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terça-feira, junho 02, 2009

Feitiço do tempo (final)


É de 1984 a divertida e pequena crônica de Domingos Pellegrini sobre o Movimento Botonico intitulada “Estamos Alugando Quartos”, publicada no jornal Folha da Tarde de São Paulo e transcrita no livro da Rita, que pode ser conferida a seguir:

Tia Clara começou a alugar quartos nos fundos, depois de tanto discutir com Tio Alex que, pra contar, era preciso um romance. Vamos então ao primeiro inquilino: um gaúcho magro, sardento, à primeira vista só um candidato a mais um destino comum – mas é, nada mais e nada menos que o secretário da Associação Internacional dos Colecionadores de Botão.

Disse que não podia pagar adiantado, mas trouxe um abacaxi – Pra senhora, tia – até descascou, ganhou Tia Clara no ato. Agora é Hélio pra lá, Hélio pra cá – e começo a pensar que ele trouxe também um outro abacaxi: a tal associação. Meu Deus! Lá em casa já se discutia tanto quanto se respirava – e agora mais ainda. Primo Pedro, por exemplo, não abre mão da lógica, e Hélio não abre mão da mágica:

Primo Pedro – Mas em quantos países existe tal associação?

Hélio – Por enquanto, só no Brasil e nos países do futuro, claro. Mas vai chegar um tempo em que homens de todo o mundo se sentirão unidos pelos botões, que sempre abotoaram sem distinção de classe, cor, sexo ou ideologia.

Primo Pedro – Você fala como se a História girasse em torno dos botões. Quantos associados vocês tem hoje?

Hélio – Meia dúzia. Se você se associar agora, ainda será um dos pioneiros. Um dia, a História até registrará a adesão de Petrus Botonicus, que é como te batizo agora.

Hélio anda com o blusão forrado de botões, e diz que alugou o quarto por ter achado, no assoalho, um botãozinho verde logo apelidado de Esperança Brasileira, “miudinho quase sumido mas ainda resistente”. Ele fala mostrando os botões.

– Veja que são variados como nós, mas sempre botões. E têm uma História, como não? No começo, botões quadrados, de quatro furos, depois redondos de dois furos, e desde então centenas de tipos de botão, até a Grande reforma dos Colchetes, chegando à Revolução do Zíper, nosso Inimigo Público Nº 1, sem falar no botão nuclear que simplesmente tem o poder de acabar com os botões e os abotoados.

Prima Paula faz uma “pergunta técnica”:

– Botões têm alma?

Por esta Hélio não esperava, fica piscando de surpresa e felicidade:

– Sim, por que não? Claro! E agora sei porque desde o começo, colocamos no nosso estatuto que as coleções botônicas devem ser só de botões usados, dados ou achados, nunca novos ou comprados para coleção. Seria como escravizar botões, não?

Tio Alex, em dia de grande inspiração aristocrática, lembra que antigamente, quando um nobre precisava meditar, simplesmente trocava de roupa sem ajuda dos criados:

– Eram tantos botões que, até se abotoar todo, o cidadão acabava pensando muito – e assim muitos países devem páginas de sua História aos botões...

Para Hélio, é mais que isso:

– O descobrimento do botão pode ser, para o homem, a revelação da própria alma, da própria pequenez, um microcosmo de humildade. Vejam que o primeiro botão foi achado numa múmia, e nem furo tinha ainda! De lá para cá, quanta evolução – mas, ainda não conseguimos entender o essencial da vida: continuamos nos abotoando brutalmente, usando os botões como usamos as pessoas e a natureza, sem prestar atenção e sem agradecer profundamente por tantas dádivas.

Primo Pedro põe uma jaqueta, fecha o zíper acintosamente e sai. Prima Paula pensa em voz alta com os botões:

– Realmente, Maurice Reis já disse que o gosto pela coleção é uma espécie de jogo passional. Para Baudrillard, nossos objetos cotidianos são, com efeito, os objetos da nossa paixão pela propriedade privada...

Hélio imediatamente arranca um botão e dá a ela:

– Achei na rua, portanto é um dos mais valiosos para mim. Fica como prova de que o homem botônico está além dos valores materiais.

– Então – Prima Paula vai fundo – por que não me dá toda a coleção?

– Antes – Hélio pede humilde – me diga por favor e sem olhar: qual a cor dos botões da tua blusa?

Ela não lembra nem a cor da blusa. Hélio sorri:

– Se você não cuida nem dos teus, por que quer cuidar dos meus?

Mas ela não desiste, discute, cita teorias, Hélio ouve como quem escuta chuva. E rebate docemente:

– Você pensa que sabe muito do mundo, mas reconheça, pouco ou nada sabe do que está a menos de um palmo do nariz...

Tio Alex tem um rompante cívico:

– Meu jovem, tem todo meu apoio! Nunca usei zíper na vida, todo dia me abotôo e, mesmo náufrago e pelado numa ilha deserta, continuarei me abotoando mentalmente. O botão é o último baluarte de dignidade da civilização!

Tia Clara suspira:

– Só que você nunca pregou um botão...

Mas Hélio está feliz:

– Me sinto como um botão: em casa...

E pensar que ainda temos dois quartos vagos! Estamos como o Brasil: o que vem por aí, ninguém sabe.


Antes de vira gadget de descolados como Kanye West, Hélio Leites já havia desenvolvido um óculos pra mostrar que não estava dando sopa

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