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sexta-feira, outubro 23, 2009

Três histórias de Mestre Carlito


1
Cego de nascença e considerado um dos mais hábeis violonistas da história do Amazonas, Mestre Carlito estava descansando em casa, numa tarde de sábado, quando chegou Alderico, seu amigo de longa data, implorando por um violão emprestado.

Carlito relutou, mas o papo de Alderico foi tão convincente, que ele acabou cedendo seu inseparável violão espanhol Alhambra, modelo 8C, com tampo de cedro maciço, fundos e laterais de jacarandá indiano, escala de ébano e tarrachas do tipo Alhambra Deluxe Gold Plated.

O sujeito explicou que devolveria o instrumento no mesmo dia. O domingo amanheceu e nem sombra do violão.

Uma semana depois, Carlito começou a ficar preocupado. O sujeito havia tomado chá de sumiço. Ele se queixou da presepada para seu inseparável parceiro, o também músico Rinaldo Buzaglo.

Duas semanas depois, Rinaldo Buzaglo descobriu onde Alderico morava. Ele passou na casa de Carlito, embarcou o violonista no carro e rumaram para o moquifo do sujeito, lá pras banda da Praça 14 de Janeiro.

A dona da vila onde Alderico morava não tinha notícias do violão, mas concordou em ensinar o endereço da empresa onde o rapaz trabalhava, lá na Cidade Nova.

Os dois rumaram pra lá. Alderico recebeu Carlito com frieza, disse que estava muito ocupado e que só podia cuidar de assuntos particulares depois do expediente.

Eram 9 horas da manhã. Rinaldo e Carlito resolveram montar campana em um bar perto da empresa e aguardaram pacientemente pelo final do expediente do sujeito.

Seis horas da tarde, voltaram a abordar Alderico. Ele embarcou no carro e os três rumaram para a Praça 14.

Quando estavam se aproximando da rua Nhamundá, Alderico mandou Reinaldo pegar à direita. Carlito protestou:

– Que é isso, cara? A tua casa é nessa rua, mas dobrando à esquerda...

– Eu sei, meu mano, eu sei! – explicou Alderico. “Mas nós não vamos lá em casa não. Nós vamos passar primeiro ali na casa da mãe Ângela de Iansã, chegada recentemente de Codó, no Maranhão. Ela é uma cartomante poderosa e a única pessoa capaz de colocar vidência e descobrir o paradeiro do teu violão...”

Nunca mais o velho Alhambra foi encontrado.

2
Mestre Carlito estava acompanhando Chico da Silva em uma excursão pelo Pará, tocando em cada um dos 5 mil garimpos de Itaituba e aproveitando as horas de folga para fazer um arranjo diferente para uma nova música de Rinaldo Buzaglo.

Numa manhã de domingo, o cantor parintinense foi participar de uma animada “pelada” com os garimpeiros do “Vai Quem Quer” e o violonista ficou sozinho no saguão do hotel, tentando tirar novos acordes para a música do Rinaldo.

Depois do café da manhã, Mestre Carlito se sentou numa mesa perto da piscina do hotel e continuou entretido naquela tarefa de tirar acordes dissonantes do seu instrumento, quando, numa mesa ao lado, dois garimpeiros mortos de bêbados começaram a discutir. Um deles foi peremptório:

– Olha, caralho, a gente não precisa ir muito longe não! – explicou o sujeito, visivelmente irritado, colocando com estardalhaço um revolver Taurus calibre 38 cano longo em cima da mesa. “Todo vascaíno que eu conheço é ladrão, corno, viado, maconheiro, filho da puta, bandido, mau caráter, trambiqueiro, nojento, safado, vagabundo, trampolineiro, vigário, qualira e tem a mãe na zona! Eu tenho nojo de vascaíno! Não posso ver um vascaíno que tenho logo vontade de passar bala. Ô raçazinha de filhos da putas, essa dos vascaínos!”

Aí, virando-se subitamente para o músico, questionou:

- Você não concorda, parente?

Vascaíno até a alma, Mestre Carlito teve que concordar, assentindo alegremente com a cabeça.

3
Morador do conjunto Beverly Hills, o violonista Altairzinho tinha um pastor alemão chamado Ringo, que ganhou esse nome porque era tão ou mais violento quanto o famoso pistoleiro do cinema: o cão “não perdoava, matava!”

E matava qualquer coisa que tivesse vida própria e entrasse em seu campo de ação.

Num determinado domingo, Mestre Carlito e Rinaldo Buzaglo estavam enchendo a cara no boteco de um posto de gasolina, próximo do conjunto Santos Dumont, quando bateu uma saudade inexplicável do Altairzinho.

– Vamos fazer uma serenata pro Altairzinho, compadre? – propôs Rinaldo.

– Só se for agora! – devolveu Mestre Carlito.

Eram quase cinco horas da manhã de segunda-feira. Pra lá de Marrakesh, os dois entraram no fusquinha de Rinaldo e rumaram para o conjunto Beverly Hills. Lá chegando, pularam o muro da casa.

Mestre Carlito retirou a gaita do bolso, se agachou embaixo da janela de Altairzinho e começou os primeiros acordes de “Diamante cor-de-rosa”. Rinaldo entrou com o violão, logo na seqüência.

Ouvindo aquilo, Altairzinho abriu a janela e acendeu a luz com o coração apreensivo: se Ringo escutasse aquilo iria estraçalhar os “invasores”. Ele quase caiu pra trás, com a cena.

Ainda agachado, com uma das mãos Mestre Carlito tentava afastar as patas de Ringo dos seus ombros – enquanto o cão insistia em lhe lamber o rosto – e com a outra mão livre continuava soprando a gaita.

Para Altairzinho só havia uma explicação: no fundo, no fundo, o seu violento pastor alemão nutria um desejo secreto de ser guia de deficiente visual.

E se Mestre Carlito não fosse cego, com certeza teria saído correndo com a aparição do famigerado cachorro.

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