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segunda-feira, dezembro 06, 2010

João Broco


Amaral Cavalcante (*)

Havia um Ministério das Endemias Rurais - ou algo assim - cuidando dos barriga d’água, nordestinos hospedeiros da esquistossomose.

Uma lombriga insidiosa que se escondia no caramujo e debilitava de amarelidão e inchaço o pobre sofredor. Problema nacional.

Cuidava o Governo Federal de erradicá-la nos idos de 60, usando, pasmem os senhores, de métodos tão modernos como a exibição de curtas em super-oito, didáticos e de fácil produção, nos rincões do interior.

Eu mesmo tive a primeira emoção cinematográfica assistindo a curtas exibidos no oitão da Igreja de Sant’Ana, em Simão Dias (um fenômeno tecnológico sem igual), onde me eduquei sobre não cagar na beira do rio e a tomar cuidado com os nefastos caramujos.

Fiquei ciente de que o bichinho saía percorrendo uma linha pontilhada do cocô para o caramujo e dele para um pobre menino, desenhado sem pinta, que andava de bobeira por ali.

Cadê que eu nunca esqueci? A emoção do cinema ficou aquela maravilha na minha cabeça.

Em Itaporanga d’Ajuda, instalou-se um posto médico de referência estadual onde, por força da lei, todo mundo devia se submeter a um diagnóstico pós-exame de fezes obrigatório. Vinha gente de todo canto.

Vai que um dia a minha elegante amiga Maroquinha lá estava esperando os resultados na ante-sala cheia de conhecidos, quando irrompe o conterrâneo João Broco, doidão respeitável da nossa Simão Dias, sobraçando diligente uma lata de leite Ninho.

- Dona Maroquinha, tá por aqui? Onde é que entrega as bosta?...

Vergonha!

Maroquinha se escondeu detrás da enorme bolsa em napa dourada (que pontuava naquele tempo o vestuário elegante de qualquer mulher) e saiu de fininho.

João, vistoso nos seus 120 quilos de pança, nem percebeu.

Adernando o esvoaçante capote tomou rumo e, com a lata de quilo já aberta no nariz da atendente, lascou:

– Será que dá, minha fia?

Fedor da peste!

Mas esse João Broco merece mais: consta que era sobrinho-neto do Barão de Santa Rosa e, portanto, o doido exponencial da cidade.

Morava numa rua boa, a janela sempre aberta pra vender galinha.

Saía, de capotão negromonte, ruínas de bico esfolado e tresloucado olhar, oferecendo poedeiras para cria e frangotes de abate. Bordejava nas janelas das famílias:

- Quem não compra é porque é pobre!

Mamãe comprava sempre que pobre era o que não se podia ser, naquela Simão Dias.

Só que era muito displicente, o maluco do João Broco: trancava a porta fazendo não sei o que lá pra dentro e deixava, ao léu da rua, o seu criatório galináceo, para ciscar besteiras na sarjeta.

Um dia, estávamos brincando de gude - jogo de cinco búricas com direito à luz de papone - quando uma galinha pedrês do sobrecu estufado engoliu a bola rajada, jóia do meu plantel. Grande prejuízo.

Era nada menos que a temida Caterpila, capaz de detonar, no teco, qualquer besteirinha de vidro que se colocasse entre ela e o pódio, no último buraco. Uma legenda olímpica.

Catila, vulgarmente conhecida, era respeitada até na gandaia da Rua do Pastinho, onde, de vez em quando, eu me aventurava garantido pela grandalhice do meu primo Carlinhos de Valério, um gordo mole de briga que, muito raramente, assoava o nariz, mas dava medo de grandão que era.

Certa vez, depois eu volto à galinha pedrês, fomos de turma ao pastinho aplicar o golpe do pau-de-bosta, que era o seguinte: um pau melado na ponta e você sabe de que é uma briga simulada.

- Fi duma égua, sua mãe tá na torre!

Junta gente, chega, chega, aí vem um besta querendo apartar.

- Então, segure o pau que vai ser na mão mesmo!

É ele segurando e o pau escorregando o troçoio nojento na mão do otário. Fedor da peste!

Mas e a galinha, como foi?

Não havia como deixar por menos: até a meia noite, cada um ia à janela do doido gritar:

- Seu João Broco, a galinha já cagou?

E isso só acabou de manhã, quando João Broco (sobrinho-neto do Barão) solicitou providências enérgicas, na janela lá de casa, e foi prontamente atendido com a simples exibição do cinturão do meu pai.

O que já é outra história... mas era cada lapada!


Amaral Cavalcante é jornalista, poeta e boêmio. Contatos através do email: folha.da.praia@terra.com.br

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