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segunda-feira, outubro 27, 2008

Uma garota da pesada



Ubiratan Brasil (AE)

SÃO PAULO - A mulher que hoje exibe com orgulho sua gravidez na praia, que freqüenta bares e botecos sem restrições, que pode soltar palavrões em conversas animadas sem causar espanto, a mulher que, enfim, goza de plena liberdade deveria acender uma vela por noite para Leila Diniz. O conselho é do escritor e jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, autor da biografia "Leila Diniz - Uma revolução na praia" (280 páginas, R$ 39), que a Companhia das Letras acaba de enviar para as livrarias.

Musa da revolução social dos anos 1960, a atriz não precisou levantar bandeira nem queimar peças íntimas para chacoalhar o conservadorismo da época - bastou ser ela mesma. E, se desfrutou bem a vida, também pagou caro por isso. Ao dizer abertamente, com todas as palavras e palavrões, o que a maioria só afirmava às escondidas, Leila, que praticava a liberdade sexual em uma sociedade nada tolerante, despertava amor e ódio.

É o perfil dessa mulher que toma contorno a cada página lida (em alguns momentos, devorada) de Leila Diniz. Esqueça, no entanto, aquele relato minucioso, em que cada gesto, cada suspiro, até mesmo o pensamento mais íntimo do biografado é revelado - Ferreira dos Santos dedicou-se durante dois anos e meio a pesquisas e entrevistas, buscando entender a modernidade trazida espontaneamente pela atriz, mas, como bom repórter, privilegiou o retrato da alma.

"Conversei com praticamente todas as pessoas que tiveram algum contato com Leila", conta o jornalista que, no início da carreira, chegou a entrevistá-la, o que ajudou a reconstituir com segurança a forma com que a atriz se expressava entre os amigos. Segundo ele, uma fonte valiosa são os diversos diários escritos por Leila, hoje bem guardados pela amiga Marieta Severo. "Diversas editoras já fizeram ofertas para publicar o material, mas Janaína, filha da Leila, ainda resiste em aceitar pois considera muito íntimo o teor dos escritos."

Mas o despojamento com que Leila Diniz desfrutou seus 27 anos, vida tragicamente interrompida por um acidente de avião na Índia, em 1972, permitiu com que Ferreira dos Santos entendesse o que representaram os efeitos do furacão Leila, artífice de uma mudança radical no comportamento das mulheres que hoje vivem melhor.

Vocação para a revolução - Com um sorriso estonteante e capaz de gestos impensáveis, como posar grávida de biquíni, Leila Diniz era a estrela com vocação para revolução. "O curioso é que ela não se preocupava com isso", garante Ferreira dos Santos. "Leila queria apenas que cada um vivesse bem e não fosse cobrado por ser revolucionário ou careta."

É essa vontade desbragada de viver que os amigos guardam como melhor recordação. Maior até que sua carreira artística. Leila teve uma boa passagem pelo cinema (14 filmes entre 1966 e 1972), que não impediu, porém, que se afirmasse como grande atriz. Veio do teatro rebolado, participou de telenovelas ("Ilusões perdidas" e "O sheik de Agadir") até começar no cinema com pequenas participações em "O mundo alegre de Helô" (1966), de Carlos Souza Barros, e em um dos contos de "Jogo perigoso" (1967), de Luiz Alcoriza, chamado "Divertimento", todas pontas insignificantes.

Sua consagração ocorreu mesmo com "Todas as mulheres do mundo". Dirigido por Domingos Oliveira (um dos diversos homens de sua vida) em 1966, o filme é uma comédia de costumes sobre as aventuras de um rapaz (Paulo José), que paquera as belas mulheres das praias cariocas. Na contramão do cinema brasileiro de então, marcado por produções engajadas, "Todas as mulheres do mundo" revelava uma nova forma de amar e, principalmente, uma nova mulher. "Já nessa época, Leila era diferente ao encarar o relacionamento amoroso", conta Ferreira dos Santos. "Ela não queria o homem como antagonista, mas como companheiro. Não um oponente, mas um parceiro."

Ao entrevistar as pessoas que conviveram com Leila, o biógrafo descobriu detalhes saborosos e pouco conhecidos. Foi com o cantor Sérgio Ricardo, por exemplo, que ela teve sua primeira relação sexual. E a famosa foto em que Leila ostentava orgulhosa sua barriga arredondada, grávida de cinco meses (algo tão ousado que mereceu um espaço minúsculo na revista "Cláudia", que publicava uma matéria com ela), foi sugestão da própria. "Leila exibia uma naturalidade muito grande em relação ao corpo, que encarava sem moralismo", diz Ferreira dos Santos.

Uma facilidade também ao falar, comprovada pela famosa entrevista ao "Pasquim", em 1969. Novamente, uma quebra de barreira: foi a primeira vez em que uma conversa foi publicada de forma literal, ou seja, com todos os comentários e palavrões. Assim, é possível imaginar olhos arregalados lendo frases como "Você pode amar muito uma pessoa e ir para a cama com outra" ou "Eu só tive um homem negro. E não vou comparar meus homens porque é sacanagem".

Um prato cheio para o regime militar, que resolveu intimar a atriz, promovendo uma história espetacular. Leila era jurada do programa de Flávio Cavalcanti, apresentador conhecido por ser conservador até a medula. Mas, ao perceber que dois policiais estavam no auditório para entregar uma intimação à estrela, ele armou um plano genial. Com o programa no ar, Cavalcanti permitiu que Leila saísse do palco para ir ao banheiro. Nos bastidores, ela entrou em um carro e rumou para Petrópolis, onde vivia o apresentador. "Hitchcock assinaria a cena com orgulho", diz o biógrafo.

Apesar da má fama, Leila tinha sentimentos maternos e amou a filha Janaína até seu último segundo de vida, registrado no diário encontrado nos destroços do avião, na Índia. "As saudades de Janaína são muitas", escreveu ela, cujas derradeiras palavras são arrepiantes. "Estamos chegando em Nova Déli. Segundo anunciam, a temperatura local é quase a do inferno. Quente paca. Agora está acontecendo uma coisa es..."

Leila, por ela mesma

. "É difícil ser fiel. O homem não é fiel. Uma mulher deve ser? As mulheres ainda não estão preparadas para essa experiência e para essa igualdade entre o homem e a mulher".

. "Talvez eu seja no fundo a mais ingênua das criaturas, a mais cristã e ideológica que se possa imaginar. Esperava do mundo uma sinceridade e uma honestidade clara e simples como a que eu pretendia e pretendo lhe dar, mas vi que não era bem assim e fiquei um pouco confusa, daí, por isso, minha forma de dar e de receber tenha se modificado um pouco".

. "Quando se está livre de toda a capa de educação, de `boa educação', de `direitinho', das normas, dos preconceitos e tudo o que é ensinado pra gente, se pode ter uma visão de vida e de mundo, uma maneira de viver muito mais livre e divertida. Muito mais aberta".

Leila, por seus amigos
. "Eu queria filmá-la nua, venerar a deusa, mostrar ao mundo o deslumbramento que sua alma e seu corpo tinham me causado" (Domingos Oliveira, sobre "Todas as mulheres do mundo)

"Não cabiam duas mulheres numa mesa em que a Leila estivesse. Ela fazia um gênero em que acreditava muito, sempre animada, da mulher que não sofria, que levava a vida brincando. Armava um pedestal, subia nele e ficava." (Danuza Leão)

. "Moça que sem discurso nem requerimento soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão."(Carlos Drummond de Andrade)

. "Fiquei pensando nos significados da existência de uma mulher tão feminina, de seios tão oferecidos, de alma tão disponível, mulher respeitável, desfrutável, uma musa, um enigma." (Ana Miranda)

. "Ao exibir na praia sua barriga grávida, Leila demonstrou que a maternidade sem o casamento não era vivida como um estigma a ser escondido, mas como uma escolha livre e consciente." (Miriam Goldenberg)

. "Leila ganhou importância sobretudo como pessoa humana. Desabusada, alegre, ela teve coragem de assumir em público sua independência de mulher e sua qualidade de mãe solteira." (Rubem Braga)

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