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terça-feira, agosto 23, 2011

Alguns apontamentos sobre o UFC Old School amazonense


A partir dos anos 80, dezenas de academias de artes marciais começaram a surgir em Manaus e com elas as primeiras gangues organizadas.

Diferente dos pit-boys de hoje, que costumam atacar suas vítimas indefesas sempre em bando, as gangues de antanho tinham, digamos assim, uma ética mais elaborada.

Havia brigas por espaços territoriais, mas as disputas eram no mano a mano, um contra um, utilizando exclusivamente os punhos e os pés, como no UFC ou no M-1.

O sujeito que estivesse apanhando também podia pedir para parar – e era atendido! – sem que o mundo desabasse sobre sua cabeça.

Duas gangues de adolescentes fizeram história naqueles tempos românticos.


A turma de natação do Olímpico Clube, apelidada de “Peixes”, era comandada por Kaco Caminha e tinha como referência a boate Starship, localizada na avenida Constantino Nery quase no canto com a Leonardo Malcher, nas proximidades da antiga sede do Olímpico, mas sua área de influência se estendia até a Praça da Saudade.

Eles eram representantes típicos da geração saúde: não bebiam, não fumavam e nem cheiravam.

Entre seus principais membros estavam Bidida, Gula, Mistral, Botinho, Kaola, Nego, Antônio Flávio e Ulisses Motomaq.

Eles treinavam judô, jiu-jítsu, karatê e kung fu.


A Polícia Organizada na Praça (aka “Pop”) era comandada por De Ouro, se reunia na Praça do Congresso e tinha como referência a boate Crocodilo’s, na rua Marcílio Dias, no centro velho da cidade.

Eles eram representantes típicos da geração da pá virada: bebiam, fumavam e cheiravam.

Entre seus principais membros estavam Willard Oliveira (aka “Careca”), Brecha, Val, Raimundão, Ernani Piau, Afonsinho (irmão do atual desembargador Flávio Pascarelli), Exu, Dodô (aka “Bicho do Mato”), Raí Maraca, Arlindo Angola, Eder, Celso Gioia, Pixilinga, Ricardo Bilha e Edir.

Eles treinavam judô, jiu-jítsu, capoeira e boxe tailandês.


Nascido Hideraldo da Mata, De Ouro era um caboco baixinho (1,60 cm) e entroncado, que virava o cão chupando manga quando entrava numa briga.

Versado em artes marciais adaptadas para brigas de rua, ele chegou a morar seis meses no Rio de Janeiro para treinar jiu-jítsu com Renzo Gracie, de quem havia se tornado amigo.

Além de ser habilidoso nas lutas no chão, De Ouro também era bom na trocação em pé: seu murro tinha a potência de um coice de mula e seus chutes eram nitroglicerina pura.

O famoso apelido ele recebeu de sua avó materna assim que nasceu (“Esse aqui é um menino de ouro”) e na sua curta existência fez jus ao mesmo.

Quando o conheci, ele já tinha um currículo cascudo e suas históricas brigas rivalizavam com as atribuídas ao lendário Otinha.


Não sei o que ele viu em mim, que nunca fui uma pessoa violenta, mas nos tornamos amigos de infância desde o primeiro dia em que fui apresentado a ele pelo homeboy Zé Cury.

Sempre que me via bebendo no Bar do Armando, De Ouro fazia questão de ir lá me cumprimentar e papear um pouco.

Eu perguntava pela veracidade de suas façanhas, mas ele se limitava a rir discretamente.

Nunca confirmou nem negou nenhuma delas.

– Isso é lenda, poeta, isso é lenda. O povo é que inventa essas coisas a meu respeito. Eu não passo de um pacato cidadão! – ironizava.

Mas dava pra perceber que ele metia um pavor exagerado nos transeuntes quando se sentava na minha mesa.

O cabra era pedra-noventa.


De todas as brigas em que se metera, De Ouro havia empatado apenas uma: contra Pedro Lobo (aka “Lobinho”), irmão do advogado Aníbal Lobo.

Durante quase uma hora os dois se pegaram pra valer em frente da boate Crocodilo’s.

Quem assistiu a briga, diz que De Ouro não finalizou Lobinho porque estava muito bêbado.

Mas também reconhecem que Lobinho era mesmo um osso duro de roer.

Apesar dos insistentes convites de De Ouro, Lobinho nunca lhe deu uma segunda chance pra ver quem era o melhor lutador dos dois.

Eram tempos românticos, pois não.

As brigas entre as turmas dos Peixes e da Pop, como era de se esperar, acabaram tendo um desfecho trágico.


Um dia, por volta das 17h, três “peixes” encurralaram De Ouro em frente da autopeças BB, nas proximidades do Boulevard Amazonas.

Irmão caçula de De Ouro, Dodô quebrou uma garrafa de refrigerante no asfalto e saiu em defesa do irmão.

Até aquele dia, nenhuma briga entre as duas gangues envolvia o uso de objetos cortantes ou perfurantes.

Dodô talvez não soubesse disso.

O certo é que ele enfiou o gargalo da garrafa em cima do peito de Mistral.

– Porra, Dodô, você me matou! – avisou o nadador, antes de cair no chão, agonizando.

Mistral morreu antes de receber os primeiros socorros.


Aquela morte estúpida se transformou no principal mote dos jornais para detonar as duas gangues organizadas.

A emenda saiu pior do que o soneto.

Ao dar um excessivo destaque às brigas entre os Peixes e a Pop, a mídia ajudou a divulgar o conceito de gangues.

Começaram a surgir novas gangues – rebatizadas de “galeras” – nos quatro cantos da cidade (Selvagens, na Compensa, Demônios da Noite, na Alvorada, Zumbis sem Alma, no Coroado, Filhos de Satã, na Cidade Nova, Os Caveiras, no São José, e por aí afora).


No começo de agosto de 1989, De Ouro se envolveu em um entrevero com um aspirante da Polícia Militar, na praia da Ponta Negra, nas proximidades da Barraca do Peruano.

O “milico” quis dar uma de xerife do pedaço porque algumas amigas do De Ouro estavam apertando um baseado e apanhou mais do que boi ladrão.

Ele jurou vingança.

De Ouro não deu a mínima.

Na manhã do dia 19 de setembro daquele mesmo ano, De Ouro resolveu fazer uma fezinha no jogo do bicho.

Na noite anterior, ele sonhara que estava brigando com alguns meganhas e resolveu apostar no “cachorro”.

De Ouro fez seu jogo com um cambista que trabalhava na banca de revistas defronte da drogaria Avenida, no Boulevard Amazonas.

Depois de ter guardado a pule no bolo, ele estava se dirigindo para o seu carro, quando foi alvejado por seis tiros à queima-roupa.

Não teve tempo de reagir.

Morreu na mesma hora.

Suspeita-se até hoje de que o aspirante da Polícia Militar esteja por trás da tragédia.

Naquele dia, no jogo do bicho, deu “cachorro” na cabeça.

Dodô resgatou o prêmio com o cambista e, alguns meses depois da morte do irmão, se tornou pregador evangélico.


Campeão amazonense de natação, Kaco Caminha havia falecido alguns anos antes, vítima de botulismo, após comer um cachorro-quente estragado na saída do Maracanã, no Rio de Janeiro.

A morte dos dois líderes rivais encerrou as atividades das duas gangues pioneiras e sinalizou o fim de uma era.

Dali em diante, a briga das galeras seria travada na periferia da cidade, com o concurso de terçados, facas de cozinha, cabos de vassoura com prego na ponta, correntes, cabos de aço, tacos de beisebol e armas de fogo de todos os calibres.

Não se fazem mais adolescentes como antigamente.

10 comentários:

Arthur Castro disse...

muito bom saber disso poeta www.lutasdonorte.com.br

Unknown disse...

Boa noite. Gostariamos de ver fotos desse pessoal. De ouro, kako, etc

Afranio Bastos disse...

Acabei viajando no tempo lendo essa história verídica! Eu fui amigo do dioro por muito tempo. A gente jogava basquete junto, em frente a casa dele montamos uma tabela de basquete ontem toda tarde a gente fazia dupla. Na verdade eu era mais amigo dos irmãos dele que são da minha idade, mais novos . jogava comigo o amiraldo que faleceu este ano. O kuca que é jornalista. O kica que trabalha no sesi e o dôdô. Até a loló que hoje é enfermeira, brincava de banquete c/a gente! Meu nome é Afranio Bastos e estou muito feliz poeta de vc ter relembrado essa história

Anônimo disse...

oi vc tem fotos da turma dos peixes e do pessoal da POP?

sds

Sammy

Unknown disse...

Presenciei essa época toda.

Unknown disse...

Muito bem escrito e real, Eu era mais jovem um pouco, mas me dava muito bem com quase todos, tanto de um lado como do outro, e tenho o prazer de dizer que determinado dia Gula estava comigo na minha moto quando o Dioro passou do nosso lado no seu bugre e eu acelerei a moto e tranquei o carro do Dioro pois me dava muito bem com Ele e com o
Gula, e disse porra sou amigo dos dois e vocês com essa rixá e no mesmo dia fomos nós três tomarmos uma cerveja no Mano a Mano, barzinho maravilhoso da época que ficava no Kissia do grande Ed, mas resumindo "Tempo bom que não existia a covardia"
Mais uma vez parabéns pela lembrança tão bem escrita!

Unknown disse...

Poeta, bela reportagem... Sou irmao do Dioura

Luis Antônio de Araujo Pinto disse...

Parabéns por este relato, vive estes momentos na nossa querida Manaus, cheguei a treinar com o De Ouro, fui muito amigo do Amiraldo. O De Ouro era um lutador diferenciado, em tempos de hoje seria campeão do UFC. O Jiu-jitsu Amazonense deve muito ao Cássio Façanha, ele a frente da FJJAM promoveu as primeiras competições de jiu-jitsu tirando nosso esporte da marginalidade.

Victor S. disse...

Belo texto, simples e bem claro, que descreveu toda esta saga dos mais conhecidos brigadores de rua e suas histórias.

Maurílio Brasil disse...

Convivi com essa moçada!