: espalhou jactâncias
pensou que era um profeta angelicaos
o penacho como um sol na solidão
no céu dos deuses marginais;
foi morar num palácio do Parnaso
entre líricos e burlescos
num penthouse pra lá de suas posses:
não passava de um novo-rilke


Bilacmaquia

livre espaço a ave aurora
as asas cantando climas céus
nuvens agora o sol o vôo
a vida o olhar (re)volta
tempo alegria de novo


Nevermore

fizemos piqueniques em Pasárgada
tramamos romances rocambolescos
nas praias mais improváveis.
cifras grifos dragões d’além mar
cuspiam fogo em nossa eros-diccção
você era mais luz: eu era mais treva
fomos quase felizes para sempre
antes que você escolhesse o dia
a hora o grand-finale do espetáculo
(ou não escolhesse: a morte é sempre
um pas-de-deux com o deus do acaso)


Romântico de Cuba (2)

é louco o amador que crê no amor:
a cadeia (incandescente) de sóis
e girassóis; o rastro dos astros
no carrossel do céu: a conspiração
dos cometas no kindergarten da galáxia:
a aritmética de coxas e lábios;
o astrolábico do deus dos desenredos
maquinando o erro tipográfico
que converte ocaso em acaso
e fabrica as cintilações do sim


Neoplatônica

a boca é o lugar onde se engendra
o silêncio e se proferem sentenças
de morte e se colhem blasfêmias
e serpenteiam sortilégios
e se enfunam as flores da fala
até forjar a ficção de outra boca
de onde se extrai a idéia do beijo


Juízo Final

amou três ou quatro sereias, sempre
marinheiro de primeiro naufrágio;
jurou em falso,disse meias verdades;
perambulou em busca do sublime,
sem nunca descobrir o Santo Graal;
andou atrás de um deus que fosse cômodo;
como esse deus não se desencantasse,
cantou a lua e outras deusas inconstantes;
refratário às ciências, desconfia
que o Sol gira ao redor da Terra
e o homem é um animal fadado à extravagância;
às vezes sofre acessos de grandeza,
supõe-se demiurgo e pandemônio,
mas o mundo sempre se rebela
contra suas mal fundadas esperanças
e o reduz à sua insigne insignificância .


A fala da paixão

em tua fala a língua caravela
desenovela em busca de outros mares
metáforas da fala: a anti-fala
ou inefável fala com caprichos
de boca navegada nunca dantes
AH SE EU SOUBESSE AMOR A TUA TRAMA
ao sul de qualquer fala decifrasse
esse país de fala indecifrada
amor que me não singra as minhas angras
mas sim me sangra em mar amor amor


Pacto sinistro

quem sabe a vida é uma novela
série noir
cheia de som e fúria etc.
ou filme B sem verossimilhança
e deus é o rival de Humphrey Bogart
que se fartou de luz na Martinica
& agora à luz da lua
se empenha por capricho a maquinar
what’s the next step
of the story
ou
what’s the next stop
of the starry
way to nowhere?


Principalmente

sempre fui bem tratado como um príncipe
e fui me afeiçoando aos privilégios
aos florilégios e às vilegiaturas
que me couberam neste reino etéreo
e deletério, porque o esquecimento
é tão inevitável quanto a vida
e a morte é toda feita de mistério.
procuro ouvir a sorte nos meus búzios
como o Bilac ouvia suas estrelas,
coisa que nunca ouvi, mas compreendi
mesmo não tendo credo acreditável.
fui construindo assim meu edifício
sobre essa arquitetura de quimeras,
cujo arquiteto talvez fosse cego,
ou gênio, ou simplesmente ausente.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Roberto Piva sem papas na língua


O poeta gosta de caminhar descalço pelos morros de Jarinu, no interior de São Paulo, observando pássaros e outros bichos. Crê no xamanismo e nos estados alterados da consciência e gosta de John Coltrane, Miles Davis e Monk, mas também de Red Hot Chili Peppers. O poeta é ácido, sarcástico, e define-se como anarco-monarquista. ''O marxismo, para quem gosta de natureza-morta, é um prato cheio'', diz ele.

O poeta é o paulistano Roberto Piva, um dos mais importantes autores contemporâneos do País. Ele está em vias de ter sua obra completa reunida por uma mesma editora, um feito para qualquer poeta - e ainda mais para Piva, cuja reputação de marginal maldito é antiga. A Editora Globo já lançou os dois primeiros dos três volumes com as obras de Piva, o primeiro: “Um Estrangeiro na Legião” (200 págs, R$ 38), que reúne “Ode a Fernando Pessoa”, “Paranóia”, “Piazzas” e “Os Primeiros Manifestos”. O segundo volume: “Mala na Mão & Asas Pretas”, reunindo “Abra os Olhos & Diga Ah!”, “Coxas”, “20 Poemas com Brócolis”, “Quizumba” e “Segundos Manifestos”. Por fim, sairá “Estranhos Sinais de Saturno”, volume formado por um inédito e “Ciclones”.

Ninguém foi mais rápido no gatilho do que Roberto Piva: no início dos anos 60, ele escreveu “Paranóia”, um dos retratos poéticos definitivos da metrópole paulistana que emergia e de sua paisagem de morfina, seus arranha-céus de carniça, seus arcanjos de enxofre. A “Action Surréaliste” destacou sua ''fascinação pelos neóns e a alucinação pela metrópole metálica''.

Ele continua vivendo no coração dessa metrópole que odeia e venera, num apartamento em Santa Cecília. Ignora a Internet e os computadores. Ali, soterrado por livros, recebe discípulos, curiosos e até mitômanos há mais de três décadas sempre com a mesma dedicação, mas já sem tanta paciência. ''A juventude brasileira está sendo preparada pelos professores para viver no século 19'', desabafa.

Sofrendo do mal de Parkinson, Piva trata-se com vitamina B2. O remédio atenua efeitos da doença e impõe certas regras: ele não pode comer carne vermelha. ''Mas há uma bela compensação'' ele festeja. Recomenda-se que ele tome vinho tinto chileno ou francês, cujas uvas contêm bioflavonóides, pigmentos de ação terapêutica. O poeta brinda às ironias da vida.

O organizador e responsável pela edição da obra de Piva é Alcir Pécora, professor de Teoria Literária da Unicamp. Os posfácios são do escritor Cláudio Willer, de Eliane Robert de Moraes e do crítico Davi Arrigucci Jr.

Piva tem um currículo no mínimo excêntrico. Foi um dos primeiros produtores de shows de rock no País - produziu concertos de Made in Brazil e Duda Neves, por exemplo. Sua poesia funda-se, além de uma invejável erudição, na relação com o metafísico e o sagrado. ''Sob o império ardente de vida do princípio do prazer, o homem, tal como na Grécia dionisíaca, deixará de ser artista para ser obra de arte'', ele proclama.

Piva cultua seus orixás (Xangô, Iemanjá e Oxum) e também toca tambor para invocar seu animal xamânico, o gavião. Se você estiver algum dia zanzando pelas estradas da Cantareira e vir um homem caminhando descalço com os sapatos nas mãos, bom, talvez seja o Piva.

Ricardo Lima - Você nasceu em 25 de setembro de 1937 em São Paulo. Onde passou a infância? O que queria ser na vida?

Roberto Piva - Acho que não queria ser nada. Passei a infância em São Paulo e no interior, na fazenda do meu pai em Analândia, região de Rio Claro. Eu era muito avesso à escola regular, fiquei muitos anos sem estudar e depois fiz duas faculdades para poder sobreviver, para poder dar aulas.

Quando você se definiu pela literatura? De quando são os primeiros poemas? Nessa época você convivia com outros poetas?

Em 1961. Saí na 'Antologia dos Novíssimos', editada pelo Massao Ohno. Nesse período eu vivia com o Cláudio Willer, Antonio Fernando De Franceschi, Décio Bar, Roberto Bicceli, entre outros.

Na sua juventude (início dos anos 50) a novidade literária era o concretismo. Como você via esse movimento?

Eu não me interessava por ele. Era um pequeno grupo que nunca me despertou interesse, eu não tomava conhecimento disso. Não me interessava, como não me interesso hoje. Esse negócio me parecia linha de montagem e, em 1936, o genial Charles Chaplin, já tinha "desmontado" essas estruturas com o filme "Tempos Modernos". Portanto, não entrei nessa.

No final dos anos 50 (com pouco mais de vinte anos) você fez um curso de três anos sobre Dante Alighieri, que parece ter sido decisivo na sua formação. Quais outros autores estavam presentes nesse momento?

Nietzsche, Kierkegaard, os existencialistas, Heidegger, filosofia e literatura, tudo misturado, Artaud, beat generation...

Sempre que escrevem sobre sua vida, recordam sua passagem pela produção de shows de rock, nos anos 60. Essa experiência — somada à linguagem fragmentada do cinema e às inúmeras referências a pintores (Bosch, De Chirico, Caravaggio) e escritores — mostra um poeta essencialmente urbano, bombardeado pela indústria cultural? Ou se trata de aproximações poéticas?

Não tem nada a ver com indústria cultural. É mais a segunda opção. Eram aproximações poéticas com as obras que me impressionavam, me inspiravam, me impeliam à criação.

Seus primeiros livros (em 1963 e 1964), conforme nos apresenta Alcir Pécora no prefácio da obra reunida, tem um "viés beat, whitmanniano e pessoano". Você ignora o concretismo, não adere à poesia participante, de conteúdo social e, tampouco, segue a secura da tradição cabralina. O verso livre, desprovido de toda e qualquer regra, era também um grito de liberdade naquele momento de sufoco e repressão?

Que sufoco? Isso era muito relativo, os militares não ficavam atrás de você o dia inteiro. Eles ficavam lutando bang-bang com os terroristas e deixavam o resto da população em paz. O verso livre tem a ver, antes de mais nada, com o estilo da minha vida.

Homossexualismo. Alucinógenos. Marginalidade. Como era viver de um modo tão controverso quando as minorias tinham ainda menos espaço, menos expressão na nossa sociedade?

Eu vivia como vivo hoje. Dava aulas para sobreviver e não pensava muito nessas coisas. Foi um período em que não escrevi quase nada.

Pois é, esse período coincide com um hiato na sua produção poética. Depois de uma estréia tão forte, com Paranóia e Piazzas, você ficou 12 anos sem publicar. Por que isso?

Não sei. Eu não pensei nisso. Para falar a verdade eu nunca pensei nisso.

Já nesse primeiro momento, sua poesia vem acrescida dos "manifestos". Como eles foram divulgados e como você os analisa dentro da sua produção? São poemas também, ou tratam de questões que não cabiam nos poemas, por isso, esse outro formato?

Não os considero poemas, era uma outra maneira de me expressar, eram manifestos mesmo. Os manifestos dos anos 60 eram divulgados por mimeógrafo, em plaquetes.

Segundo Alcir
Pécora, esse primeiro momento já traz algumas características marcantes da sua "poesia explosiva": o jogo de extremos e a escolha do autor ("condição desta escrita libertina"); a centralidade do sexo e a tangência do sagrado ("ato profanatório ou excesso amoroso e orgiástico"); e, por fim, a recusa ao sentido (a incompreensão como "um tipo de violência exigida pelo verso novo contra o comodismo"). Como a crítica, na época, reagiu a essa novidade poética?

Ela não reagiu. Não saiu nada. O Pasolini, depois de cineasta famoso, publicou um livro que foi ignorado. Ele mesmo teve que fazer uma resenha, com pseudônimo, para chamar atenção da crítica e ter o trabalho reconhecido.


Existia um projeto poético? Em que ele se diferencia de suas experiências pessoais?

Não tinha projeto poético. Tinha a vivência poética. Minha vida e minha poesia são uma coisa só.

A poesia portuguesa do século XX tem muitos autores influenciados pelo surrealismo, bem mais que a brasileira. Que autores portugueses lhe interessam?

Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Mario Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa, enfim, vários autores que se aproximaram bem mais do surrealismo que os autores nacionais. Aqui, só o Murilo Mendes tinha uma vertente surrealista muito forte.

De 1975 a 1985 você publicou cinco dos seus oito livros. Nessa fase se acentua o surrealismo e com ele aparece o refúgio na natureza, o batuque, os primeiros xamãs. É fortíssima a defesa ecológica, a crítica aos valores predatórios da civilização capitalista. Esse grito de resistência, muito claro nos manifestos do início dos anos 80, está hoje diluído nos versos curtos dos cantos xamânicos da fase mais recente ou não?

A crítica era contra o provincianismo que acompanha todos esses movimentos, sou totalmente a favor da globalização, não sou brasileiro, sou um cidadão do mundo. Essa poesia xamânica, da fase mais recente, está também presente no Vinte Poemas com Brócoli, de 1981. Esses manifestos estão mais atuais do que nunca, e hoje acredito que estão mais envolvidos com a poesia.

Após uma fase blasfematória (1960), acentuou-se a surreal (1970/80) até chegarmos à mística (1990 até o presente). Novamente, recorro ao prefácio do Alcir, para ressaltar que "os elementos mais relevantes de um período permanecem em todos os outros, havendo aspectos de continuidade e coerência marcantes em todo o conjunto". O culto, o ritual, os tambores são hoje suas ferramentas fundamentais para a realização poética?

Não. Foram nos anos 80 e 90, atualmente estou meio devagar com isso.

Com exceção do Ciclones (1997) e da reedição de Paranóia (2000), seu trabalho não aparecia em livro há 20 anos (a Antologia Poética, editada pela L&PM, é de 1985). Mesmo ausente do mercado editorial, como você conseguiu continuar sendo referência para os jovens poetas?

Isso mostra que não sou poeta marginal, mas marginalizado. E isso significa que a minha poesia tem uma dinamite própria e alcança gerações que eu nunca esperava que fosse alcançar.

Em 40 anos de poesia, não é possível aproximá-lo de nenhum grupo ou corrente literária brasileira. Sua "linhagem poética" remonta a Blake, Rimbaud, os surrealistas, os beats. Você não veio de "escola" alguma. Você acredita estar fazendo "escola", ou seja, existe uma poesia hoje inspirada em Roberto Piva?

Tem vários poetas jovens que escrevem influenciados por mim. Não posso falar sobre o modo de vida deles, muitos não conheço pessoalmente, conheço apenas a poesia, mas vejo influências.

Sei que você evitaria apontar este ou aquele poeta. Mas, você acompanha a produção atual? O que você acha da poesia feita no Brasil pela geração surgida nos últimos 10 ou 15 anos?

Acompanho alguma coisa. Gosto de muita coisa e também não gosto de outras. Os poetas do Rio de Janeiro, por exemplo, sempre deixam uma impressão favorável. Acho que estamos num bom momento de produção poética.

E qual sua avaliação da poesia feita hoje pela sua geração, ou seja, a de poetas com 40 anos de estrada e uma dezena de livros debaixo do braço?

Tem várias pessoas ainda produzindo e vejo qualidade nesses trabalhos, como o Willer, o Franceschi, entre outros.

De poeta marginalizado nos anos 60, ao reconhecimento como uma das mais importantes vozes da poesia brasileira contemporânea. A pequena circulação dos seus livros reflete o horizonte curto do nosso segmento editorial, ou a crítica demorou para reconhecer seu talento? Como tem sido a recepção dessa "obra reunida"?

De modo geral, parece que ainda não me entenderam direito. A não ser um pequeno grupo de críticos. A obra reunida tem sido bem recebida, mas não sei se isso significa entendimento. Acho que falta mais leitura por parte da crítica, mais conhecimento, principalmente na grande imprensa.

A Poesia Xamânica do Beatnik Surrealista


Sim, há leitores que, há pouco mais de quatro décadas, engalfinharam-se em livrarias por uma obra de poesia. Era 1963 e a pequena editora Massao Ohno lançava "Paranóia", livro que, com acidez e liberdade estética, como dito e repetido desde então, perfazia a gênese da cidade de São Paulo, a uma vez louvando e maldizendo suas ruas e avenidas. Lançava-o para vê-lo esgotado em duas velozes semanas.

Roberto Piva, seu autor, era então um jovem recém-passado dos 20 anos, muito diferente do senhor que agora vê suas obras quase completas relançadas pela editora Globo. Afora uma e outra desejável omissão, seus poemas ressurgem reunidos em três volumes, o primeiro dos quais, "Um Estrangeiro na Legião", tem posfácio de seu ex-parceiro daqueles anos loucos e também poeta Cláudio Willer.

Aqueles leitores da década de 1960 – sem dúvida, em matéria de poesia, os que mais se aproximariam do que se pode chamar de "fanáticos" – talvez se entristecessem ao ver Piva trancafiado em seu apartamento na Santa Cecília, já descrente da vida que pulsa nas ruas. Das ruas, segundo denunciam suas janelas fechadas e empoeiradas, só lhe alcança o som das buzinas. Das calçadas, quem sabe, um ou outro leitor, um ou outro aspirante a poeta, a tocar-lhe de surpresa o interfone.

Solitário, Piva se cansou da cidade em cujas praças e parques despejou seu verbo e, não fosse a falta de dinheiro, já teria se retirado para morar "no meio do mato, num sítio qualquer", em suas mais apoéticas palavras. "Não sou um poeta da cidade; sou um poeta na cidade", retifica o paulistano de nascença, para possível aflição dos que nele leram o Walt Whitman desta metrópole ou o Rimbaud de um céu mais cinzento.

Resta-lhe, entretanto, ainda que por vezes com amargura semelhante, ler os poemas que retira das pilhas de livros que ocupam seu apartamento, de Murilo Mendes a Federico García Lorca, passando por Dante Alighieri. E resta-lhe também, quando atiçado, conversar sobre eles e sobre ela, sua fiel companheira, a poesia.

"A poesia, dizia André Breton, é a mais fascinante orgia ao alcance do homem. E Freud explicava que ela liberta as nossas tensões psíquicas", ensina Piva, aproveitando para explicar o modo como lhe sobrevêm os poemas. Escreve em "iluminações", em "surtos", que curiosamente acumulam-se em intervalos de 12 em 12 anos. Os três volumes que a Globo lança agora correspondem justamente a seus três principais surtos, como explica Alcir Pécora, organizador da publicação.

O primeiro, "de viés beat, whitmaniano e pessoano"; o segundo, "de traços psicodélicos e experimentais"; o terceiro, "místico e visionário", todos nas palavras de Pécora. A poesia tem de ser assim, em surtos? "A minha poesia tem de ser assim", responde Piva. "Ou melhor", corrige, após segundos de silêncio, "é assim".

Em todos os seus surtos existiria a mesma necessidade de transgressão que havia no primeiro? "Não, depende do ritmo, da iluminação do momento, da contemplação. Poesia não é coisa programada", anuncia, para novamente deixar imperar o silêncio enquanto pensa. "A poesia não é lógica. É analógica", despeja.

Mas é um instrumento adequado para combater "as odiosas convenções sociais", como anunciara no posfácio de "Piazzas", que praticamente constituía um manifesto de suas intenções, éticas ou estéticas? "Sim, desde que não seja engajada e programática". E emenda: "poesia, como dizia Octavio Paz, é uma arte minoritária. E uma minoria deixa de ser minoria quando tem a posição transgressora correta".

O silêncio volta a protagonizar o ar do claustrofóbico apartamento. O mote da conversa talvez estivesse, de fato, exasperado. Talvez não merecesse mais palavras ditas. Piva, no entanto, tem algo mais a pontuar, quem sabe conferindo sentido e redenção a tudo aquilo: "A poesia é um caminho que exige vocação e sacrifício. Mas tem suas alegrias também".

Jorge de Lima, panfletário do Caos

Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil
de tua túnica
e um milhão de vagalumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar com um talismã nos lábios de todos os meninos

Paranóia (1963)


Os anjos de Sodoma

Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder o ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando a
loucura e o arrependimento de Deus

Paranóia (1963)


Visão de São Paulo à noite
Poema Antropófago sob Narcótico

Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apóia em nada
eu não me apóio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cú nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopéias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo

Paranóia (1963)


Paranóia em Astrakan

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação

Paranóia (1963)


O Inferno Musical

As horríveis pianolas
de câncer
descendo várias semínimas
até o Galo
ondas do meu agrado
& sempre
sonorizando a Hora Premeditada
OS QUINZE VELOCÍPEDES
NA LADEIRA
DO AMOR
como um Mar de bocas
tóxicas de Sagitário
ondulando nas almas
que dançam despidas
MONSTROS GIRATÓRIOS


Piazzas (1964)


Piazza V

Oswald Spengler tem uma
porta no seu tornozelo
& nuvens através dele
limpando a pele
que projeta
um velho cachecol marrom
em seu olho
eu penso
pelos seus
líquidos compassos de sátiro
até
um cenário de músculos
impedido de esmagar
o carvão de
vidro verde
que aquece
a estrela nua de
anteontem
Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo
batendo
até
altas horas

Piazzas (1964)


Ganimedes 76

Teu sorriso
olhinhos como margaridas negras
meu amor navegando na tarde
batidas de pêssego refletindo em seus olhinhos de
fuligem
cabelos ouriçados como um pequeno deus de salão
rococó
força de um corpo frágil como âncoras
gostei de você
eu também
amanhã então às 7
amanhã às 7
tudo começa agora num ritual lento & cercados de
gardênias de pano
Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde
de São Paulo como um desejo espetacular tão
dopado de coragem
marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti
assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem

Abra os olhos e diga ah! (1976)


Pornosamba para o Marquês de Sade

esta homenagem coincide com a deterioração da
Bastilha Sul-Americana minada pela crise de corações
& balangandãs econômicos onde se mata de tédio o
poeta & de fome o camponês & sobre os pés femininos
se calça a bota de chumbo de várias cores gamadas
com Hitlers de plantão em cada esquina recoberta de
saúvas & amores escancarados como túmulos onde tuas
coxas Marquês, servem de amparo delicado para o
garoto que chupa teu pau enquanto uma mulher ruiva
te cavalga Assim, anotemos o nome da
vítima-orgasmo-blasfêmia antes que as araras entrem
na orgia com seus estimulantes bicos recurvos & um
estratagema de cipós afague os sóis da desolação
quotidiana em nível de Paraíso A noite é nossa Cidadão
Marquês, com esporas de gelatina e pastéis de esperma
& vinhos raros onde saberemos localizar o tremor a
sarabanda de cometas o suspiro da carne

Coxas (1979)


1 - OS ESCORPIÕES DO SOL

O adolescente ajoelhou-se abriu a braguilha da calça de
Pólen & começou a chupar.
Eram 4 horas da tarde do mês de junho & o sol batia no
topo do Edifício Copan suas rajadas paulistanas onde Pólem
& luizinho foram fazer amor & tomar vinho.
O adolescente vestia uma camiseta preta com o desenho no
peito de um punho fechado socialista, calças Lee desbotadas
& calçava tênis branco com listras azuis. Você é minha
putinha, disse Pólen. Isso, gritou Luizinho, gosto de ser
chamado de putinha, puto, viado, bichinha, viadinho ah
acho que vou gozar todo o esperma do universo!
Neste instante um helicóptero do City Bank aproximava-se
pedindo pouso & os dois nem ligaram continuando com
suas blasfêmias eróticas heróicas & assassinas.
O guarda que estava no helicóptero então mirou & abriu
fogo.
Luizinho ficou morto lá no topo do Edifício Copan com
uma bala no coração.
Por onde é preciso começar?
Pólem não sabia mas seu olho sabia, sua mão sabia, sua
política cósmica sabia.
Hermafrodita morto no musgo mais alto. Suas baleias de
ternura, suas tranças do mais puro ouro, suas sardas em
torno do narizinho meio arrebitado & insolente.
Luizinho era uma sombra dentro do seu coração anarquista
& rápido suas lágrimas quebraram o aço dos elevadores com
seus guinchos de múmias eletrificadas ondas de reflexos
polaróide em frente à Igreja da Consolação rostos picados
nos escritórios & seus violinos enfadonhos, o amor
começaria por uma perda?
A atmosfera cor de azeitona era um alívio para o coração
metralhado pela dor construída ao crepúsculo doente em
cargas elétricas & surdas feitas de veludo & espinhas de
peixe um rodízio de aberrações crispou o rosto de Pólem
que agora tomou um ônibus & percorreu São Paulo num
suspiro rodando & rodando por aquela massa cinzenta do
capitalismo periférico sem escapatória & suas grandes asas
cobriam o Sol & seus escorpiões.
Enquanto isso os cinemas sofriam ataques contínuos de
office-boys armados com estilingues & bolinhas de gude &
partilhavam da turbulência do Grande Terror com
máscaras feitas de folhas de bananeiras & bermudas
justíssimas onde podia-se ver magníficas coxas & lindos pés
descalços com tornozelos rodeados com florzinhas amarelas
& muitos traziam a palavra COMA-ME costurada na
bermuda na altura do cú.
Naquela tarde todo mundo estava com vontade de nadar
em sangue.
anjos da verdade pensou pólem em sua calma
estranguladora de babuínos agora devem começar as
quermesses com leitões coloridos purê de maçã & delicados
tutús à mineira ostras de Cananéia apimentadas servidas
com retumbantes batidas de Maracujá (a fruta da paixão)
codorninhas recheadas com uvas passas & torresminhos com
queijo ralado o verão bem poderia chegar com seu perfume
de acarajé invadindo os colégios fazendo os adolescentes
terem ereções & as garotas desmaiarem de desejo com seus
pequeninos seios latejantes.
agora
um anjo pousou
em seu ombro
& pólen adormeceu
Quando acordou alguém tinha deixado em suas mãos o
livro As Américas e a Civilização de Darcy Ribeiro & ele
desceu do ônibus para sentar na praça Buenos Aires & ler.
Abriu na página 503 & leu:
"Os Guerreiros do Apocalipse.
Uma vez implantadas as bases do estado-militarista na
América do Norte, uma série de acontecimentos comoveram
a opinião pública, os governantes, os militares, conduzindo
toda a classe dirigente do país a crises sucessivas de
apavoramento e histeria."


APAVORAMENTO Nº 1

dezoito garotos & dezoito garotas foram emparedados vivos
em caixas construídas com chicletes que só Adams fabrica &
tostados dentro de um porão de arsênico & cascavéis.


APAVORAMENTO Nº 2

quinze adolescentes de ambos os sexos foram chicoteados na
bunda por batalhões da TFP que os insultavam enquanto
trezentos rapazes & moças de seita imperialista Hare
Krishna cortavam rodelas de cebola & colavam em seus
olhos.


HISTERIA Nº 1

a confraria reacionária Unidos em Série promovedora de
festivais de telenovelas nas fábricas jogou uma substância
criadora de histeria CBK7 no reservatório de água de um
colégio de freiras & as alunas peidavam 3 dias & 3 noites
sem parar & depois se flagelaram & crucificaram.


HISTERIA Nº 2

setenta adolescentes fascistas do Colégio Objetivo criaram
no laboratório de química (com o auxílio de alguns
professores) uma substância hipnótica cuja finalidade é
levar a vítima ao arrependimento seguido de crises de
misticismo histérico.
Esta substância foi testada no bairro operário da Moóca &
durante 2 meses às 6 horas da tarde na Avenida Paes de
Barros os operários se reuniram para rezar.

Pólen costumava organizar sua vida às quintas-feiras mas
estávamos numa quarta & sua loucura era da pesada sem
distinção de raça credo ou cor & uivava pelas ruas com
duas panteras pintadas em seu peito falando com os amigos
sobre as poesias de Maquiavel, Cesar Borgia, Castruccio
Castracani o herói das galáxias medievais no início da era
burguesa dos chinelos & pincenê agora devidamente
catalogada na Ruína Absoluta sem permeios Kennedyanos
na mexerica & suas pompas fúnebres.
O trombadinha quis saber se Pólen acreditava no lúmpen.
O trombadinha tinha sido descabaçado por um esquimó
bolsista da P.U.C. Pólen declamou doze poemas escritos
contra a C.I.A. O trombadinha queria dar.
Pólem comeu-o ali mesmo, depois de roubar sua camisa.
O trombadinha queria mais.

pólem então chamou seu amigo economista sádico &
classicista & fez ele comer o trombadinha que suspirava
dizia palavrões inflamados pedia para ser cintado e chamado de
Arlete & toda a imaginação delirante de Eros irrompeu no
cérebro do economista que queria ver a vertigem de perto
antes de se converter para sempre ao ateísmo militante
soltando suas farpas contra a figura de Nonô o Curandeiro
padroeiro do trombadinha.

Coxas (1979)


ANTROPOLÍTICA DE ENTREGA EM PROFUNDIDADE

1- Transformar a praça da Sé em horta coletiva &
pública
2 - Acelerar o processo de desinibição
3- Provocar focos revolucionários na confraria reacionária
Unidos em Série
4- Ouvir música tentando conceber o Universo Paralelo
5- Pintar desenhos obscenos nas ruas
6- Desmascarar os limites do mistério
Pólen amou Lindo Olhar debaixo de um ipê roxo junto à
fogueira.
O Agente Cartesiano tentou ganhar Coxas Ardentes no
papo.
O Agente Cartesiano queria um festival de paixões &
sonhava com manufaturas.
O Agente cartesiano tremia ao ouvir palavras como: carga
de espinafre, gavião berolina, fundo da flor, polvo nômade,
saci prancheta, colarinho de gorila, nascido no mato, ovo
de turco.
O Agente Cartesiano foi morto por Coxas Ardentes no
melhor estilo renascentista com anel de veneno & tudo.
A agulha de tricô carismática
(rock balada: letra & música
de Coxas Ardentes)
pele de foca Nabucodicanduras
ganhou uma lebre ao amanhecer
gelou suas patinhas na crista da onda
espetou seu coração no punhal
do engraxate
agora a costela escoteira corre a língua
na bunda adormecida
o punhal é anfíbio
Coxas Ardentes tomou um gole de Kirsch & seus olhos
arderam em lágrimas pensando no hamburguer com bacon
por comer & seus amores passados & a solidão presente em
marcha agônica de Wagner urso do salão Nietzscheano
propiciador de omeletes de queijo com vinho verde &
batucadas pornosambas de Luiz II da Baviera & Peter Gast
tocando zequinha de Abreu ao piano enquanto Cosima Wagner
fritava salsichões vienenses para o grupo de filólogos &
Lou Andreas Salome onde acendeu seu fogo dionisíaco &
pitagórico para além do horizonte de palavras mortais de
Coxas Ardentes que só terá descanso quando estiver nos
braços do Andrógino Antropocósmico.

Coxas (1979)


9- NORTE/SUL

A caravana ladra & os cães passam
você mija na boca aberta da bicha
os anjos quebraram suas coxas no muro do hotel todo
vermelho de susto
o leitão blindado dança no zig-zag de Heronimus Bosch
seu tango de petúnias
o botão de controle da Sala das Torturas
no porão do hospital é um olho parado amarelo
vozes cachos de tâmaras tafetás rasgados de onde salta a noite
gritos de garotos de botas e biquinis
sendo flagelados por vinte putas alucinadas de cocaína
corredores apinhados de gerentes de banco
dando o cú para druidas com os paus embrulhados em
celofane
peidos sintonizados de vinte mil pombas no telhado
La terra trema
galáxias alvejadas derramando seu suco sobre nossas
cabeças
Hitler sacudindo seu pau mole para os Capitães de Areia
locomotivas nas planícies bêbadas de vinho
ilhas magnéticas rolando pelos mares
com seus pássaros exóticos tocando banjo & flauta doce
o garoto sofreu o ataque da ave de rapina chamada Zeus &
seus testículos hipnotizaram a luz do sol vedando a
adoração da luz para os patriotas do pornosamba & suas
matracas tatuadas
La terra trema
a toca do coelho paranóico & sua Baviera de folhas verdes
ronronando até o ponto máximo da febre amarela
Muchachos ragazzi garçons boys garotos com vaselinas-antenas
duplas mãos na escadaria da Pensão Coração Adormecido pés
descalços pisam bocas entreabertas dos irmãos
transbiológicos
travesseiros recheados de penas pornográficas
vôo rasante da última senzala iluminada gargalhando de
esplendor.

Coxas (1979)




Cliente da mucosa

Exu comeu Tarubá & você nunca
foi a Pamaribo
quando garoto eu me impressionei
com o estudo de Lawrence sobre
Edgar Allan Poe
nunca mais esqueci
assim como não esqueci Ferreira da
Silva & nossas leituras de
Sein und Zeit
hoje posso me virar do avesso, amor
como o escorpião que injeta no
seu braço
leites vindouros não jorrados
doce choque na porta de suas tripas
o suor é amigo e concubina
nesse sol maluco que azucrina
& me faz levitar amando as
estrelas derrubadas.

Quizumba


Lamento do Pajé Urubu-Kaapor

antes
de desaparecer
no
túnel
das nuvens
chega o vento
a caixa do céu
se abre
a estrela
no olho às
vezes
é o
coração que bate
estou sozinho
no topo
dos hemisférios

Ilha Comprida, 91

Ciclones (1997)


Revelações

para Jacques Vallée

frio nas fronteiras de topázio
abandonei-me ao mês do Deus do vento
floresce no meu corpo um ponto secreto
entre os cometas vivos do êxtase
Mairiporã, 94

Ciclones (1997

ROBERTO PIVA OU A ARTE DE TRANSGREDIR



João Silvério Trevisan (*)


A história pessoal do poeta Roberto Piva começa e gira em torno da cidade de São Paulo. Ele cresceu e formou-se entre a capital e as antigas fazendas do pai, no interior do Estado de São Paulo. Seus primeiros poemas foram publicados em 1961, quando tinha 23 anos. Nessa mesma época, integrou a famosa Antologia dos Novíssimos, de Massao Ohno, na qual se lançaram vários poetas brasileiros iniciantes, que depois desenvolveram uma obra poética de importância. Piva formou-se em sociologia.

Sobreviveu em grande parte como professor de estudos sociais e história. Em suas aulas aos adolescentes do segundo grau, costumava trabalhar as matérias a partir de poemas que os fazia ler e interpretar. Foi um professor de muito sucesso, com rara vocação como pedagogo. Nos anos de 1970, tornou-se produtor de shows de rock. Piva mora em São Paulo, cidade que lhe parece apocalíptica, exemplo do que não deve ser feito contra o meio ambiente, mas que forneceu todo o pano de fundo para sua obra poética. Tem medo de avião.

Por isso, raramente se distanciou demais da capital, de onde foge sempre que pode, de ônibus ou carro, sobretudo para o litoral sul do estado de São Paulo, refugiando-se em casa de amigos na Ilha Comprida ou em pensões baratas de Iguape. É lá que realiza seus rituais xamânicos e entra em contato com seu animal xamânico, o gavião.

A genealogia poética de Roberto Piva apresenta raízes e inclui influências muito raras na literatura brasileira, formando uma mistura-fina que é única por sua erudição, mas também por sua transgressão. Começa com Dante Alighieri. Ainda na década de 60, por três anos Piva aprofundou-se nos estudos da Divina Comédia, orientado por Eduardo Bizzarri, adido cultural do Consulado da Itália em São Paulo. Esse contato com Dante foi como seu imprinting poético-filosófico: marcou para sempre sua visão de mundo, sua política e sua poesia.

Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, Piva começou a aprofundar sua experiência mais direta com o sagrado e a vida interior.

A entrada em cena de Hölderlin e dos poetas expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl temperaram essa experiência com uma ponta de pessimismo, que deixou de ser circunstancial quando, ainda na década de 60, Roberto Piva teve contato com a obra de um filósofo praticamente desconhecido, no Brasil do período: Friedrich Nietzsche.

À experiência juvenil de Piva agregou-se a contundência desse profeta pessimista e decifrador da alma moderna. Mas nem só de espírito, nem só de intelecto fez-se o aprendizado juvenil de Roberto Piva, que cedo descobriu Rimbaud e Lautréamont, recebendo a influência desses dois poetas visionários, que extrapolam os limites da expressão racional e das escolas literárias.

A partir daí iniciou-se em sua vida o cultivo do rimbaudiano “desregramento de todos os sentidos” para se chegar à poesia. Das vanguardas do começo do século 20, Roberto Piva absorveu lições do surrealismo, na vertente francesa de André Breton, Antonin Artaud e René Crevel. É um dos três únicos poetas brasileiros a constar no famoso Dicionário Geral do Surrealismo, publicado na França. A partir de Artaud, Piva incorporou a idéia de que existe um compromisso absoluto entre poesia e vida.

O dito artaudiano “para conhecer minha obra, leia-se minha vida” teve em Piva a contrapartida: “só acredito em poeta experimental que tem vida experimental”. Também é flagrante em sua poesia a influência dos futuristas italianos (com seu culto à fragmentação moderna), acrescida de algumas expressões musicais da contemporaneidade do pós-guerra, através da onipresente marca do jazz e da bossa nova, duas fidelíssimas paixões de Roberto Piva. Mas há mais duas fortes presenças contemporâneas em sua poética. Uma é a beat generation americana, da qual Piva não só absorveu a estilística fragmentada e a temática que aproxima o contemporâneo do arcaico, mas através da qual também sedimentou a orientação basicamente transgressiva dos costumes do seu tempo.

Na década de 70, a transgressão foi reforçada pela descoberta do outsider Pier Paolo Pasolini, protótipo do intelectual-profeta que caminha nas frinchas do paradoxo. Dos poetas brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, expontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética de Roberto Piva evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico.

Suas constantes caminhadas xamânicas pela represa de Mairiporã e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo, além de Jarinu, no interior do estado, selaram sua ligação sagrada com a natureza.

Essa sacralidade é, para Piva, a única salvação possível ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza como parte do seu projeto consumista. No quadro da recuperação do sagrado e do mágico, enquanto forças da natureza, Piva passou a estudar e praticar o xamanismo. Para aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza, foi buscar elementos não apenas em teóricos como Mircea Eliade, mas sobretudo nas culturas indígenas brasileiras e na prática do candomblé. Ele não só cultua seus orixás (Xangô, Yemanjá e Oxum), mas também toca tambor para invocar seu animal xamânico, o gavião.

Paralelamente a essa trajetória em direção ao sagrado, Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um: a ingestão de drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar a tradição dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois: o culto a uma erótica homossexual, resgatando para a modernidade o amor grego, como um componente de transgressão do desejo.

Tome-se, como referência, seu "Poema XIV", de 20 Poemas com Brócoli, dedicado ao Carlinhos:

"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas

coxas imberbes & brancas.

vou dilapidar a riqueza de tua

adolescência. vou queimar teus

olhos com ferro em brasa.

vou incinerar teu coração de carne &

de tuas cinzas vou fabricar a

substância enlouquecida das

cartas de amor." (20 Poemas com Brócoli, 1981)

Os traços mais presentes na obra de Roberto Piva giram em torno dessas influências ou ao menos partem delas. Trata-se, antes de tudo, de uma poética de transgressão: na abordagem, na temática e na quebra de fronteiras entre os contrários. Portanto, uma transgressão que desemboca no paradoxo - por exemplo, entre carne & espírito, vida & obra, contemporâneo & arcaico. Sua expressão poética persegue o rastilho da escrita automática de extração surrealista: recuperar para a poesia os estados primitivos do sonho e da loucura.

No caso de Roberto Piva, talvez fosse mais adequado falar em escrita delirante. Essa prática levou, também no caso do poeta brasileiro, à utilização do método da livre associação de idéias, a partir da crença na importância poética do inconsciente. Resultado: metáforas explosivas que Roberto Piva articula com estonteante propriedade. Do seu poema “A vida me carrega no ar como um gigantesco abutre”, veja-se o final delirante:

"minha dor é um anjo ferido

de morte

você é um pequeno deus verde

& rigoroso

horários de morte cidades cemitérios

a morte é a ordem do dia

a noite vem raptar o que

sobra de um soluço". (Coxas, 1979)

Ou, no início do seu "Poema VII" de 20 Poemas com brócoli, note-se a homenagem embutida numa metáfora explosiva, que mistura elementos de sensualidade contraditória:

"mestre Murilo Mendes tua poesia são

os sapatos de abóboras que eu calço

nestes dias de verão." (20 Poemas com brócoli, 1981)

Outro traço marcante na obra de Roberto Piva é o total desmantelamento da versificação métrica, influência modernista que, no seu caso, caotiza-se, na tentativa de transpor para a poética escrita o ritmo sincopado do jazz e a respiração do músico de jazz.

A rítmica entrecortada, a batida imprevista e a respiração irregular, com notas se sucedendo lânguidas, são traduzidas inclusive numa distribuição desordenada dos versos o espaço da página. Veja-se como o poema dança, neste seu "O Robot Pederasta":

"Não vale

sair

com asas

onde

o cra cra cra cra cra cra cra

cra cra cra cra cra cra

se amassava

nas

velas apagadas

quem

quer

o telhado

de lágrimas?

beberei veneno

contra

teu temperamento

alegria que se

espera

raio X de gente que

desce do alto

porta acesa

olhar inchado no escuro

Signorine, la danza della Morte è servita

algumas ficaram

LOUCAS" (Piazzas, 1964)

Depois, veio a influência do cinema. Trata-se de uma obra pontuada por cortes cinematográficos que remetem ao cinema experimental, com passagens abruptas de espaço, tempo e imagética. Confira-se neste “Ganimedes 76”:

"Teu sorriso

olhinhos como margaridas negras

meu amor navegando na tarde

batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de

fuligem

cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão

rococó

força de um corpo frágil como âncoras

gostei de você eu também

amanhã então às 7

amanhã às 7

tudo começa agora num ritual lento & cercados de

gardênias de pano

Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde

de São Paulo como um desejo espetacular tão

dopado de coragem

marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti

assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem" (Abra os olhos e diga Ah!, 1976)

No geral, temos uma temática muito diversificada, que parte do urbano e quotidiano, passando pelo erótico e carnal, até atingir o metafísico e o sagrado. Confira-se neste trecho do seu "Beija-flor badulaque":

"nus & feéricos/ olho no gatilho meia-lua/ nado esta

manhã a favor da correnteza/ à deriva/ no miolo do

furacão/ eu era uma Sibila entre os gonzos da lingua-

gem/ Samba-Vírus/ exus nanicos carregando cabaças

de pedra da lua no portal do meu ouvido/ cruzamento

das Avenidas Assassinato & 69/ garoto-pombinha no

balcão da lanchonete/ esperando o pernilongo da Mor-

te/ estrelas rachadas gotejam leite dos deuses/ é com

este que eu vou sambar até a Pradaria -Kamikase/ no

trecho Belém-Brasília da Teogonia" (Quizumba, 1983)

O resultado geral é uma expressão poética fragmentada, que resume exemplarmente as soluções expressivas, as inquietações e encruzilhadas da contemporaneidade. Assim, Roberto Piva inaugurou traços singulares no contexto poético brasileiro, que fazem de sua obra uma das mais originais e inovadoras dentro da poesia brasileira contemporânea. Como sempre esteve eqüidistante das escolas conhecidas, pode-se dizer que ele é sua própria escola.

Roberto Piva persegue e vive o ideal do poeta-profeta, como menciona em seu "Poema Vertigem":

"Eu sou uma metralhadora em

estado de Graça

Eu sou a pomba-gira do Absoluto".

No espelho da poesia, sua imagem é daquele que reflete, de modo nem sempre aceitável, os paradoxos da contemporaneidade, através dos seus próprios. Define-se a si mesmo como um anarquista de direita. E, muito contemporaneamente, ama as corridas de carros, ainda que criticando o culto à tecnologia. Com suas transgressões na vida e na poesia - que formam um só organismo - Piva veio para confundir.

Por ser incômodo, recebe mais pedras do que reconhecimento dos seus contemporâneos. Para não falar da conspiração de silêncio da qual sua obra poética tem sido vítima.

Como gente demais no Brasil não o conhece, encerro com mais um exemplo da sua contundência. Saboreiem este festival de musicalidade, ritmo e delírio expressivo em seu

"Piazza V", um dos poemas mais emblemáticos da sua obra emblemática:

"Oswald Spengler tem uma

porta no seu tornozelo

& nuvens através dele

limpando a pele

que projeta

um velho cachecol marrom

em seu olho

eu penso

pelos seus

líquidos compassos de sátiro

até

um cenário de músculos

impedido de esmagar

o carvão de

vidro verde

que aquece

a estrela nua de

anteontem

Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo

batendo

até

altas horas" (Piazzas, 1964)



(*) João Silvério Trevisan (Brasil, 1944). Ficcionista, ensaísta e tradutor. Autor de livros como Em Nome do Desejo (romance, 1983), Devassos no Paraíso (ensaio histórico-antropológico, 1986), e Seis Balas num Buraco Só: A Crise do Masculino (ensaio, 1998). Palestra proferida na Biblioteca Mário de Andrade, 24/04/96, em São Paulo. Posteriormente publicada em Pedaço de mim (Ed. Record, 2002).