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quinta-feira, julho 16, 2009

A onda que levantou no South Bronx


Via e-mail, o economista Edmar Silveira, atualmente morando em Ji-Paraná (RO), faz uma nova provocação:

“Insigne e muy querido poeta, eu também concordo com o Xandico Bad Boy de que o rock continua superior ao rap. Apelar para o lance de Top 5, Top 100, Top Top, é sacanagem! O rock nunca foi mainstream nem na época do Led Zeppelin.

Tirando “Stairway to Heaven”, qual foi a outra música deles que tocou em rádio? Nenhuma. Programador musical de rádio, com raríssimas exceções, é tudo bicho ignorante e reflete quase sempre o conhecido (mau) gosto da patuléia. Xapralá!

Tirando isso, achei muito legal os toques que você deu sobre a parada lá dos mano e das mina. Tenho baixado quase tudo que você falou pelo site Pirate Bay e preciso de mais informações tipo quais as músicas de preto mais fodidas dos anos 80?

É que, por experiência prática, as cachorras daqui gostam mais desse tipo de som do que de rock – principalmente como trilha sonora de amasso dentro do carro. No mais, tenho acompanhado suas divertidíssimas histórias daqui desse adorável fim de mundo. Quando é que você vem me visitar? Soube que o Antonio Carlos Maciel está aí, pra fazer umas lambanças no congresso da SBPC. Se falar com ele, dê-lhe um amplexo. Abração.”

Porra, Edmar, você e o Xandico devem estar lendo meus posts usando o tradutor Babylon... Eu nunca falei que o rap era superior ao rock (se bem que, sejamos francos, esse rockinho de hoje, com raríssimas exceções, não passa de uma grande bosta) e tampouco me transformei em um renegado do tripé baixo-guitarra-bateria.

Das cerca de 20 mil músicas que tenho no HD, mais da metade é de rock. Papo sério. Dos anos 90 pra trás, tudo que saiu de interessante no gênero eu dei um jeito de “downloadar”. De funk clássico, devo ter umas 2 mil. De rap e hip hop, no máximo, umas 1.500. Mais umas 1.500 de reggae (incluindo dub, rock steady, dancehall e reggaeton). O resto é dance music – de disco clássico a deep techno.

Aliás, pra quem gosta de escrever, a melhor trilha sonora continua sendo dance music “no úrtimo”. Ela ajuda o sujeito a se concentrar e não deixa essa nossa solitária atividade se transformar em um velório. No meu caso, sou transportado invariavelmente para a época das “brincadeiras” e a memória começa a se exercitar. Calibrado com o velho escocês, então, sou capaz de amanhecer o dia.

O ó do borogodó é que os anos 80 foram a década em que o som dos bumbos veio à frente das mixagens junto com as mais graves freqüências de baixo sintetizado: o groove, a levada rítmica, imperou suprema e a pista de dança tornou-se santuário e sacramento de toda uma geração. Do hip hop à house music, a música negra ocupou seu lugar de direito depois de décadas de saque e pilhagem por atravessadores brancos

“Vidro quebrado por toda parte, gente mijando nas escadas / Você sabe, eles não estão nem aí / Eu não suporto o cheiro, eu não suporto o barulho / Não tenho dinheiro para me mudar, acho que não tenho escolha / Ratos na sala da frente, baratas na sala dos fundos / Viciados no beco com um taco de beisebol...”


Assim rappeava Grandmaster Flash, à frente de seus Furious Five, dando o tom realista das ruas do South Bronx, em Nova York, em “The Message”, um compacto que marcou o ano de 81.

O rap nasceu praticamente em 79, quando a Sugarhill Gang chupou a levada de “Good Times”, do Chic, para fazer “Rapper’s Delight” – dois milhões de cópias vendidas, Top Five nas paradas do Reino Unido, Canadá, África do Sul e Israel (rock que tocava nas rádios? “Another Brick In The Wall”, do Pink Floyd, e olhe lá...).

“O que você está ouvindo não é um teste / Estou rappeando sobre a batida / Eu, o balanço e os meus amigos / Vamos tentar fazer você mexer os pés”, convocava Henry Jackson, o MC Big Bang Hank, secundado pelos rappers Guy “Master Gee” O’Brien e “Mike “Wonder Mike” Wright, três moleques em situação de risco social oriundos da caipiríssima New Jersey. Ficaram milionários da noite pro dia.


A abertura da música (“I said a hip hop the hippie the hippie to the hip hop, a you don’t stop the rock it to the bang bang boogie say up jumped the boogie to the rhythm of the boogie the beat”) era uma ladainha quase intraduzível cantada pelas gangues em praticamente todas as festas do South Bronx.

No Brasil, o que tivemos mais próximo disso foi o grito de guerra “Uh, tererê!” (corruptela do refrão “Whoomp! There it is”, de uma música do grupo Tag Team, surgido inicialmente como grito de guerra dos torcedores do time de basquete Los Angeles Lakers significando algo como “Ah! É isso aí!”).

Poucos meses depois do estouro da boiada da Sugarhill Gang, era a vez de Kurtis Blow - inaugurando a tagarelice na linha “eu sou o maior” -, com “Christmas Rapping”. Um novo estilo estava criado. No ano seguinte, ele seria o primeiro MC a aparecer em um programa de televisão em rede nacional (“Soul Train”) cantando “The Breaks”, que vendeu mais de um milhão de cópias.

Mas quando é que o canto falado do rap deságua no chamado hip hop com sua explosão rítmica e eletrônica? Os pais da matéria são Afrika Bambaataa e o produtor Arthur Baker, que, em 82, surrupiam a melodia de “Trans-Europe Express”, do Kraftwerk, como base para um rap propondo total integração / comunhão de todos os povos, etnias, tribos e credos da Terra.


O compacto em questão, “Planet Rock”, vendeu mais de 600 mil cópias só no formato doze polegadas e é, sem dúvida, a cristalização do gênero que botaria a garotada break dancing pelas ruas dos grandes centros urbanos.

Em 83, era a vez do Run DMC, com “Sucker MCs”, e, através da agregação dos hip-hoppers nova-iorquinos em torno do produtor Rickie Rubin e seu selo Def Jam, o mapeamento da música pop incorporava um novo gênero, pisando na fronteira imprecisa entre rap, hip hop, e go-go de Washington (tendo à frente o Trouble Funk), todas as variantes entre o casamento da sensibilidade “ritmológica” com a nova tecnologia musical.


Em 84, o DJ Frankie Knuckles transformava o Warehouse Club, em Chicago, em um laboratório de mixagens inovadoras. A abreviação do clube batiza a house music - uma das últimas mutações do funk eletrônico nos anos 80 e a mais radical, por sua ênfase em ritmo puro, o som do bumbo e o som da caixa dando as coordenadas das intervenções sonoras. O groove em sua essência, sem necessidade de uma canção. A dança pela dança, produção de proveta dentro de um estúdio: o produtor assume não só os controles como os créditos e a concepção. Manipulação e colagem, com grande débito à discothèque dos anos 70.

Quando o duo local Phuture lançou seu LP Acid Trax - outros afirmam que a fonte é a expressão acid burnin’ para a chupação de músicas alheias via sampler -, estava dado o primeiro passo para o que os lançadores de modas londrinos carimbassem Aciiid!, uma volta à movimentação coletiva numa neopsicodelia de estampas multicoloridas, bandanas e o bonequinho Smiley.

A febre durou um verão - o de 88 - e produziu algumas preciosidades locais, como o Bomb the Bass, de Tim Simenon. Hoje, 20 anos depois, é muito difícil que alguma canção escolhida para ser editada em compacto não tenha sua versão em mixagem acid. Enquanto isso, os produtores reagiram ao desgaste e à pasteurização com o deep house, trazendo seus tecnomantras mais próximos da canção, com estrofes e refrão.

Bom, meu querido Edmar, na minha modesta opinião, os dez compactos racha-assoalho da década são os seguintes (se a meninas rondonienses não derem pra você depois de uma trilha sonora dessas, leia com fervor quase religioso o “Alô, Doçura!”, que estou enviando pelo Antonio Carlos Maciel):


KISS – Prince
A música dos 80, fato confirmado por ter gerado já duas regravações: a primeira, mais hard e guitarreira, com o Age of Chance, e a segunda - mais bem-sucedida comercialmente, ressuscitando o vocal “clássico-canastra” de Tom Jones embalado com toda a elegante sofisticação hi-tech do Art of Noise. Mas, como sempre, o original é imbatível: uma profusão de guitarras rítmicas, desdobrando um riff infeccioso, cantos e contra cantos do mestre se divertindo a valer em cima de uma letra sacana, inteligente, perfeita. “You don’t have to be beautiful...”

SEXUAL HEALING – Marvin Gaye
Programação rítmica quase humana de tão sinuosa, um riff de guitarra sinuoso como uma serpente e a mais doce voz da soul music. Assim como “Kiss”, uma grande canção de amor que é também um grande estímulo dançante. O destino quis que se tornasse o réquiem de um gênio do pop.

PLANET ROCK – Afrika Bambaata & The Soul Sonic Force
Hip hop no berço, mamando na finesse melódica-eletrônica do Kraftwerk e gerando transes coletivos sob seu groove seco e sintético, numa explosão que justifica um dos maiores clichês da década: “pop tribal”.

GENIUS OF LOVE – Tom Tom Club
O casal-cozinha dos Talking Heads, Chris Frantz e Tina Weymouth, em férias no Caribe com um punhado de convidados pega o rap ainda embrionário (entre 80 e 81) e faz uma suave declaração de amor à música negra, citando Bob Marley, Bohannon, Sly & Robbie, Kurtis Blow e, é claro, James Brown (a edição brasileira do compacto trazia na capa: “Melô do James Brown”). Em seu primeiro LP, o próprio Grandmaster Flash a utilizaria como base para um de seus raps. Logo na seqüência, lançavam “Wordy Rappinghood” - a mesma perfeição rítmica-melódica-singela - e, juntos, os dois compactos venderam muito mais que tudo que os Talking Heads haviam lançado até então.

THE MESSAGE – Grandmaster Flash & The Furious Five
O rap como retrato da vida no gueto, cru, nu, duro, seco. Não teve, nas paradas americanas, o mesmo sucesso de “Rapper’s Delight” da Sugarhill Gang, mas foi votado “melhor compacto de 81” por todos os críticos da Inglaterra, viciando irreversivelmente a ilha da Donzela de Ferro no novo som dos 80.

TOUR DE FRANCE – Kraftwerk
Os legítimos pais do tecnopop não poderiam ficar de fora e quebraram uma de suas hibernações para surgir com esta preciosidade de hipnose melódica, o seqüenciador como um coração lânguido. Inspirados na maratona ciclística que anualmente percorre a Europa, presentearam produtores de TV do mundo inteiro com um fundo sonoro ideal para tomadas em movimento.

BLUE MONDAY – New Order
Quase simultânea ao LP Power Corruption Lies, esta canção - verdadeira locomotiva rítmica, identificável pelas primeiras socadas do bumbo - bateu até recordes de vendagem: é o comparto de doze polegadas mais vendido na Grã-Bretanha até hoje. Com sua síntese Kraftwerk / Eurodisco, livrou finalmente a banda do estigma Jov Division e chegou a influenciar a house music de Chicago e, por extensão, a acid house.

WALK THIS WAY – Run DMC
A partir do original do Aerosmith, o Run DMC sintetizou o cruzamento branco-metálico com negro-rap’n’hop que influenciou meio mundo, dos Beastie Boys a grupos de heavy propriamente ditos. Um dos sons mais pesados que já se ouviu e dançou na face do planeta.

RELAX – Frankie Goes to Hollywood
O selo ZTT fabricou a imagem, reciclagem debochada do disco gay, o produtor Trevor Horn sampleou o bumbo de John Bonham em Led Zeppelin II e fez cascatas sintetizadas simulando uma ejaculação estereofônica para um refrão muito sutil – “Relaxe! Não faça isso quando quiser gozar” - e a BBC vetou em sua programação, enquanto o compacto pulava para o primeiro posto das paradas. No fim, “Relax” rendeu até uma divertida ponta para o grupo no filme Dublê de Corpo, de Brian De Palma.

PUMP UP THE VOLUME – M/A/R/R/S
A colagem desenfreada desencadeando processos judiciários e gerando a acid house britânica. O sampler, misto de gravador digital com instrumento musical, se consagrava definitivamente como a arma mortífera (nas pistas de dança) número um da década. Seu estouro mundial entupiu os cofres do 4AD, selo independente inglês que até então era mais conhecido pelos sobretons gótico-etéreos de grupos como Bauhaus e Cocteau Twins. Pra ouvir no volume máximo.

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