Pesquisar este blog

quinta-feira, maio 21, 2009

O dia em que o boi deu bode (final)


Rogelio Casado, Renato Pitanga, eu e Engels Medeiros, em uma das cachaçadas no Bar Espírito de Poucos

No café da manhã servido no barco reconheci o baixinho. Meio desconfiado, ele me contou que passara a noite inteira cochilando debruçado na amurada da embarcação. Sim, ficara com medo de ser enrabado. É, eu era muito grande e estava bêbado. Riu muito quando contei o prefácio da tragédia não consumada.

Mais tarde, apresentei os dois salafrários, Engels e Simas, para ele. Depois de conversarem uns dez minutos, o baixinho e Engels foram para o camarote. Aproveitei a oportunidade para dar um “ralho” no Simas. Ele reagiu, com uma fúria quase homicida. Moleques de18 anos costumam se achar os donos do mundo.

Engels voltou pra mesa uma meia hora depois com uma pacoteira de dinheiro. Havia vendido toda a nossa carga semi-preciosa para o baixinho. Não consigo lembrar o nome dele (Altevir? Cleomar? Anacleto?), lembro apenas que o sujeito era uma espécie de caixeiro-viajante e nos garantiu que aqueles produtos iriam fazer o maior sucesso em Óbidos, seu (dele) destino final.

Quando descemos no porto de Parintins, por volta do meio-dia, o Carlos Almeida já estava nos esperando. Depois de um lauto almoço na sua residência, ele nos levou – sob protestos furiosos do Simas, que preferia ir para um boteco – para conhecer a central telefônica que dirigia.

Até hoje, estúpidos que somos, nem eu nem Engels soubemos a razão daquela visita extemporânea. Conhecer uma central de telefônica movida por relés do tempo do onça? Catzo, a gente conhecia centrais de transmissão de áudio e vídeo, nos sistemas PAL-M e NTSC, muito mais modernas do que aquela. Qual era o tapa da pantera?... O diabo é que o Carlos estava tão feliz com seu novo emprego, que relevamos o assunto.

A jiripoca começou a piar quando, por volta das 16h de sábado, Carlos nos deixou à própria sorte na cidade (mas nos dando, providencialmente, uma cópia da chave da residência), argumentando que precisava se concentrar porque, naquela noite, ia ser jurado de um festival de bois-bumbá. Ele, o prefeito, o juiz, o delegado e o bispo.

Pra nossa sorte, a residência dele ficava no centro da cidade e a gente estava cheio da grana (uns R$ 10 mil, numa época em que o salário mínimo não valia R$ 200). Mal caminhamos trezentos metros, e descobrimos um oásis. Foi conta de multiplicar. Em menos de 15 minutos, nos apossamos do boteco, cujo charme era uma antiga juke box, aqueles caixotes cheios de lâmpadas e gás neón, que tocavam músicas à base de fichas, e que a gente, na Cachoeirinha, chamava de "penteadeira de putas", porque as mulheres, invariavelmente, ao escolherem uma música, se debruçavam de uma maneira tão escandalosa sobre a juke box, que todo mundo no bar enxergava as calcinhas.

A gente estava começando a encher a caveira, quando o dono do pardieiro perguntou se a gente não ia assistir ao último dia do festival dos bumbás, que, segundo ele, era a oitava maravilha do Planeta. Dispensamos o convite. Nosso negócio era encher a cara e depois ir correr atrás de vagabundas.

De boi-bumbá, a gente só conhecia Corre Campo e Tira Prosa, ambos da zona centro sul de Manaus, e o Mina de Ouro, lá do Seringal Mirim. Carlos nos advertira antes que os bois de lá se chamavam Caprichoso e Garantido, que um era negro e tinha a cor azul, e que o outro era branco e tinha a cor vermelha.

Querendo se entrosar com os nativos, Engels não podia ver um brincante se dirigindo para o Tabladão, que logo se enroscava no sujeito, oferecia uma cerveja "de grátis" e brindava à vitória do referido boi.

Normalmente, o sujeito aceitava. "De grátis, eu aceito até injeção na testa e três pontes de safena na moleira porque quem não chora na linha é piranha", ele dizia, antes de entornar a garrafa de uma golada só. Nunca entendi que merda era aquilo.

O diabo é que a confraternização inicial, inapelavelmente, ricocheteava para um quase crime de honra. Como ninguém entendia direito os rituais da presepada, Engels abraçava um vaqueiro vestido de vermelho e fazia um brinde ao Caprichoso. O sujeito, imediatamente, o empurrava com violência e disparava:

– Êi, parente, tu tá me estranhando? Cê quer que eu lhe tire o bucho agora mesmo com uma peixeira? Eu num sô corno não, fio da égua! Pra gostar do Caprichoso, só sendo um corno da tua raça...

Resolver o mal entendido, homeboys, dava um trabalho da moléstia. Na maioria das vezes, o dono do bar tinha que intervir na situação e explicar que a gente era turista. Ou, no linguajar deles, "uns cabocos metidos a marrentos vindo de Manaus, mas cheios de bosta no cueiro".

Engels bem que se esforçava para decorar o texto, mas o excesso de birita não permitia. Entrava um pajé no bar, com aqueles cocares maravilhosos, ele se levantava, pagava uma cerveja pro sujeito e fazia um brinde ao Garantido. Na maioria das vezes, o pajé era do Caprichoso e lá se instalava a desordem.

Eu e Simas nos limitávamos a se meter no meio da encrenca, pedindo mil desculpas encarecidas e garantindo que a brincadeira de mau gosto nunca mais seria repetida. Ninguém sabia que o boi podia dar bode.

Pra ser sincero, só vim descobrir que essa rivalidade entre os dois bois era verdadeira – e que podia descambar em morte – por volta de 1995, quando participei de uma festa no curral do Caprichoso. Ou seja, muito tempo depois.

Não me recordo direito, mas a gente deve ter gasto mais de mil paus naquele boteco pro dono do pardieiro se transformar em nosso segurança perpétuo.

De vez em quando, um dos humildes torcedores dos bois entrava no bar, comprava uma ficha e colocava uma toada pra tocar. Ele, o torcedor, ficava em pé, perto da “penteadeira de puta”, curtindo a música. O sacana não devia ter grana pra comprar um refrigerante. Todo seu dinheiro era investido na audição da toada do seu boi de coração.

De repente, numa das maiores putarias que já presenciei na vida, Engels comprou 50 fichas e colocou pra tocar a mesma música, direto, sem intervalos. Acabou com os torcedores dos bois. E, o mais triste, é que a música escolhida era uma merda (salvo engano, “Don’t go breaking my heart”, de Elton John e Kiki Dee). Até eu fiquei enfurecido.

Saímos do boteco por volta das 21h (estávamos lá desde as 17h), mudamos de roupa na casa do Carlos – que ainda estava julgando os bumbás –, e, completamente loucos, fomos para o Palmeiras, considerado na época o melhor clube da cidade. Bastou o Engels distribuir alguns trocados entre os seguranças e os garçons para virarmos os “reis da noite”.

Era tanta mulher na nossa mesa e tantos seguranças tomando conta da gente, que resolvemos testar o limite da desordem. As músicas mais animadas que rolavam no baile – com a presença das melhores famílias da cidade, é bom frisar – eram “babas” do tipo “Cavaleiro de Aruanda”, do Ronnie Von, ou “Vem quente que estou fervendo”, do Erasmo Carlos.

O Engels subornou o DJ, eu catei alguns compactos de black music que estavam por lá sem nunca terem sido abertos e colocamos – imagino! – uma seqüência alucinante: “ I Got You ( I Feel Good)”, do James Brown, “Get Off”, do Foxy, “Got To Be Real”, do Cheryl Linn, “Sex Machine”, do James Brown, e “Celebrate Good Times”, do Kool & The Gang. A pista bombou.

Foi quando o Engels inventou o “passo do troglodita”: ele socava os dois braços, completamente rígidos, para baixo, e levantava, simultaneamente, as duas pernas na altura dos ombros. Em menos de dez minutos, todo mundo no salão estava dançando daquele jeito. Sim, a gente era a novidade da cidade. Fazer o que?

Retornamos pra residência do Carlos por volta das 5h da manhã, sabendo que o barco Dona Eliomar – um pouco maior que o Comandante Farias – ia partir de Parintins por volta do meio dia. Carlos estava meio aborrecido porque a nossa fama de biriteiros, bons dançarinos e cantadores renitentes de vagabundas havia chegado até na Paróquia.

O bispo, provavelmente durante o julgamento dos bumbás, o havia admoestado severamente pelo baixo nível comportamental dos “novos inquilinos”. Para nossa sorte, o Carlos sempre foi um anti-clérigo radical e reagiu com a hombridade esperada refugando as infâmias e as calúnias contra nós assacadas. Pelo menos, foi isso que ele nos contou enquanto embarcávamos pra Manaus.

De repente, não mais que de repente, Engels adentra no barco trazendo no pescoço um filhote de macaco de cheiro. O sauim não devia ter uns três meses. O responsável pelo barco foi peremptório: “Se o IBDF descobrisse aquela merda – leia-se tráfico de animais selvagens –, até o barco seria apreendido”.

Pra não perder a viagem nem o macaquinho (um presente para sua filha, Mônica, que devia estar com quatro anos), Engels comprou uma gaiola, jogou o sauim dentro, cobriu a gaiola com uma capa plástica, e embarcou. Os gritos lancinantes do macaquinho logo começaram a perturbar os passageiros.

Todo mundo queria ajudar aquele “passarinho” extremamente raro (estava numa gaiola, pois não!), que Engels – pra não retirar a capa de proteção – explicava não poder ter contato com qualquer tipo de luz (natural ou artificial) senão “perdia as penas”. E haja alpiste, minhocas, ração pra cachorro, mariposas, favos de mel e o diabo a quatro. A porra do “passarinho” só sossegava um pouco quando o Engels, discretamente, introduzia uma banana nanica na gaiola.

Por volta da meia noite, a palma de banana nanica acabou e o macaquinho entrou em um desespero existencial. Ele gritava como se alguém estivesse retirando seus culhões com uma gilete cega. Só sossegava um pouco quando o Simas dava uns três chutes na gaiola e ela só faltava emborcar de cabeça pra baixo. Era quando o sauim tinha absoluta certeza de que desgraça pouca é bobagem.

A viagem até Manaus foi nesse diapasão. O macaquinho guinchava, Simas acordava, dava três chutes caratecas na gaiola, ele sossegava o facho e daí a meia hora a esculhambação era repetida. Pavlov teria achado o máximo.

Por volta do meio dia, aportamos em Manaus. Engels levou seu “passarinho” pra casa, eu e Simas fomos tomar umas geladas lá pras bandas da Cachoeirinha, e tudo voltou a ser como antes no quartel de Abrantes.

Uns seis meses depois, quando a poeira baixou, pedi notícias do sauim. Criado solto, segundo o Engels, ele havia se convertido em um gentleman. Era tratado diligentemente pela Mônica, comia na mesa, entrava na casa pra dormir, brincava nas árvores (Engels morava no arborizado Conjunto Tiradentes), adorava tomar banho de shampoo, era perfumado a cada meia hora, e, de repente, um belo dia, simplesmente desapareceu. Engels acredita que ele foi morto por algum vizinho invejoso. Eu, não.

É apenas uma teoria pessoal, claro, mas desconfio que entre ser tratado diligentemente pela Mônica, quase se aviadando com shampoos e perfumes franceses, ou receber a cada meia hora três chutes caratecas do Simas, ele teria escolhido de bom grado a segunda opção. Como ela não foi colocada na mesa, na primeira oportunidade que teve o sauim escafedeu-se. O macaquinho era macho, pô! Eu, no lugar dele, teria feito o mesmo.

Feliz aniversário, mon ami!

Um comentário:

Sayonara Melo disse...

Simão, ri demais com essa história... na verdade, sempre que leio tuas crônicas, rio muito... Grande abraço.

P.S: Solicitei a exclusão de minha conta no orkut, fato que ainda não aconteceu talvez por algum problema de ordem, técnica ou bagunça mesmo (deles é claro... estou colocando alguns amigos na minha rede do msn... quando enviar o convite, espero que aceites. Bj