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quarta-feira, outubro 22, 2008

Os 80 anos do cineasta-acadêmico


Luiz Carlos Merten (AE)

SÃO PAULO - Comemoram-se hoje os 80 anos do único acadêmico entre os grandes diretores do cinema brasileiro. A Nelson Pereira dos Santos pode-se aplicar a definição, mas não no sentido muitas vezes depreciativo com que ela é usada no domínio da cultura, para indicar o artista que segue regras e não ousa muito, nem do ponto de vista estético nem político.

Ao longo de sua memorável carreira, mestre Nelson muitas vezes apontou caminhos, mas ele é, no sentido mais literal, acadêmico pelo simples fato de integrar a Academia Brasileira de Letras - o único diretor brasileiro acolhido como membro na casa fundada por Machado de Assis. Deve ter contribuído para isso o fato de Nelson Pereira dos Santos ter adaptado tantos autores, não apenas Graciliano Ramos e Jorge Amado, mas também Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues e Guilherme de Figueiredo.

Ele nasceu em São Paulo, no dia 22 de outubro de 1928. Cineclubista ardoroso, iniciou-se na prática cinematográfica integrando a equipe do longa "O saci", como assistente de direção de Rodolfo Nanni. "O saci" é de 1953. Três anos mais tarde, no Rio, o próprio Nelson virou diretor e, assimilando o neo-realismo, fez "Rio 40 Graus" e, na seqüência, "Rio Zona Norte".

O primeiro teve problemas com a censura da época, mas já apontava o caminho. Nelson voltava-se para o Rio dos excluídos, do morro e da favela, onde bicheiros e sambistas se misturavam, numa época anterior à atual violência do tráfico. A favela ainda era, naquele tempo, o barracão de zinco e Zé Kéti podia soltar o verbo proclamando que era a voz do morro.

Nelson saltou do morro para a da classe média urbana ("O Boca de Ouro"), antes de tomar o rumo do sertão, para fazer, com sua primeira adaptação de Graciliano Ramos ("Vidas secas"), um dos marcos definidores do movimento chamado de Cinema Novo. Ele voltou à cidade, agora na Zona Sul ("El justiceiro"), e em 1968, um ano emblemático, fez o filme talvez mais atípico de sua carreira, o mais vanguardista ("Fome de amor").

Vieram depois seu manifesto antropofágico ("Como era gostoso o meu francês"), a incursão pelo universo dos orixás ("O amuleto de Ogum"), o flerte com Jorge Amado ("Tenda dos milagres"), o casamento com os sertanejos ("A estrada da vida") e o outro grande marco adaptado de Graciliano, "Memórias do cárcere".

Multiplicidade

O que é mais rico no legado de Nelson Pereira dos Santos é que ele não é um, mas múltiplo, adaptando seu estilo às necessidades específicas das histórias que, em diferentes momentos de sua evolução, quis contar. Ele pode ser neo-realista nos primeiros filmes, mas, a despeito de sua preocupação social, a luz e o enquadramento de "Vidas secas" têm um quê de Michelangelo Antonioni - e Antonioni, mais Alain Resnais, estão presentes nas pesquisas de linguagem de "Fome de amor".

A antropofagia de "Como era gostoso" também marcou época e a índia Ana Maria Magalhães come a carne e chupa os ossos do francês vivido por Arduíno Colasanti para que o diretor, no pós-68, discuta as relações entre colonizados e colonizadores.

O que há de tosco em "A estrada da vida" pode ser estratégia. Nelson Pereira filma a vida de "Milionário e Zé Rico" - o pré-"2 filhos de Francisco" - para mostrar o artista como trabalhador. O grande momento do filme é quando eles trabalham na reforma da loja de discos e sua música começa a ser tocada. "Memórias do cárcere" representa o apogeu. O relato autobiográfico do velho Graça nas prisões do Estado Novo é pretexto para falar do Brasil que está prestes a encerrar o ciclo da ditadura militar.

Pode-se gostar mais de alguns filmes ("Vidas secas", "Memórias", "Como era gostoso" e "Fome de amor"), pode-se deplorar outros ("Quem é Beta?", o próprio "Jubiabá"), mas a obra de Nelson Pereira dos Santos não é só coerente. Na sua medida, como cineasta e escritor (roteirista), ele é representativo de sua geração, que quis pensar o Brasil e, mais do que isso, quis resgatar a identidade do brasileiro na tela. O movimento do Cinema Novo não representou outra coisa senão esse desejo de colocar o Brasil e os brasileiros nas telas dos cinemas.

Não surpreende que Nelson tenha adaptado, para TV, um livro fundamental como "As raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda. Em 1995, com "Cinema de lágrimas", ele não só resgatou o melodrama como expressão autêntica do cinema da América Latina. Fez também sua autocrítica, e a crítica de sua geração. No afã de filmar o Brasil, Nelson, Glauber Rocha, Joaquim Pedro, Ruy Guerra etc, muitas vezes estavam tão adiante de seu tempo que o povo na tela não tinha o contraponto do público nas salas.

Tudo isso é história. Nelson, aos 80 anos, é um jovem que ainda acalenta seu sonho de filmar a vida de Castro Alves. Só teremos a ganhar, talvez, se ele conseguir concretizá-lo.

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