Pesquisar este blog

sexta-feira, março 30, 2012

Amigos e admiradores se despedem de Millôr


Dezenas de amigos e admiradores estiveram no velório do desenhista, jornalista, tradutor e escritor Millôr Fernandes nesta quinta-feira, no Cemitério Memorial do Carmo, no Caju, zona portuária do Rio.

“Foi o amor da minha vida, é tudo que posso dizer”, comentou, emocionada, a escritora Cora Rónai. “Foi a melhor pessoa que conheci, a única que posso dizer que realmente foi um gênio sem medo de achar que estou falando bobagem”.

O irmão, Hélio Fernandes, também jornalista, disse ter sido o mais antigo amigo e fã de Millôr.

“Quando ele nasceu eu tinha 2 anos. Fui seu primeiro amigo. Era um gênio completo e insubstituível, um dos mais ecléticos que já conheci, pois não teve um setor que ele não descobrisse no qual não fosse verdadeiramente fantástico”.

Para o escritor Ruy Castro, os textos e ideias de Millôr sempre iluminavam uma conversa que o ajudava a compreender o Brasil e o mundo.

“Todos os pensadores internacionais juntos em um liquidificador não dariam meio copo do Millôr. Era um idealista e queria que o mundo funcionasse direito”.


O cartunista Chico Caruso chamou o amigo de batalhador e competitivo e elogiou o fato de Millôr ter usado ferramentas da internet, como o Twitter, para se comunicar até o ano passado quando adoeceu.

“Ele não admitia que ninguém fosse mais inteligente que ele, inclusive o computador, então ele brigou muito com o computador e se tornou um especialista”.

Segundo a atriz Marília Pêra, Millôr era um homem livre.

“Não tinha time de futebol, não era ligado a nenhuma religião, era muito culto e engraçado”.

A atriz Cristiana Oliveira postou em seu perfil uma foto com o artista.

“Vai com Deus mestre, filósofo, transgressor, polêmico, gênio, homem de luz!”, escreveu ela.

O ator Mateus Solano também lamentou a notícia, e postou frases atribuídas a Millôr, “um dos mais geniais pensadores que o Brasil já teve”.

A apresentadora Eliana também postou uma frase para relembrar Millôr: “viver é desenhar sem borracha” #R.I.P (Rest in Peace - Descanse em Paz).

“Ah Millôr... que pena... está ficando sem graça aqui na Terra! Sorte no Céu”, escreveu o ator Mateus Carrieri.

O cantor inglês radicado no Brasil, Ritchie, o apresentador José Luiz Datena, da Band, e a atriz Ingrid Guimarães relembraram a proximidade com a morte do humorista Chico Anysio, no último dia 23: “perder Chico e o Millôr numa semana só é uma baita falta de humor”, comentou o cantor.

“Em menos de uma semana mestre Chico Anysio e, agora, Millôr nos deixaram. Só podemos lamentar e reconhecer que foram verdadeiros gênios!”, escreveu Datena.

“Queria ser uma mosquinha pra ver o encontro de Millôr com Chico Anysio”, disse Ingrid.

Internautas anônimos também prestaram suas homenagens; poucos minutos após o anúncio da notícia, seu nome já era o mais comentado no Twitter.


Carioca nascido em 1923, Millôr iniciou sua carreira de jornalista na revista O Cruzeiro.

Mais tarde dirigiu a revista em quadrinhos O Guri e Detetive, de contos policiais e colaborou em inúmeras revistas como colunista.

Quando troquei e-mails com ele, há dois anos, Millôr já vivia em uma cadeira de rodas há pelo menos três anos, por conta de uma permanente crise de insuficiência renal.

Apesar de tudo, ele jamais parou de trabalhar.

Millôr Fernandes havia recebido alta em novembro passado, após passar cinco meses internado em um hospital da zona sul do Rio, devido a um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico.

Ele morreu na noite de terça de falência múltipla dos órgãos e parada cardíaca em sua casa em Ipanema, na zona sul do Rio.

Millôr deixou dois filhos, Ivan e Paula.


Nascido no bairro do Méier, Zona Norte da cidade, o escritor gostava de contar que o sonho de sua mãe, de ter um filho chamado Milton, foi transformado por um erro do tabelião, no cartório, quando o pai foi registrá-lo.

Em vez de Milton Viola Fernandes, ele foi registrado como Millôr.

Milton Viola Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923 e foi registrado apenas em 24 de maio de 1924 como Millôr por conta de uma caligrafia incerta do tabelião.

Começou a carreira muito cedo, quando foi trabalhar como contínuo na revista O Cruzeiro aos 14 anos, em 1938.

No mesmo ano, ganhou um concurso de contos da revista A Cigarra, onde foi trabalhar.

Nesse período, criou o pseudônimo Vão Gogo, que só abandonou em 1962.

Voltou a trabalhar na revista O Cruzeiro em 1941, onde criou a coluna Pif-Paf ao lado do cartunista Péricles.


Autodidata, fez sua primeira tradução em 1942, para o livro Dragon seed (A estirpe do dragão), da escritora americana Pearl S. Buck.

Foi considerado o principal tradutor de William Shakespeare.

Traduziu também obras de Anton Tchekov, Bernard Shaw, Dario Fo, Luigi Pirandello, Molière, Mario Vargas Llosa, Samuel Beckett, R. W. Fassbinder e Tennessee Williams.

Seu primeiro livro, Eva sem costela, foi lançado em 1946.

Ao longo de sua carreira, lançou mais de 40 obras literárias, entre peças, coletâneas de contos e textos curtos, reuniões de aforismos, livros de poesia e peças de teatro.

Entre suas principais obras estão as peças Liberdade, liberdade, escrita em parceria com Flávio Rangel, e Pigmaleoa, ambas de 1965, o livro Fábulas fabulosas, de 1964, e a grande coletânea Millôr definitivo - A bíblia do caos, de 1994.

Foi um dos principais membros da redação do jornal O Pasquim, em 1969, que ficou conhecido pela oposição ao regime militar.

Trabalhou também em alguns dos mais importantes jornais do país, como Folha de S. Paulo, Correio Braziliense, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo.

Mantinha um site desde 2000, que reunia textos publicados ao longo de sua carreira e produções recentes.

Sua conta no Twitter tinha mais de 325 mil seguidores.

A Globo News está reapresentando o programa Almanaque, em que ele foi entrevistado pela jornalista Maria Beltrão.

Curtam, que é simplesmente imperdível.

Mavipe Bom de Bola


Mavipe, os frequentadores do mocó já sabem, é o acrônimo de Marcus Vinicius Pessoa, meu filho caçula.

O sacana está concluindo seu mestrado em Design na Universidade Politécnica de Milão e, em vez de estar pegando as cachorras italianas (coisa que eu faria de bom grado se estivesse em seu lugar...), fica perdendo tempo com essa merda de trabalho voluntário, uma das maiores cretinices inventadas pelo capitalismo selvagem.

Segundo sujeito em pé, da esquerda pra direita, Marcus Vinicius participa diligentemente do projeto InterCampus, uma ação social organizada pela Inter de Milão, provavelmente pra lavar dinheiro do crime organizado (ou vocês acham que a máfia só existe nos livros do Mário Puzzo?)

O sacana trabalha como auxiliar técnico, ou seja, é o burro de carga a custo zero de dois grupos distintos durante os treinamentos de futebol: um de crianças (4 a 8 anos) e outro de adolescentes (10-16).

Eu nunca vi o Marcus Vinicius jogando uma partida de futebol (aliás, não vi ele, nem Marcelo, Marcel ou Márcio, o que mostra a minha indesculpável e incorrigível falha de caráter), de forma que tenho sérias dúvidas se ele tem essa competência técnica toda que parece emular.

Mas tenho absoluta convicção que ele se daria muito melhor como pedrador sexual das menininhas italianas (ah, as menininhas italianas...).

Só espero que minha nora Juliana Varejão não venha abelhudar aqui no mocó e começar a achar que estou querendo desencaminhar o bambino.

Afinal de contas, como dizia o arquimandrita Millôr Fernandes, não devemos resisitir às tentações: elas podem não voltar.

quarta-feira, março 28, 2012

O blogueiro está de luto: morreu Millôr Fernandes!


O escritor carioca Millôr Fernandes morreu aos 88 anos, às 21h de terça-feira (27), em casa, em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Segundo Ivan Fernandes, filho do escritor, ele teve falência múltipla dos órgãos e parada cardíaca.

De acordo com a família, o velório está marcado para quinta-feira (29), das 10h às 15h, no cemitério Memorial do Carmo, no Caju, na Zona Portuária.

Em seguida, o corpo será cremado.

Em 2011, o escritor chegou a ser internado duas vezes na Casa de Saúde São José, no Humaitá, Zona Sul.

Na época, a assessoria do hospital não detalhou o motivo da internação a pedido da família.

Escritor, jornalista, desenhista, dramaturgo e artista autodidata, Millôr começou a colaborar com a revista O Cruzeiro aos 14 anos, conciliando as tarefas de tradutor, jornalista e autor de teatro.

No final dos anos 1960, tornou-se um dos fundadores do jornal O Pasquim, reconhecido por seu papel de oposição ao regime militar.

Escreveu nos anos seguintes diversos tipos de peças e se tornou o principal tradutor das obras de William Shakespeare no país.

Atualmente ele mantinha um site pessoal em que escrevia textos de humor e cartuns, além de reunir seus trabalhos dos últimos 50 anos.

Seu perfil no Twitter já contava com mais de 285 mil seguidores.

terça-feira, março 27, 2012

Aula 19 do Curso Intensivo de Black Music: Babyface


A linhagem mais melódica da música negra influenciada pelo “som da Motown” estava sendo traduzida com competência, nos anos 90, por um sujeito chamado Babyface (uma nova usina de hits semelhante a Williams “Smokey” Robinson, dos Miracles) e por uma dupla étnica chamada Lighthouse Family.

O rosto do homem que os fãs chamam de Babyface e os amigos, apenas de Face, é liso e suave, mas isso não causa estranheza.

Ele tem um atrativo informal: é glamouroso, ao mesmo tempo que parece o rapazinho que mora ao lado.

Foi exatamente o seu talento para tornar esse glamour acessível a todos que possivelmente transformou Babyface (seu nome verdadeiro é Kenneth Edmonds) no mais bem-sucedido escritor de canções da era pós-Lennon/McCartney.

Ele é o artista que teve o maior número de indicações para o Grammy de 1998: doze.

Entre as indicadas para esse prêmio estavam as trilhas sonoras dos filmes “Falando de Amor”, com Whitney Houston e Angela Basset no elenco, e “Fenômeno”, com John Travolta.


Aos 38 anos, Babyface já havia escrito 22 canções classificadas em primeiro lugar nas paradas de sucesso, teve 61 entre as 10 primeiras e 49 nos primeiros lugares nas listas das melhores de R&B.

Além disso, ganhou o Grammy de melhor produtor de 1997.

Além das canções que ele mesmo canta, Babyface forneceu material para músicos de vários gêneros – Eric Clapton, Mariah Carey, Madonna, Michael Jackson – e estava mantendo conversações com os Rolling Stones.

Nos últimos dez anos, porém, não foram muitas as vezes em que uma canção escrita, produzida ou cantada por Babyface esteve nas listas das músicas pop em algum lugar.

Embora ele tivesse três álbuns de sucesso próprios, seu rosto de criança quase não era reconhecido universalmente.

Com sua mulher, Tracey, Babyface mantinha inviolada sua intimidade, especialmente depois do nascimento de seu filho Brandon, em 1997.

Em certo sentido, Babyface colecionava mais sucesso por trás dos bastidores como escritor, arranjador e produtor do que como um popstar.

Suas suaves canções de amor ajudaram a construir La Face Records, com sede em Atlanta, bem como uma nova geração de produtores e escritores musicais independentes, incluindo Dallas Austin e Jermaine Dupree.

Seu atualizado som soul serviu de instrumento para a construção de uma nova geração de artistas R&B: cantores influenciados por Babyface, como Tony Rich, D’Angelo e Maxwell, estão fazendo discos populares que não ressuscitam tanto a sensibilidade do cantor de soul, mas a adaptam para uma era mais cínica.


Babyface estava realizando uma revolução na classe média.

Sua habilidade para escrever canções tem raízes em sua devoção incomparável ao hook – o fragmento repetido de uma canção que na memória parece contê-la inteira.

Seus hooks – em canções como “Change the World”, de Eric Clapton, “End Of The Road”, de Boyz II Men, e “Take A Bow”, de Madonna – têm uma maneira de insinuar-se sem oprimir.

Em poucas palavras, são um pouquinho como ele mesmo.

No estúdio, ele se sente em seu elemento, cercado por toda essa engenharia acústica que a tecnologia digital e os royalties dos discos têm a oferecer.

As fotos de capa de seus álbuns freqüentemente projetam uma imagem de Babyface como um tender lover de encanto e elegância.

Mas, quando a gente o vê trabalhando, aparece sua verdadeira face: Babyface é uma pessoa superaplicada ao trabalho, um homem que prefere que seus hooks falem por ele.

Ainda assim, ele decidiu fazer um vídeo para promover “For The Lover In You”, uma reedição da canção “Shalamar”, de seu último álbum, “The Day”, para poder apresentar melhor seu próprio rosto.

Babyface fala mansinho e supostamente é tão acanhado que levou três anos para voltar a destacar-se com esse álbum – respeitoso, romântico e sincero demais para deixar embaraçado um gangsta rapper.

A obra que o define deve ser a música “Waiting To Exhale”.

O canto de Babyface nunca aparece, mas sua voz está evidente em toda parte.

As 16 canções – todas elas, com exceção de uma, escritas ou co-escritas por ele – pretendem fornecer o acompanhamento musical comum para vozes extraordinárias: Whitney Houston, Mary J. Blige, CeCe Winans.

“Ele é o único rapaz que conheço capaz de escrever a respeito do que uma mulher sente”, disse Whitney Houston. “É muito estranho que um homem possa fazer isso, mas, de alguma maneira, ele consegue descer ao fundo de sua alma e tirar tudo isso para fora.”


“Não que eu entenda as mulheres melhor do que os outros, mas eu entendo os sentimentos”, explica Babyface. “Entendo que as pessoas ficam magoadas e os homens sofrem e sentem o mesmo que as mulheres. Afinal de contas, somos todos iguais.”

Quando Kenneth Edmonds estava crescendo em Indianápolis, a música soul estava em seu ápice.

Ele a ouvia, mas o que realmente o impressionou e lhe deu a sensibilidade que hoje irradia foi a banda Bread.

O grupo de pop-rock, do qual hoje quase ninguém se lembra, tinha muitas músicas de sucesso no início da década de 70 (como “Make It With You”, “It Don’t Matter To Me”, “The Guitar Man” e a baba “If”), que eram os equivalentes musicais das histórias em quadrinhos “O Amor É...”.

Edmonds não tinha toca-discos, por isso gravava as canções do grupo diretamente do rádio com um antigo gravador.

Foi o Bread que o tornou um “homem da melodia”, disse ele.

Edmonds concluiu o curso colegial e imediatamente mergulhou no repertório das melhores 40 bandas negras conhecidas, tocando guitarra na rede Holiday Inn e bases da Força Aérea, e abrangendo tudo, desde Horse With No Name até os maiores sucessos de Stevie Wonder e K.C. & the Sunshine Band.

“Essa foi a minha escola”, explica. “Tocar nota a nota versões dos solos, tentando cantar a canção principal exatamente como Stevie a cantava: é assim que a gente aprende e é isso que infelizmente os rapazes de R&B de hoje não têm oportunidade de aprender, porque não existe mais o ambiente dos clubes.”


Ele acredita que muitos artistas não são mais músicos e o mundo alternativo do rock consiste apenas em estar numa banda.

“Existe a garagem onde a gente pratica a profissão e se torna músico”, diz. “A música negra não se parece mais com isso.”

Além da morte do circuito de clubes, há uma razão tecnológica para explicar por que a musicalidade negra caiu em tempos difíceis: máquinas que fazem o som de tambores e seqüências tornaram possível que uma só pessoa sintetizasse um som grupal.

“A gente como que se liberta da razão de precisar entrar na garagem e praticar”, diz Babyface. “Você pode fazer isso sozinho no quarto.”

Segundo ele, muitos desses artistas, quando surgem, precisam de letristas e produtores.

É por isso que quem virou letrista ou produtor se tornou mais especial.

“Provavelmente, hoje mais do que nunca, temos muito mais rapazes que querem ser letristas-produtores.”


Isso é exatamente o que ocorreu no início da década de 80, quando Edmonds se uniu com Antonio (L.A.) Reid, na Deele, uma banda de R&B (foi quando ele estava na Deele que Bootsy Collins, baixista da Parliament-Funkadelic, comentou um dia a respeito de seus traços suaves e lhe deu o apelido de Babyface).

Reid e Edmonds começaram a produzir outras peças e a escrever canções juntos, tornando-se conhecidos como confiáveis autores de sucessos.

Os dois formaram a La Face Records em 1981 e, embora tenham deixado de trabalhar juntos como uma equipe criativa há cerca de dois anos – existe claramente uma tensão, embora nenhum deles queira discutir isso –, continuaram como parceiros comerciais.

Em seu último álbum, Babyface faz um dueto com Kenny G., um colosso do saxofone.

Também regravou a baba “If”, do grupo Bread, com uma levada mais suingada.

Entre outras coisas, o moleque favoreceu a carreira de Eric Clapton razoavelmente fazendo-o tocar com mais facilidade a guitarra e fazendo-o também cantar como Babyface.

“Ele está evoluindo para se tornar um fenômeno histórico”, disse Don Cornelius, produtor e ex-anfitrião do Soul Train. “Motown, Stax, James Brown, Barry White – algumas pessoas marcaram época com seus nomes”, comenta. “Acho que estamos entrando na era Babyface.”

Esse texto foi escrito em 1998, mas a pergunta talvez seja pertinente: além de mim, alguém ainda curte Babyface?

Aula 20 do Curso Intensivo de Black Music: Lighthouse Family


O Lighthouse Family vem da Inglaterra e é formado pelo multiinstrumentista e compositor Paul Tucker e pelo carismático vocalista nigeriano Tunde Baiyewu.

Em 1983, Tucker deixou sua cidade natal, Londres, e passou a viver em Newcastle, onde começou a compor e trabalhar como músico em vários bares da cidade, sem conseguir muita projeção.

Enviou algumas demos com canções suas a alguns selos ingleses, mas sem conseguir resposta, vendeu seus instrumentos e desistiu da vida pelos bares.

No entanto, Tucker acreditava no poder de suas letras, o que ele precisava era de um cantor.

Na busca desta milagrosa voz, alguns amigos lhe recomendaram Tunde, que também passava a vida de bar em bar se apresentando em Newcastle.

Os dois se conheceram e imediatamente se identificaram, pois tinham praticamente os mesmos gostos e afinidades musicais.

“Minhas músicas precisavam de uma voz suave, amena, natural e intimista. Eu sempre compus como se estivesse conversando com um amigo”, diz Tucker. “Quando conheci Tunde vi nele todas essas qualidades”.


A dupla começou então a mandar diversas demos para as gravadoras inglesas.

Foi quando Colin Balow, da gravadora Polydor, ouviu o Lighthouse Family pelo telefone e se apaixonou no ato.

“A música me encantou de tal forma que peguei o primeiro avião e fui ao encontro deles. Na primeira vez que vi Tunde cantando, percebi que ele havia nascido para brilhar, para ser uma estrela”.

O primeiro álbum da dupla, “Ocean Drive”, foi lançado em 95 e vendeu tímidas 10 mil cópias, apesar dos elogios da crítica.

A coisa começou a mudar no início de 96, quando foram lançados os remixes de “Lifted”.

Assinados por Linslee, “Lifted” perdia o clima intimista e ganhava um groove dançante, principalmente pela ledzeppeana levada do refrão.

O álbum, que já havia sido retirado do mercado, voltou a ser lançado em março de 96 e um ano depois já havia conquistado o duplo de platina, o que corresponde no Reino Unido a mais de dois milhões de cópias vendidas.


O hit “Lifted” foi o ponto de partida do Lighthouse Family.

As rádios passaram a executar massivamente o disco da dupla: as músicas tocavam direto tanto na dançante Kiss FM como na sisuda BBC.

O segundo single, “Goodbye Heartbreak”, também remixado por Linslee, foi lançado em meados de 96 e manteve aquecidas as vendas do álbum que simplesmente se esgotaram no natal de 96, quando foi lançado o single “Loving Every Minute”, desta vez remixado por Cutfather & Joe.

Em 97, o Lighthouse Family lançou seu segundo álbum, “Postcards From Heaven”, sendo que os singles “High” e “Lost In Space” catapultaram a dupla para o estrelato nos mercados americano, brasileiro e japonês.

A mistureba balanceada de ritmos africanos, soul music e rhythm’n’blues, tendo como suporte letras românticas sobre o cotidiano de pessoas comuns, contribuiu para que a dupla alcançasse novas audiências e ampliasse sua influência sobre a black music do novo milênio.

Não foi pouca porcaria.

Aula 21 do Curso Intensivo de Black Music: Kanye West


Kanye Omari West, mais conhecido como Kanye West, nasceu em Atlanta, na Georgia, no dia 8 de junho de 1977, mas aos três anos foi viver em Chicago, Illinois, depois do divórcio de seus pais.

Kanye significa “único”, no dialeto suwahili, o idioma banto com o maior número de falantes no planeta.

Ele é filho único de Ray West, um ex-membro dos Panteras Negras e um dos primeiros fotojornalistas negros do Atlanta Journal-Constitution e de Donda West, ex-professora de inglês na Clark Atlanta University e ex-professora no departamento de inglês da Chicago State University, que largou tudo para virar empresária do filho.

Donda também escreveu o livro “Raising Kanye”, onde conta como foi dura a vida para manter Kanye nos eixos.

Depois de frequentar a The American Academy of Art, uma escola para estudantes de arte, Kanye frequentou a Universidade de Chicago, mas desistiu para poder começar a trabalhar na carreira musical.


Kanye já produzia beats para alguns artistas semidesconhecidos quando estava na universidade, mas só veio a ganhar fama muito tempo depois ao produzir músicas que se transformaram em hits de hip-hop e R&B para gente como Eminem, Jay-Z, Janet Jackson, Common, Jadakiss, The Game, Alicia Keys, Foxy Brown, Memphis Bleek, Beanie Sigel, Cam’Ron, Hugh “MC Son” Ryan, Brandy, Talib Kweli, Keyshia Cole, Dilated Peoples, Ludacris, Lupe Fiasco e John Legend.

Incentivado pelo produtor No I.D., que produzia o rapper Common, Kanye começou a samplear antigos hits de soul, lhes dando um novo “sabor”, entre o clássico e o moderno.

Na época, Kanye já era mais que um produtor versátil, era um cantor de soul em potencial, que também sabia cantar rap.

Só que as gravadoras não lhe davam a menor imporância.

O jogo começou a mudar quando Kanye conheceu Damon Dash e Jay-Z, os chefões da Roc-a-fella Records.

Em 2002, depois de produzir quatro faixas de um dos melhores discos de Jay-Z (“The Blueprint”), Kanye começou a trabalhar também com grupos e MCs do rap underground para provar que era um produtor completo.

Ele produziu três músicas para o segundo disco de Talib Kweli (“Quality”), inclusive o single “Get By”, também fez três faixas para o melhor disco do Scarface (“The Fix”), além de uma música para o celebrado “The Lost Tapes”, do Nas.


Em 2004, depois de um longo período de gestação, ele colocou no mercado o seu tão esperado disco solo, “College Dropout”, que trazia participações tanto de nomes do mainstream, como Ludacris e Twista, quanto de nomes do underground, como Mos Def, Talib Kweli e Common.

Ao estourar nas paradas americanas com os hits “All Falls Down” e “Jesus Walk”, Kanye West simplesmente quebrou a banca.

E não parou mais.

O jornalista Pedro Antunes, do Jornal da Tarde, assistiu ao show de Kanye West no SWU do ano passado e registrou o seguinte:

Do céu estrelado e pop formado pela primeira noite do festival SWU – Starts With You, anteontem, em Paulínia (SP), um buraco negro surgiu e engoliu todas as outras estrelas ao seu redor.

Impiedoso, ele desbancou os favoritos do dia com talento e um ego tão grande quanto o sistema solar.

Pior para o rapper Snoop Dogg, cujo show antecedeu Kanye West, e foi destruído por canções profundas e bem produzidas.

Não era um duelo de popularidade, mas, sim, de qualidade.

Os palcos Energia e Consciência, um de frente para o outro, formavam uma espécie de grande arena, com grandiosas batalhas musicais.

Cinco minutos separavam os shows e com quase nenhum atraso – um tempo até curto para o público, que chegou aos 64 mil, ir ao banheiro ou pegar uma bebida.


Snoop Dogg e Black Eyed Peas, no Energia, atraíram um público visivelmente maior, em razão de seus hits radiofônicos, melodias fáceis e pouca originalidade.

Kanye, cuja apresentação integrava a programação do palco Consciência, ganhou pela técnica.

West e Dogg são dois exemplos extremos da cultura hip hop.

O segundo é uma espécie de cafetão do rap.

Em seu show, ele é acompanhado por três dançarinas belíssimas que circulam à sua volta, dançando sensualmente.

As moças começaram a apresentação com roupas de moletom, comportadas como freiras, mas, ao fim de quase uma hora de show, elas já estavam vestidas de enfermeira ninfomaníaca, secretária devassa e outra como dominatrix, com direito até a um chicote de couro nas mãos.

Enquanto isso, Dogg ficava sentadão numa cadeira no meio do palco, com seus óculos chamativos e um microfone personalizado.

Tudo dourado, cravado de brilhantes e com seu nome estampado.


Uma verdadeira ostentação ao sexo e ao dinheiro que, aliados ao livre consumo de drogas, compõem a tríade que alicerça a carreira de Dogg.

O som também desfavoreceu o rapper.

Era quase impossível ouvi-lo em determinados momentos, principalmente naqueles em que o som do baixo aumentava exageradamente.

A bateria também parecia mais uma figuração de tão inaudível.

Mas Snoop Dogg sabe jogar com o público.

Abusou dos hits, como P.I.M.P (“pimp” é cafetão em inglês), Sensual Seduction e Gangsta Luv.


Cantando de maneira desleixada, sequer bagunçando o cabelo, dividido em trancinhas infantis, Dogg colocou o público para pular com hits que têm em parcerias com outros artistas do R&B – e que acabaram por ampliar sua reputação e fama: Beautiful e I Wanna Love You, feitas com Pharrel e Akon. Uma hora de show esteve de bom tamanho.

Menos de cinco minutos após Dogg ter saído, as luzes do palco à frente foram acesas.

O rapper Kanye West parecia disposto a fazer com que todos ali na plateia esquecessem logo da apresentação anterior.

Ele também trouxe dançarinas no palco, 15 delas no total, mas estas mostraram coreografias que iam do balé clássico à dança contemporânea.

Um exagero, é bem verdade.

Mas pode-se esperar de tudo de um sujeito que diz que, se Deus tivesse um iPod, teria as suas músicas nele.

Confiar tanto em si mesmo pode levar à queda, mas afugenta o medo do fracasso.

Amplia as possibilidades.

Não por acaso Kanye West lançou, em dois anos, dois discos que estão na lista dos melhores do ano: My Beautiful Dark Twisted Fantasy, em 2010, e Watch the Throne, de agosto, uma parceria com o também todo-poderoso produtor e rapper Jay-Z.

De My Beautiful Dark Twisted Fantasy, Kanye escolheu sete das 13 canções.

Dentre elas, Dark Fantasy e Power abriram a apresentação de forma arrebatadora.


Enquanto Snoop Dogg cantou com um cenário simples, ele estampou, no fundo do palco, uma tela com a figura de esculturas renascentistas, anjos e demônios numa batalha sem fim.

Um belo pano de fundo para a poderosa Jesus Walks, vencedora do prêmio Grammy de melhor rap em 2005.

O show foi dividido em dois atos: um mais performático e outro mais intimista.

Kanye, arrogante, acha que ele se basta para fazer o público delirar e errou ao trazer parcerias com outros artistas, mas colocando-os em segundo plano.

Run This Town (com Jay-Z e Rihanna), Homecoming (Chris Martin) e E.T. (Katy Perry), com os outros músicos apenas no playback, foram abaixo do esperado.


Kanye West percebeu isso a tempo: durante Gold Digger, aquela em que ele incluiu samples de I’ve Got a Woman, de Ray Charles, o rapper parou nos primeiros versos e pediu para que começasse tudo de novo: “Eu quero vocês loucos, entenderam? Vamos tentar de novo”.

O público atendeu ao pedido.

Mas a estupenda interpretação de Runaway, outra do disco do ano passado, compensou qualquer cansaço.

Em quase 10 minutos de execução, ele é romântico: “Eu sou um solitário que viaja pelo mundo, sozinho. Vocês aí que têm alguém, prestem atenção. Os amigos vão dizer que ele fez isso, ou ela fez aquilo. Esqueçam e me façam um favor: se vocês amam alguém nesta noite, não deixe ele escapar”.

Casais se abraçaram e Kanye West, num palanque em cima do palco, sorriu como um padre que acaba de celebrar um casamento.

Em duas horas de show, o rapper mostrou segurança e canções firmes.

Arrogantes como ele, claro, mas que funcionaram bem.

E, se Deus vai colocar as canções dele em seu iPod, é uma discussão religiosa e filosófica complexa demais.

Mas, certamente, alguns fãs de Snoop Dogg devem fazer isso depois deste SWU.

Zeca Pagodinho lança DVD 'solidário' para dar voz e ajudar colegas


Por José Raphael Berrêdo, do G1, no Rio

Zeca Pagodinho nunca escondeu qual é o seu programa predileto: reunir os amigos para um samba no seu sítio em Xerém, no Rio de Janeiro, tudo regado a muita cerveja.

Pois agora ele resolveu compartilhar com os fãs, ao menos em imagem e som, o que acontece em sua casa na Baixada Fluminense.

Com participação de sambistas consagrados e outros pouco conhecidos do público, ele está lançando hoje, 27, o CD e DVD “Zeca apresenta: o quintal do Pagodinho ao vivo”, no qual canta apenas a primeira faixa, “Em um outdoor” (Zé Roberto/Adilson Bispo), dando voz a compositores que sempre gravou.

“A ideia é mostrar que não existe só o Zeca. Meu sucesso na realidade é de todo mundo”, explicou o músico que, como bom anfitrião, recebeu a todos os presentes para uma entrevista coletiva na última quinta-feira (22), como se fossem de casa, com churrasco e cerveja.

De bermuda, sandália e uma camiseta sem manga combinando com o calorão de Xerém, desfilou com o primeiro neto, Noa, de 2 anos, no colo, antes de se sentar à mesa com um total de 24 compositores ao lado.

Entre amigos e parceiros de longa data, como Arlindo Cruz e Jorge Aragão, e novatos apadrinhados, como Arlindinho (Arlindo Neto, de 20 anos), contou histórias da velha guarda e brincou até com a morte de antigos compositores (“Tem até uns quatro que já foram aí”, disse sobre os autores de canções do CD).

Aragão lembrou da época em que Zeca estourou, já no primeiro disco, em 1985.

“O que aconteceu fugiu a tudo que a gente esperava. Nos primeiros shows, já tinha gente querendo pular muro, quebrar portão. Me senti mais profissional”, recordou.

Entre gravar o DVD ou participar das rodas em Xerém, Arlindo Cruz não tem dúvidas de que a segunda opção é a mais divertida.

“Tinha produção orientando, um maestro, algumas paradas no samba também. Mas o resultado ficou ótimo, parece mesmo as nossas rodas, é o clima que passa”, elogiou.


Zeca em meio a parceiros na mesa da entrevista em sua casa em Xerém, no Rio (Foto: José Raphael Berrêdo / G1)

No extenso DVD, com 24 faixas, Zeca apenas abre o show.

Depois, vê bambas como Aragão, Beth Carvalho, Arlindo, Dudu Nobre, Martinho da Vila, Seu Jorge e Jorge Ben Jor, que encerra o álbum com “Mas que nada”, se misturarem a compositores e intérpretes pouco badalados, como Zé Roberto, Efson e Pretinho da Serrinha.

Uma união que o amigo e compositor Nei Lopes (que assina a faixa ”Firme e forte”, ao lado de Efson) resume no release como “o primeiro DVD e CD de samba que consegue fixar o verdadeiro clima dos quintais de pagodes, juntando presenças estelares a ilustres e talentosos desconhecidos do grande público”.

Para escolher o repertório, Zeca conta que foram umas quatro ou cinco “reuniões” em Xerém.

A escolha, admitiu, tem um quê de solidariedade com amigos sem dinheiro, precisando de “uma força”.

“É um dos grandes critérios. Mas aí mando trabalhar depois porque já sou avô, né?”, disse. “Mas só gravo o que eu gosto. E não estou fazendo favor para ninguém. Essa é minha função”, completou o artista, que já planeja uma segunda edição do projeto.

segunda-feira, março 26, 2012

Aula 14 do Curso Intensivo de Black Music: a revolucionária Motown


“Os atores devem ser tratados como gado”, dizia o cineasta Alfred Hitchcok.

Politicamente correto ou não, esse método rendeu a ele obras-primas como “Um corpo que cai” e “Janela indiscreta”.

Berry Gordy Jr., fundador da Motown, com certeza usou uma estratégia semelhante na sua gravadora.

Ex-boxeador e músico nas horas vagas, em 1959, Berry tinha 29 anos e ganhava 85 dólares por semana, trabalhando na linha de montagem da Ford, em Detroit.

A cidade, além de ser a maior concentração mundial da indústria automobilística, era a quarta maior população negra dos Estados Unidos, depois de Nova York, Chicago e Filadélfia.

Berry, que tivera também uma loja de discos de jazz, tomou 800 dólares emprestados da irmã e resolveu começar a gravar e distribuir discos.

Queria apenas se livrar do trabalho da fábrica, nada mais.

O que a princípio parecia empreitada modesta, quase uma aventura sem futuro, transformou-se de repente num negócio de proporções gigantescas.

Gordy acertou na mosca.

E o sucesso não veio por acaso.


Ele possuía um raro talento para detectar as sutilezas do mercado fonográfico e uma grande habilidade para produzir discos e lidar com os artistas.

Deu à sua gravadora o nome Motown, em homenagem ao apelido de Detroit, “Motor Town” (“cidade-motor”).

Em pouco tempo, a Motown era desdobrada em várias etiquetas e firmas subsidiárias: Tamla, Gordy, Soul e VIP.

Tratando a música como um mero produto industrial, sujeito às leis de mercado, Gordy oferecia a brancos e negros uma imagem idealizada do negro e um som ao mesmo tempo vibrante e agradável de ouvir.

Berry Gordy Jr. cuidava dos negócios e de seus contratados com mão de ferro.

O crítico John Gabree analisou com certa acidez os métodos da gravadora: “a Motown parece mais apta a produzir carros do que matéria artística de músicos presumidamente sensíveis. As várias divisões do complexo Motown controlam todos os aspectos dos negócios de seus contratados, desde as roupas que usam (é significativo que os músicos as chamem de ‘uniformes’) até os carros que compram, a decoração de suas casas e os investimentos que fazem com seus lucros”.


Alheio às críticas, Berry Gordy Jr. foi em frente.

Seu primeiro sucesso, lançado em novembro de 1959, já dizia tudo: “Money (That’s What I Want)”, gravada pelo cantor Barret Strong (a canção foi regravada depois por John Lennon, pelos Rolling Stones e Pretenders, mostrando que todo mundo estava a fim de ganhar dinheiro...).

No sobrado do 2648 West Grand Boulevard, em Detroit, a sede da Motown, ele ergueu uma imensa placa com os dizeres “Hitsville, USA”.

E a Motown se tornou realmente uma fábrica de hits: dos quase 600 compactos que lançou entre 1960 e 1970, mais de dois terços foram sucessos de venda.

Tudo isso não aconteceu à toa.

Gordy, além de workaholic, mantinha um rigoroso controle de qualidade sobre os seus produtos: só autorizava o lançamento de uma dentre 70 faixas gravadas.

A Motown fez história.

Para se diferenciar do soul da Stax, mais cru e encorpado, a música da gravadora, mais leve e dançante, foi chamada de “black beat” e durante a década de 60 virou sinônimo da moderna música negra americana.

Essas músicas influenciaram nomes ilustres como os Beatles, que regravaram vários sucessos do selo.


Cantores e grupos vocais eram gado nas mãos de um time de respeito, com alguns dos melhores compositores que já passaram pela história da música negra, como William “Smokey” Robinson, o trio Holland-Dozier-Holland (os irmãos Brian e Edward Holland e Lamont Dozier), o psicodélico Norman Whitfield e a dupla Nicholas Ashford & Valerie Simpson.

Além disso, Berry era uma pessoa disponível para ouvir as pessoas que o procuravam, uma atitude que se provou bastante lucrativa.

Foi o caso de Mary Wells, uma jovem de 17 anos levada pela mãe com a letra de uma canção que ela mesma tinha feito.

Gordy pediu que cantasse.

“Fiz o melhor que pude, mas meus joelhos tremiam”, contou ela, que quase desmaiou quando Gordy a contratou no ato.

Mary tornou-se uma das estrelas da fase inicial da companhia e foi a primeira do selo indicada para o Grammy.


Seu grande hit, entretanto, foi “My Guy”, escrita e produzida por Smokey Robinson (a canção foi revivida pelo filme “Mudança de Hábito”), sendo que o baterista da música original é Marvin Gaye, que inicialmente tinha esta função na gravadora, antes de se tornar o mito de “What’s Goin’ On”.

Gordy sabia transformar uma canção comum em hit.

Mudou o nome do então grupo vocal Matadors, liderado por Robinson, para Miracles e deu um tratamento especial à composição “Shop Around”.

O resultado foi o primeiro lugar nas paradas R&B dos EUA e o início da amizade de Gordy com Smokey Robinson – um de seus hitmakers mais constantes.


Ele atuou, simultaneamente, como executivo, artista, compositor e conselheiro de inúmeros colegas.

“Shop Around” foi o primeiro sucesso da Motown a vender 1 milhão de cópias.

A música contou com o apoio vocal da mulher de Robinson, Claudette Rogers, e de seus três colegas dos Miracles.

Eles haviam se conhecido quando faziam o 2º grau em Detroit.

Como líder, cantor e compositor dos Miracles, a trajetória de Smokey foi impecável.

Entre 62 e 63, enfileirou hit atrás de hit como “You’ve Really Got A Hold On Me”, “I Gotta Dance”, “That’s What Love Is Made Of” e “Mickey’s Monkey”.

Conquistou um público cativo com performances mágicas em seus shows.


Pouco a pouco foi definindo um estilo único, leve e suave, que resultou em obras-primas como os álbuns “Going To A Go Go” (65), “I’m The One You Need” (66) e “I Second That Emotion” (67), que trouxe os dois maiores sucessos do grupo, “The Tracks Of My Tears” e “The Tears Of A Clown”.

Em 1971, ele deixou os Miracles para assumir a vice-presidência da Motown, mas seguiu carreira solo, a partir de 1972, criando um som mais maduro para si mesmo.

Frequentemente associado com a soul music romântica, ele lançou álbuns de sucesso, tais como “A Quiet Storm” (1974) e “Touch Sky” (1983), ambos muito elogiados pela crítica.

Em meados dos anos 1980, Smokey Robinson viveu um período difícil, lutando contra o vício das drogas.

Ele discutiu abertamente o problema da cocaína, assim como muitos outros assuntos pessoais, em sua autobiografia “Smokey: Inside My Life”, lançada em 1989.

O músico creditou sua recuperação do vício de cocaína a sua fé religiosa.

Em 1987, Robinson ganhou seu primeiro Grammy como artista solo com a música “Just To See Her”, do álbum “One Heartbeat”.

Em 2004, ele deu o seu trabalho autoral uma nova direção, lançando uma série de músicas que refletem suas crenças espirituais atuais.

Aula 15 do Curso Intensivo de Black Music: Diana Ross


O maquiavélico Gordy também tinha um faro aguçado para descobrir no meio de figuras anônimas superstars em potencial.

As Marvelettes eram um quarteto de segunda categoria que ficou em quinto lugar durante um concurso de novos talentos em 1961.

Um professor fez a ponte com a Motown, elas foram contratadas e seu primeiro single, “Please Mr. Postman” (regravado depois pelos Beatles), se tornou o primeiro lugar do selo na parada pop.


Diana Ross, Florence Ballard e Mary Wilson eram três ginasianas que moravam num conjunto habitacional pobre de Detroit e cantavam na escola.

Um dia, elas procuraram Gordy em busca de uma chance.

Foram batizadas de Supremes, chegaram ao primeiro lugar do hit parade 10 vezes nos anos seguintes e estiveram 20 vezes no show de Ed Sullivan, em cadeia nacional, o mais importante programa de variedades da época.

As Supremes formaram o girlgroup mais bem-sucedido do pop negro americano, tanto que detêm até hoje o recorde de vendas de discos em seu país (mais de 60 milhões), além de terem colocado o maior número de singles no primeiro lugar da parada.

Florence cantava melhor e Mary Wilson era mais bonita, mas era óbvio que quem tinha a estrela estampada na testa era Diana.


Berry Gordon sabia disso desde o início, por isso a colocou como vocalista principal do grupo, apesar do ressentimento e reclamações de Florence.

Depois de alguns singles fracassados, Gordy resolveu jogar as Supremes nas mãos do trio Holland-Dozier-Holland.

Foi um casamento dos céus.

A partir do terceiro single produzido pelo trio, “Where Did Our Love Go?”, as Supremes iniciaram sua conquista do mundo.

Foi o primeiro de uma seqüência de cinco números um no hit parade americano (“Baby Love”, “Come See About Me”, “Stop! In The Name Of Love” e “Back In My Arms Again”).

No período 66-67, o grupo teria mais quatro músicas seguidas em primeiro lugar: “You Can’t Hurry Love”, “You Keep Me Hangin’ On”, “Love Is Here And Now You’re Gone” e “The Happening”.

Com esses sucessos, Holland-Dozier-Holland estabeleceram os padrões do que ficou conhecido como o som da Motown: um modelo de pop perfeito, que foi seguido por quase todo mundo que queria se dar bem no ramo musical nas décadas seguintes.

A Motown teve sensibilidade para o momento conseguindo se tornar, como seu slogan apregoava, “o som da América jovem”.

Havia a energia e a simplicidade do rock’n’roll (ou rhythm & blues), mas havia também uma sofisticação que refletia os gostos da nova juventude urbana, basicamente de classe média – tanto branca como negra.


E nada melhor que os vocais doces das Supremes para fazer esse crossover.

O segredo da confecção era alcançar a genialidade a partir da simplicidade: bastam três ou quatro acordes certos e a química acontece.

Características clássicas do som da Motown incluíam seção rítmica bem à frente, independência da linha de baixo em relação à batida, elementos mais refinados, como violinos e sopros, e refrões imediatos.

A produção era redondinha, bem polida e equilibrada.

Além da influência musical da Motown, Diana Ross lançou uma escola de vocal pop, leve e agudo, seguido por milhares de cantoras como Madonna e Jody Watley.

Os conceitos de sofisticação, cuidado e limpeza da música, até então inéditos no pop negro – sempre associado à rusticidade e à agressividade –, viraram regra no setor: de Isaac Hayes ao som da Philadelphia, da disco music à garage, da house music ao techno, do swingbeat a Earth, Wind & Fire, todo mundo “chupou” alguma coisa da Motown.

“The Happening” foi o último single das Supremes, antes de serem rebatizadas de Diana Ross & The Supremes.


Gordy concretizava aí a idéia de trazer a verdadeira estrela para frente, preparando-a para uma milionária carreira-solo.

As Supremes ainda teriam alguns sucessos sem Diana, até meados dos anos 70, e depois passariam a viver de shows de revival.

Da formação original só ficou Mary Wilson, mas dos anos dourados de sua carreira restaram alguns dos mais sublimes singles da história.

Assim que deixou o grupo, Diana Ross partiu para uma errática carreira-solo a partir de seu sucesso com a canção “Ain’t No Mountain High Enough”.

Estrelou também um filme sobre a vida de Billie Holliday, chamado “Lady Sings the Blues”, onde recebeu o prêmio pela trilha sonora.


Em 1973, gravou um álbum com Marvin Gaye intitulado “Diana and Marvin”, com destaque para “My Mistake”.

Em 1975, novamente participou de um filme, “Mahogany”, e seu tema musical “Do You Know Where You're Going To” chegou ao primeiro lugar das paradas.

De 1976 a 1980, Diana Ross gravou vários sucessos, como “Love Hangover”, “What You Gave Me”, “The Boss” e “It’s My House”, da dupla Ashford & Simpson, e “Upside Down”, “I’m Coming Out” e “My Old Piano”, da dupla Nile Rodgers e Bernard Edwards.

Em 1981, ele fez um dueto romântico com Lionel Richie em “Endless Love”, último sucesso que ela obteve pela gravadora Motown.

Posteriormente assinou com as gravadoras Capitol e RCA, mas depois da queda na vendagem de seus discos, no início dos anos 90, retornou à Motown.


Diana teve uma filha com Berry Gordy, duas filhas com o divulgador musical Robert Ellis Silberstein e dois filhos com o executivo norueguês Arne Naess Jr, morto em 2000.

Em 2003, esteve internada numa clínica para dependentes de álcool e drogas.

No início 2004, foi presa ao ser flagrada dirigindo na contramão em avançado estado de embriaguez.

Apesar de tudo, Diana Ross foi considerada pela revista Billboard e pelo livro Guinness como a principal artista feminina do século 20, tendo emplacado 18 “singles” em primeiro lugar, sendo doze com “The Supremes” e seis em carreira solo.

As vendas de seus álbuns já ultrapassaram a marca de 100 milhões de cópias, mas hoje, infelizmente, Diana Ross é mais conhecida como o rosto que fez Michael Jackson entrar no bisturi.

Aula 16 do Curso Intensivo de Black Music: Jackson Five e Stevie Wonder


Dois talentos mirins também se destacaram na história da Motown: o grupo The Jackson Five e Stevie Wonder.

Em 1962, na cidade de Gary, Indiana, o guitarrista Joseph Jackson organizou um grupo chamado The Jackson Brothers, que incluía seus filhos Jackie, Tito e Jermaine e dois outros jovens vizinhos, Milford Hite (na bateria) e Reynaud Jones (nos teclados).

Em 1964, Michael, então com seis anos, e seu irmão mais velho, Marlon, começaram a tocar atabaque e pandeiro, respectivamente, e foram incorporados ao combo.

Em 1966, Michael tornou-se o vocalista principal do grupo, quando tinha apenas oito anos de idade.

Com Michael no frontside, o grupo começou a excursionar pelos EUA e chegou a venceu um concurso de grupos amadores no bairro do Harlem, em Nova York.

Em 1967, o grupo, rebatizado de “The Jackson Five”, assinou seu primeiro contrato de gravação com a Steeltown, uma gravadora local, e, no ano seguinte, tiveram seu primeiro sucesso regional com a canção “Big Boy”.

Ainda em 1968, dois importantes grupos musicais da época, Gladys Knight & the Pips e Bobby Taylor & The Vancouvers, conheceram o trabalho musical dos moleques quando excursionavam pela cidade de Gary e os indicaram para a gravadora Motown.

Em 1969, Berry Gordy comprou o contrato da gravadora Steeltown, assinou com o grupo, e os levou para Los Angeles, onde pretendia transformá-los em astros mundiais.


Eles foram apresentados ao grande público pela cantora Diana Ross, que garantiu aos jornalistas que eles seriam “a próxima grande atração da Motown”.

Os primeiros quatro singles do grupo, “I Want You Back” e “ABC” (1969), e “The Love You Save” e “I’ll Be There” (1970) foram catapultados imediatamente para o primeiro lugar nas paradas dos Estados Unidos, um feito inédito até então.

Seguiram-se outros grandes sucessos como “Mama’s Pearl” e “Never Can Say Goodbye” (1971), “Lookin’ Through The Windows” (1972), “Get It Together” (1973) e “Dancing Machine” (1974).

O Jackson Five gravou catorze álbuns para a Motown, enquanto Michael, Jermaine e Jackie ainda gravaram álbuns-solo como parte da “franquia” familiar.

Muitos dos sucessos do Jackson Five foram produzidos por renomados produtores da Motown – Berry Gordy, Freddie Perren, Alphonzo Mizell, Deke Richards e Hal Davis.


Das roupas e coreografias até os arranjos das canções, tudo referente ao grupo era detalhadamente estudado por Berry Gordy, o que, depois de certo tempo, passou a encher o saco dos moleques.

A saída foi mudar para a Epic, subsidiária da Columbia, e mudar o nome para The Jacksons.

Em 1973, o grupo – com exceção de Jermaine Jackson, que se casou com a filha de Berry Gordy e permaneceu na gravadora – pagou uma multa de 600 mil dólares para cair fora da Motown.

Com Randy no lugar de Jermaine, o grupo ainda acumularia uma série de hits, mas no início dos anos 80 aconteceria uma debandada geral e Michael Jackson – então sozinho – tornar-se-ia um capítulo à parte na história da música negra.


Se Ray Charles guardou pelo menos alguma memória das coisas que viu até os seis anos, Stevie Wonder já nasceu cego.

Como Ray, ele se insere na tradição do músico que, por ser cego, tem realçadas as suas capacidades auditivas (pelo menos é o que reza o folclore...).

Batizado de Steveland Morris, ele nasceu em Saginaw, Michigan, em 1950, e aos oito anos já dominava uma boa quantidade de instrumentos, doados por parentes e amigos: piano, gaita-de-boca, bongô e bateria.

Stevie acabou sendo recomendado para Berry Gordy e, aos 13 anos, conseguia o feito de emplacar um single e um LP no primeiro lugar das paradas.

Ficou conhecido como Little Stevie Wonder, o Steviezinho Maravilha, descrição sucinta de seu tamanho e talento.

Cresceu, deixou o Little de lado, e como Stevie Wonder passou a fazer uma música cada vez mais rica e complexa, mas esbarrando sempre no radicalismo de Gordy.


Há uma piada dos irmãos Marx que define bem a situação de Stevie Wonder na gravadora Motown.

Em “Uma noite em Casablanca”, Groucho Marx encarna um diretor de hotel que decide trocar os números dos quartos dos hóspedes.

Quando um deles reclama que aquilo seria “uma loucura”, Groucho replica: “Mas também seria uma diversão dos diabos!”

A maior “loucura” de Stevie Wonder chamou-se “Talking Book” e cristalizou a independência do cantor em relação aos padrões rígidos da Motown.

Até então, na gravadora americana, as músicas deveriam ter três minutos – no máximo! – e abordar nas letras temas como o amor e futilidades.


Wonder queria ter controle total de suas produções e ainda a liberdade para abordar nas músicas os assuntos que quisesse, com a duração que bem entendesse.

Com o passar dos anos, essa exigência ficou cada vez mais cara para os cofres da gravadora e ainda menos rentável com a perda do prestígio de Wonder.

Mas, pelo menos ele conseguiu emplacar diversas obras-primas.

O álbum “Talking Book” veio mostrar um artista maduro aos 22 anos, brincando com uma invenção dos anos 70, o sintetizador – que foi descoberto em “Music Of My Mind”, seu disco anterior, também de 72.

Os instrumentos em que Wonder não meteu a mão foram tocados por gente da categoria de Jeff Beck (o solo de guitarra em “Lookin’ For Another Pure Love”) e o saxofonista David Sanborn (“Tuesday Heartbreak”).

As letras, em sua maioria, falavam da separação de Wonder e Syreeta Wright, da descoberta de um novo amor pelo compositor, de política e misticismo.


A música “Superstition” foi o maior hit do disco e quase virou um sucesso com Jeff Beck.

Stevie Wonder havia cedido a música para o guitarrista e se recusava a lançá-la em single.

“Você está louco? Esta canção tem de promover o álbum”, rebateu o pessoal da Motown.

A contragosto, o cantor teve que gravar o single e ele entrou direto nas paradas radiofônicas.

Não é preciso ser nenhum gênio para apostar no sucesso da música.

Basta ouvir a introdução, com a marcação forte da bateria e o sintetizador de Wonder.

O resultado foi um estremecimento da amizade entre o temperamental Jeff Beck e o cantor/compositor.

A relação entre Wonder e Syreeta foi destrinchada em “Maybe Your Baby”, “Tuesday Heartbreak”, “You’ve Got It Bad Girl” e “Blame It On The Sun”.

Na primeira, Wonder colocava para fora os fantasmas do ciúme e da solidão, com timbres estranhos de sintetizador e os wah-wah da guitarra de Ray Parker Jr. (que depois fez um pífio trabalho-solo).

“Tuesday” é uma visão irônica sobre o fim de uma relação e na letra de “Blame It On The Sun”, co-escrita com Syreeta, ele busca uma resposta para o fim do amor entre os dois.

Mas, ainda assim, Stevie colocava certa esperança no disco.


A canção “You Are The Sunshine Of My Life” nasceu de seu namoro com a vocalista Gloria Barley, que dividiu os vocais com ele na música.

E para quem duvidava de sua capacidade em temas políticos, Wonder rebateu com “Big Brother” – paralelo entre o “Grande Irmão” do livro “1984”, de George Orwell, e o pouco caso do governo americano em relação aos negros.

Quem achava que ele era só um baladeiro, tinha ali a prova de seu gênio.

A partir daí, Stevie Wonder conquistou o mundo da música pop com canções pegajosas como “My Cherie Amour” e “Isn’t She Lovely”, mas cada frase de suas composições, antes de chegar ao topo das paradas, foi banhada na tradição do blues.

Aula 17 do Curso Intensivo de Black Music: Marvin Gaye


O vocalista Marvin Gaye foi uma das maiores expressões do soul da Motown.

Suas músicas eram o resultado de um equilíbrio raro entre sentimentos universais conflitantes.

Expressavam a violência da revolta contra a repressão, a explosão da paixão e a celebração da vida através de uma concepção pessoal do gospel, do blues e do soul.

Esses contrastes foram refletidos em jóias pop que alcançaram o sublime como “Sexual Healing”, “How Sweet It Is”, “What’s Goin’ On” e a monumental “I Heard It Through The Grapevine”, que se transformou num clássico pelas mãos do Creedence Clearwater Revival.

Sua voz podia ser alternadamente áspera, rasgada, alcançar um falsete controlado, firme ou ainda se tornar suave e quente, próxima da voz falada.

Daí a incrível variedade de seu repertório, traduzido em mais de 20 discos.


Marvin Gaye havia atravessado a década de 60 como um curinga no celeiro/linha de montagem da Motown – além de gravar como cantor, participava aqui e ali como compositor, arranjador, produtor e instrumentista (além de piano, toca bateria em vários dos hits das Supremes).

O diabo é que todos os contratados da gravadora tinham, porém, de se encaixar no rígido molde pop ditado e concebido por Berry Gordy Jr.

Do repertório ao vestuário, passando por aulas de dicção e “boas maneiras”, todas as “arestas” de negritude eram aparadas em nome de um romantismo platônico e doce (mas nunca meloso).

O transe carnal dos blues e espiritual do gospel ainda estava lá, mas em baixíssimos teores.

Com essa fórmula, Gordy havia tomado conta das eletrolas e radinhos de pilha do universo.

Pop clássico eterno – mas uma camisa-de-força para talentos como Marvin Gaye e Stevie Wonder, cujo potencial só seria revelado no começo dos anos 70, quando ambos conquistaram sua autonomia dentro da gravadora.


O álbum “What’s Goin’ On”, lançado em 71, foi a primeira batalha ganha nessa guerra e custou todo o cacife do cantor.

O lançamento atrasou alguns meses porque a Motown não queria editá-lo de jeito nenhum, alegando que as músicas: (a) eram longas demais; (b) não tinham começo, nem meio, nem fim; (c) não falavam de “amor”, e sim de religião, política, drogas e ecologia.

Marvin ameaçou não gravar mais uma nota sequer pela gravadora, chiou barbaridade e fez pé-firme.

Ganhou, estourando a banca.

Três das faixas – a título, mais “Mercy Mercy Me” e “Inner City Blues” – viraram hit singles e, até hoje, as vendas do LP somam mais de 12 milhões de cópias só nos EUA.

Venceu, assim, a visão de um gênio que confessou ter passado a segunda metade dos anos 60 atormentado com a “irrelevância” do que estava gravando, diante da revolução de consciência que ocorria no mundo e do surgimento do selo Stax, afiando todas as arestas que a Motown limara.

Dirigindo-se, desde os primeiros sulcos, aos “brothers” e “sisters”, Marvin compõe um manifesto panorâmico da vida no gueto – pobreza, violência e drogas – antes de atacar as “questões universais” que tinham arrepiado a diretoria da Motown.

Musicalmente, não existe nada mais doce.

As faixas se interligam numa só levada, lânguida e hipnoticamente esticada numa espécie de suíte.

Tudo flui numa textura de cordas e metais que Paddy McAloon, do Prefab Sprout, definiu como “Mozart de patins”.


Marvin não escrevia partituras, mas contornou o problema gravando fitas e fitas assobiando as frases dos violinos, transcritas, então, pelo regente/orquestrador David Van DePitte.

Produzido pelo próprio cantor, o disco exibe uma maestria instrumental certamente assimilada no trabalho com Norman Whitfield.

Sua entrada na Motown, como compositor, arranjador e produtor, redefiniu o pop como marca registrada da gravadora, principalmente com os Temptations.

Com Marvin, ele desenvolveu o monumento “I Heard It Through The Grapevine”, o que já bastaria como credencial.

Em “What’s Goin’ On”, porém, Marvin mostra que já não precisava dele, nem de ninguém.

Os vários canais de gravação são utilizados num show vocal, algo como um grupo doo-wop de um homem só, em contracantos e harmonias que talvez só Sam Cooke poderia igualar, houvesse em sua época tecnologia para isso.


Na década de oitenta, a carreira de Marvin Gaye começou a degringolar até se converter numa tragédia.

Era uma cena diária.

O cantor estava em casa entupido de cocaína e álcool.

Seu pai, o reverendo Marvin, xingava a mãe.

Marvin partiu para cima do pai.

Mas, naquele dia, o reverendo sacou um revólver e matou o filho.

Sentou-se numa cadeira e ligou para a polícia.

“Não podia mais agüentar”, disse o Marvin pai.

O Marvin filho morreu no dia 1.º de abril de 1984, na véspera de fazer 43 anos.

Pouco antes de morrer, havia recuperado o gosto do sucesso das décadas anteriores com o hit “Sexual Healing”, que levou um Grammy.

Mas a paranóia dos últimos anos foi terrível.

Marvin dizia que ia deixar a música e virar monge.

Minutos depois falava que seria um símbolo sexual maior que Elvis.

Em seguida ligava para as ex-mulheres aos prantos.

Descontava no pai todas as surras que havia levado na infância.

Quatro meses antes de sua morte, com medo de assaltos, deu ao pai o revólver que o matou.