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domingo, março 18, 2012

Aula 3 do Curso Intensivo de Black Music: Jazz


E quanto ao jazz?

Bom, os jazzistas de hoje são vegetarianos, fazem ginástica e não querem saber de drogas.

Se as fotos os mostram meio doidões, de chapéu e suspensórios, em ambientes enfumaçados, é porque os fotógrafos querem recuperar a atmosfera boêmia e marginal do jazz dos anos 40 e insistem em fotografá-los desse jeito.

Mas os jovens jazzistas não gostam disso.

São palavras do contrabaixista Christian McBride, 24 anos, durante uma entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, há alguns anos.

Um dia, elas poderão simbolizar todo o jazz deste fim de século.

Para se avaliar melhor as declarações de McBride sobre o jazz de 1996, é preciso fazer algumas breves excursões ao passado.


Em 1946, Charlie Parker estava na Califórnia, onde a heroína era escassa e caríssima.

Aos 25 anos, Parker já não conseguia funcionar sem a droga, que não tinha dinheiro para comprar.

A abstinência forçada provocava-lhe espasmos musculares que quase o impossibilitavam de segurar o sax-alto.

Numa daquelas noites, sem saber o que fazia, Parker desceu ao saguão de seu hotel em Los Angeles para telefonar.

Estava nu.

Passado o alvoroço, foi mansamente conduzido de volta ao apartamento, dormiu fumando e incendiou o colchão.

O gerente do hotel chamou a polícia, que o recolheu a um presídio para psicopatas.

Dias depois, Parker foi removido para o sanatório de Camarillo, onde passou seis meses – o que, afinal, lhe salvou a vida naquela época.

Essa era então a situação do principal nome do jazz.

Em 1956, o jazz tornara-se muito mais respeitável.


Miles Davis acabara de ser contratado pela Columbia, que o promoveu a uma espécie de superstar do gênero.

Isso não impedia que, no palco, Miles adotasse uma postura hostil em relação à platéia, toda ela branca: não anunciava o nome das músicas, tocava de costas para o público e não se virava nem para agradecer os aplausos.

Os fãs do jazz, sempre especiais, admiravam Miles por essa atitude – ele era rebelde, como um jazzista deve ser, e fazia muito bem em desprezar o mundo branco.

O fato de que Miles só usava camisas italianas, vivia num quintuplex na Rua 77 à beira do rio Hudson e tinha uma Ferrari na garagem não era do conhecimento geral.

Em 1966, o jazz tomara a ofensiva e parecia estar dando uma definitiva banana para o mundo branco.


Saxofonistas como John Coltrane, Ornette Coleman, Albert Ayler, Archie Shepp, Pharaoh Sanders e outros estavam se convertendo ao Islã, juntando-se aos Panteras Negras, suspirando pela África e produzindo um tipo de jazz tão free que nem os experts, nem os outros músicos, nem eles próprios sabiam definir.

Pela primeira vez na história do jazz, quebrou-se o elo entre o artista e a platéia: subitamente místicos ou politizados, músicos como os citados não estavam a fim de divertir ninguém, muito menos fazer macaquices para os brancos, como acusavam Louis Armstrong e Dizzy Gillespie de fazer.

Muito bem.

Enquanto o jazz se tornava sério e chatíssimo, os Beatles engoliram o que restava do público jovem e o jazz perdeu uma geração inteira de novos aficionados.

Em 1976, muitos jazzistas já não mandavam fazer suas roupas no alfaiate, mas na costureira – os antigos ternos deram lugar às túnicas, batas e camisolas.

A androginia não se limitou às roupas, mas atingiu também a música: com o merecido fiasco do estilo free, só lhes restou ir para a cama com o inimigo – o rock.

Anos antes, seguindo as recomendações da gravadora, Miles Davis fora o primeiro a eletrificar sua instrumentação, passando a tocar em ginásios e se submetendo a abrir shows para grupos de rock.

Centenas de oportunistas o imitaram e o resultado foi a fusion – uma muzak que tanto os roqueiros de verdade quanto os jazzistas idem desprezavam, mas que criou um mercado próprio, composto de gente que, na década seguinte, seria chamada de yuppie.

Nunca o jazz se viu num beco tão corrupto e sem saída.

É verdade que, naqueles longos anos de trevas, os verdadeiros jazzistas (os que não morreram de fome, os que se recusaram a se aposentar e os que não se venderam ao rock) continuaram produzindo na medida do possível.


Dizzy Gillespie foi um que manteve a chama acesa, viajando e tocando com gente nova em toda parte.

À falta de material contemporâneo, as gravadoras abarrotaram o mercado com o grande jazz do passado – milhares de discos clássicos foram reeditados, a provar que havia mercado para a música com começo-meio-fim.

Mas uma música não pode viver apenas do que se gravou no passado.

E, então, em 1986, as coisas começaram a melhorar.

Uma brilhante geração de jovens jazzistas surgiu de repente no cenário.

Curiosamente, os ídolos desses garotos (quase todos nascidos nos anos 60) não eram Mick Jagger, Ringo Starr ou os Sex Pistols – mas Armstrong (sim!), Gillespie, Bud Powell, Clifford Brown.

Eles fizeram de conta que o rock nunca contaminara o jazz e retomaram a tradição de onde ela havia sido deixada nos anos 50, no hard bop.


O líder dessa contra-reforma, Wynton Marsalis, era um infante de 20 anos.

Ao seu lado, numa carga de cavalaria contra o dragão, surgiram Jon Faddis, Terence Blanchard, Donald Harrison, John Pizzarelli, Michel Petrucciani, Bobby Watson, Chico Freeman, Kenny Washington e muitos mais.

E, dez anos depois, em 1996, Roy Hargrove, Christian McBride, Gonzalo Rubalcaba, Stephen Scott, Michael Payton, Peter Delano, Al Foster e Yosuke Yamashita – sem contar uma batelada de jovens cantoras, entre as quais a fantástica Diana Krall.

Como foi que esses meninos chegaram ao jazz, quando o normal seria que estivessem tocando punk, funk ou junk?

Alguns, como Marsalis e Pizzarelli, tinham pais jazzistas.

Mas a maioria descobriu o jazz escutando LPs e CDs, cursando a Juilliard School of Music ou por meio de filmes ou enciclopédias.

Os blues, para eles, são apenas uma forma rudimentar do jazz – não um banzo do navio negreiro, como os ingênuos supõem que eles fossem para os jazzistas mais antigos.

Quer dizer que agora é assim? – dirá você. É.

E isso não diminui em nada a autoridade deles para produzir grande jazz.

Aliás, nunca foi preciso ser primitivo, miserável ou decadente para se tornar um grande jazzista – o avô de Miles Davis, por exemplo, já era um médico de classe média no Illinois em meados do século passado e sua família nunca plantou algodão, como o próprio Miles dizia.


Quase todos os jovens jazzistas, como Christian McBride, têm formação clássica, mas isso não chega a ser novidade – Fats Waller, Art Tatum e Bud Powell também tinham.

Os jovens jazzistas vestem-se com bons alfaiates, escovam seus dentes com Crest e, além de tocar, dão aulas, palestras e seminários sobre jazz.

Nada daquele folclore do gênio desarticulado, louco e infeliz que tanto marcou o jazz do passado.

É bom não esquecer que esses jovens jazzistas – quase todos negros – já nasceram numa América muito mais racialmente integrada que a de seus pais ou avós.

Eles têm trânsito livre em universidades, hotéis e restaurantes e dificilmente sofrerão as humilhações que Billie Holiday, Billy Eckstine ou Nat King Cole experimentaram.

E sua visão dos líderes negros dos anos 60, como Malcolm X ou Stokeley Carmichael, não é melhor do que a que eles têm dos ícones musicais daquele tempo, como Ornette Coleman ou Archie Shepp: um bando de radicais irresponsáveis.

Quanto à droga, são inteligentes demais para concluir que, se ela destruiu Parker, Billie, Bill Evans e tantos outros (assim como o álcool destruiu Bessie Smith, Laster Young, Fats Navarro), talvez seja melhor se limitar a Sprite, Gatorade ou Perrier.


Você resmungará que esses jovens jazzistas parecem meio mauricinhos e um pouco de rebeldia não lhes faria mal, né mesmo?

Pois o jazzófilo H. Dias, do alto de seus quase 20 mil discos de jazz, diria que, tocando o que eles tocam, deveriam (e devem) continuar exatamente como são.

Segundo o agitador cultural e radialista Joaquim Marinho, outro jazzófilo de carteirinha assinada, todo fã do jazz é um mórbido insaciável e adora exigir de seus ídolos que se estrepem na vida pelo prazer dele, fã.

Pois é melhor ir se acostumando: segundo o citado Christian McBride, esse tempo já passou.

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