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quarta-feira, maio 20, 2009

Recordando um maluco beleza


No início dos anos 80, quando o movimento da chamada “poesia marginal” atingia seu momento mais criativo e produtivo, eu me correspondia – isto é trocava livros mimeografados, cartas literárias, jornais alternativos e fanzines – com quase 200 poetas de todas as partes do Brasil.

Muitos continuam na ativa ainda hoje (Glauco Mattoso, Ulisses Tavares, Nicolas Behr, Alcides Buss, Cláudio Feldman, Leila Miccolis, Marçal Bezerra, Floriano Martins, Moacir Cyrne, Euclides Amaral, Cairo Trindade, Zanoto, Sebastião Nunes, Denise Teixeira, Tânia Diniz, Clotilde Tavares).

Outros sumiram sem deixar pistas (Marise Pacheco, Réca Poletti, Lucia Villares, Raul Christiano Sanchez, Álvaro Cardoso, Aristides Klafke, Marcelo Dolabela, Moema Cardoso, Rita Espechirt, Rafael Marques Ferreira, Chiquinho, Rosenberg Cariri, Kátia Bento, Luiz Fafau, Wir Caetano, Ivone Vebber, Paco Cac, Eno Teodoro Wanke).

E há ainda aqueles que somem e depois aparecem, somem e depois aparecem, feito curupiras enlouquecidos. Hélio Leites é um deles.

Nascido na Lapa (PR), em 1951, Hélio Leites é curitibano por adoção. Amigo de Paulo Leminski e Wilson Bueno, ele cursou xilogravura, monotipia, colagem, desenho e cerâmica. Era poeta multimídia antes de o termo ser banalizado pela mídia. Desde 1974, Hélio participa de diversas exposições/ performances poéticas pelas cidades do Brasil e do exterior, tendo integrado a Bienal Alternativa na Cidade do México.

Artista de múltiplas linguagens, Hélio sempre teve a arte postal como uma de suas verdadeiras paixões e é conhecido por trabalhar com materiais inusitados, criando performances com caixas de fósforos, retrós de linha, pequenos objetos e, especialmente, botões. Nas primeiras correspondências que me enviou, aliás, o envelope vinha recheado de confete – segundo ele, “um botão de papel”.

Além de criador da Assintão (Associação Internacional dos Colecionadores de Botão), Hélio Leites é secretário geral do Fiu Fiuuu Sport Club (já gravou mais de 100 mil assobios de todas as partes do Brasil e do mundo), diretor de Harmonia do GRES Unidos do Botão, coordenador da Campanha Mundial Anti-taxidermismo, secretário geral da Associação Internacional dos Kinderovistas, curador dos museus dos Óculos, da Caixa de Fósforos, do Lápis e do Mini-Presépio, também respondendo pela coordenação do Espaço Lilituc – Galeria de Miniaturas.

Sobre Hélio Leites, diz a professora e crítica de arte Adalice Araújo, em seu Dicionário das Artes Plásticas do Paraná: “Em suas experiências com Box Art, pode-se afirmar que pela primeira vez na história da Arte Brasileira um artista consegue propor uma pop art nacional e paranista. Sem copiar os estereótipos do primeiro mundo e sem cair tampouco no folclore, inova com elementos do cotidiano e do imaginário imbuídos de uma síntese histórica, antropológica e psicológica do nosso dia a dia. Suas obras superam a atitude lúdica para serem icônicas e inquisitivas e, com suas aparentes brincadeiras, fazem sérios questionamentos filosóficos e culturais.”

Portanto, foi com certa surpresa que, no início de uma tarde de sexta-feira do longínquo ano de 1985, o escritor Rui Sá Chaves, dono da livraria Cabocla, me telefonou:

– Tem um cara muito louco, aqui na livraria, dizendo que é teu amigo. Disse que é o poeta Hélio Leites, de Curitiba, e que te trouxe uns presentes. Falei que você estava trabalhando, aí no Distrito Industrial, mas ele disse que só sai daqui depois de falar contigo.


Quando cheguei na livraria, por volta das 18h, nem precisei me esforçar para identificar o sujeito (que eu não conhecia nem de fotografia). Estava na cara que Hélio Leites era aquele cara alto, com cabelo espetado, óculos imitando “oncinha”, um estranho abanador em forma de mão humana e uma roupa brilhante, cheia de badulaques, parecendo um parangolé do Hélio Oiticica.

Na realidade, o parangolé era seu manto oficial de presidente da Assintão, contendo mais de 1.500 botões de todos os tipos e cores pregados na roupa. A primeira coisa que ele me obrigou a fazer, depois dos cumprimentos efusivos, foi pregar um botão no referido manto (Helio andava com uma caixinha cheia de botões, agulha e linha).

A livraria Cabocla ficava ali na Praça São Sebastião, de forma que levei o poeta performático para o Bar do Armando para apresentá-lo ao resto da turma (Arnaldo Garcez, Marco Gomes, Jorge Palheta, Antonio Paulo Graça, Rosendo Lima, Nestor Nascimento, Rogelio Casado, Ernesto Penafort, Almir Graça, Inácio Oliveira, etc).

Quando Hélio se abanava com o leque, sentado de costas, a mão humana parecia estar acenando para as pessoas por cima de seu ombro – e muita gente, supondo tratar-se de um aleijão, respondia aos acenos. Uma zona. Até o próprio Armando Soares ficou assustado com aquela autêntica metamorfose ambulante.

Além de artista minimalista, performer, poeta, contador de histórias e museu ambulante, Hélio tem um humor refinado, uma cultura enciclopédica e uma inteligência acima da média. Ficamos amigos de infância na mesma hora e comemoramos com um porre de juntar crianças. No sábado, ele se mandou pra Curitiba.

Em 1993, ele retornou a Manaus e a história se repetiu. Nos encontramos no final de uma sexta-feira, tomamos um porre no Bar do Armando, trocamos figurinhas, livros e fanzines, e na manhã seguinte ele se mandou pra Curitiba, rápido e certeiro que nem um azougue.

A única diferença foi que, dessa vez, ele conversou longamente com Antonio Paulo Graça, impressionado com a também cultura enciclopédica do escritor, e nos deu a cópia de um texto (“Mind Games”) que Leminski escrevera a seu respeito, alguns anos antes de morrer.

A última vez que nos vimos foi em fevereiro de 1999. Quando ele me telefonou, dizendo que estava vindo pra Manaus, impus uma condição: ele deveria permanecer pelo menos uma semana na cidade, por minha conta e risco. Como Hélio relutou em ficar hospedado na minha casa, eu e Marco Gomes o instalamos na Pensão dos Artistas, na rua Dez de Julho, a vinte metros do Bar do Armando. Ali, ele estava em casa.

Quando nos encontramos na primeira noite, no Bar do Armando, para acompanharmos um ensaio da BICA, a primeira coisa que Hélio notou foi a ausência do Antonio Paulo Graça. Quando expliquei que Paulinho havia falecido em junho do ano anterior, de infarto fulminante, ele ficou sorumbático e macambúzio. Foi a primeira vez que o vi perder o bom humor.

No sábado, o levei para comer um guisado de paca no leite da castanha, na casa do compositor Davi Almeida, ali no Beco do Macedo. Hélio não parava de fazer piadas. Ao abrir a freezer e observar o nosso futuro banquete, comentou: “Pô, essa paca entrou na maior fria!”. Ao observar atentamente uma janela lateral da casa emparedada por tijolos da casa do vizinho, ele parabenizou o Davi Almeida: “É isso que eu chamo de arte concreta!”

Vegetariano radical, Hélio nem chegou perto do guisado de paca, preparado com maestria pelo poeta Almir Graça. Como, no domingo, ele havia resolvido sair de barco para conhecer o encontro das águas, só voltamos a nos falar na noite de segunda-feira.

A gente estava conversando calmamente e tomando umas cervejas, quando apareceu meu sobrinho, João Ricardo, na época um adolescente pentelho. A equipe dele estava participando de uma feira ou gincana cultural no Colégio Objetivo, ali na rua Recife, e ele fora incumbido de levar um poeta (no caso eu, seu tio) no dia seguinte, sob pena de perderem alguns pontos. Transferi a tarefa pro Hélio Leites, que aceitou prontamente.


Foi como juntar a fome com a vontade de comer. De terça a sexta-feira, o poeta performático virou o centro de atenção da garotada, dos pais dos alunos e dos professores do colégio. Brincando o tempo todo com o imaginário e recorrendo às lendas e cultura popular, Leites fez crianças, jovens e adultos conhecerem o universo da miniatura e suas possibilidades em animação.

Entre outras presepadas, ele apresentou a história das bailarinas gêmeas, que cansadas de dançar o “Quebra-nozes” resolvem dançar sobre o pinhão, mostrou a história do verdadeiro rato de biblioteca, discorreu sobre a história do fogo desde o princípio da humanidade, fez uma releitura original da história do inventor da guilhotina e por aí afora. Tudo isso com personagens que cabem na palma da mão. E as surpresas não ficaram por aí.

No último dia, ele literalmente incorporou um teatro ao vestir um palco de onde saíam 17 quadros animados em caixinhas de fósforo. Era o capoeirista a gingar o corpo, a família a festejar mais um aniversário com bolo e refrigerante, e a pequena corruíra a construir seu ninho na caixa dos correios, entre outros. Um espetáculo de saltar aos olhos e balançar o coração.

Além das caixinhas, Hélio também apresentou o teatro do boné. Nele, anjos descem do céu e resolvem dar um mergulho num rio de águas cristalinas, por onde passam barcos, marinheiros, crianças e pescadores, e, ao final, para voltarem às nuvens, precisam dançar como bailarinas.

O mais legal é que as histórias não se repetem e ganham novos detalhes a cada apresentação. Para quem assiste, fica a vontade de levar para casa. Aliás, ele vendeu quase todos seus “(in)utensílios” minimalistas – mais de 40 – durante a feira. O resto (cinco peças), eu comprei e tenho guardado em casa até hoje.

A equipe do João Ricardo, evidentemente, obteve a pontuação máxima da gincana. Comemoramos a vitória no Bar do Armando, em uma nova cachaçada que entrou pela madrugada. No sábado pela manhã, Hélio montou no seu cavalo branco e sumiu na linha do horizonte. Antes de partir, ele me nomeou oficialmente como o mais novo cardeal da Igreja da Salvação pela Graça – também criada por ele –, cujo lema é “Deus é Humor!”.


Em Curitiba, o trabalho de Hélio Leites pode ser visto, aos sábados, na feira de artes e artesanato da Boca Maldita. No domingo, ele transfere sua barraquinha para a feira do Largo da Ordem, sempre pela manhã. “Não sou candidato a nada. Sou artista da pá virada. Faço arte sem pedir licença. Pego uma caixinha de fósforo, recheio e crio um monte de historinhas”, resumiu para Davi Almeida, até hoje um de seus fãs mais incondicionais.

Para os interessados em conhecer a “arte/teatro/artesanato” de Hélio Leites, o telefone é (41) 3338-4354. À moda antiga, ele também recebe cartas pela caixa postal 746, CEP 80.011-970 – Curitiba (PR).

Abaixo, uma entrevista dele para a TV Crato. Curtam.

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