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quarta-feira, fevereiro 20, 2013

Recordando Orlando Farias ou terça-feira não é um bom dia pra morrer!



Conheci o futuro jornalista Orlando Farias no campus do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), ali na Rua Major Gabriel, no primeiro semestre de 1978.

Eu tinha 21 anos, estava cursando Administração e havia me formado no ano anterior em Engenharia Eletrônica pela Utam.

Ele tinha 20 anos, estava cursando Filosofia e tinha um grupo de teatro amador no bairro de Santo Antônio.

Não recordo quem nos apresentou.

Ele era marxista-leninista e militava no então proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Eu era um roqueiro de viés anarquista interessado em escrever poesia marginal e tinha um não dissimulado desprezo pelos comunistas.

O fato é que nos tornamos bons amigos, apesar da visível discrepância política e ideológica entre nós dois.

Em 35 anos de convivência, encerrada abruptamente nesta terça-feira, 19, dia de São Conrado, que não é um bom dia para morrer, nunca sequer discutimos uma única vez.

Isso deve dizer um pouco sobre o caráter dele e o meu.

No começo dos anos 80, depois que ele se mudou para São Paulo, para trabalhar na Editora Alfa Ômega, fui visita-lo uma vez, sem avisar, e ele ficou surpreso pela visita.

– Camarada, os anarquistas não visitam marxistas-leninistas! – ironizou, com aquela sua meia risada que sempre me lembrava o Muttley, o cachorro do Dick Vigarista.

– Eu vim visitar o caboco Orlando Farias, que conheci em Manaus long time ago e ainda não era viado! – devolvi. “Se quisesse visitar marxistas-leninistas e viados, estaria no Mausoléu do Lênin, em Moscou, não aqui nesse fim de mundo...”

O Muttley riu que se engasgou.

Acabamos tomando um porre federal em um boteco da Vila Madalena, onde ele me apresentou para os cartunistas Angeli, Glauco e Laerte, que pareciam ser seus chapas há muito tempo.


Quando fundamos a Banda Independente Confraria do Armando (BICA), no começo de 1987, ele já estava de volta a Manaus e foi o jornalista que mais divulgou a presepada no jornal A Crítica.

Os créditos foram dados no livro “Amor de BICA”, feito a quatro mãos (ele, eu, Mário Adolfo e Marco Gomes), que teve duas edições e hoje é item de colecionador.

Nos anos 90 e 2000, continuamos nos vendo com frequência e dividindo as mesmas neuroses.

Em novembro de 1991, eu havia sido demitido do cargo pomposo de “Gerente de Engenharia de Qualidade”, da Philco da Amazônia, e, no começo do ano seguinte, estava trabalhando como um reles redator publicitário da G&F Comunicações (de Goreth e Francivaldo Garcia, esposa e cunhado do atual prefeito Artur Neto).

Na época, eu estava casado com a Jane Jatobá, que também conhecia o Orlando Farias da época do ICHL.

Ele começou a frequentar a nossa casa esporadicamente.

Orlando Farias insistia que eu devia largar a redação publicitária e me dedicar ao jornalismo.

Eu queria mesmo era ser escritor.

Quando saí da G&F, uns três anos depois, o jornalista Mário Adolfo me levou para ser editor de Cultura do jornal Amazonas Em Tempo, onde permaneci por dois anos.

Daí em diante, sempre que eu e Orlando Farias nos encontrávamos no Bar do Armando, a conversa girava em torno do jornalismo de resultados e da conveniência ou não de ser escritor.

Eu acabei escrevendo mais de 20 livros.

Ele publicou apenas um (“A Dança dos Botos”, em que faz uma análise da política amazonense de 1982 até hoje).


Orlando queria aprender inglês e ganhar o mundo, ser correspondente internacional no Afeganistão, onde “as coisas estavam acontecendo”.

Eu queria apenas um emprego razoável, onde pudesse colocar minhas contas em dia sem depender de agiotas.

Sempre estive mais com os pés na lama do que com a cabeça nas estrelas.

Invejava sua utopia, mas, decididamente, aquela não era a minha praia.

Isso também nunca nos distanciou.

Trabalhamos juntos, pela primeira e última vez, no jornal Correio Amazonense.

A convite do jornalista Paulo Castro (que havia sido editor de Economia no Em Tempo quando eu era editor de Cultura), eu havia saído da VT 4 Comunicações, onde também era um reles redator publicitário, para assinar a coluna “Boca do Inferno” no referido jornal.

Orlando Farias havia deixado o jornal A Crítica para assinar a coluna “Encontro das Águas”, no mesmo jornal.

Durante dois anos, nos víamos diariamente e conversávamos diariamente, dividindo as mesmas neuroses.


Em 2006, quando percebi que o barco estava adernando (não havia a menor hipótese de o candidato Amazonino Mendes derrotar o então governador Eduardo Braga e dar uma sobrevida ao jornal), lhe dei um toque:

– Meu caboco, está na hora de cair fora! Pedindo a conta hoje, a gente recebe o que é nosso de direito e vamos tocar a vida. O futuro, a Deus pertence!

O marxista-leninista preferiu acreditar em Deus e resolveu ficar no jornal até o fim.

Demitido sem nenhum direito trabalhista, ele procurou a Justiça.

Nos últimos anos, fui à meia dúzia de audiência na Justiça do Trabalho para depor a seu favor, como principal testemunha.

Nunca fui ouvido porque o suposto dono do jornal, o empresário Carlos Edson, tomou rumo ignorado e não sabido.

O ex-prefeito Amazonino Mendes, verdadeiro dono do jornal, ficou devendo essa pra o jornalista.

Espero que a grana devida seja devolvida aos cinco filhos do Orlando, privados agora de ter um bom provedor.


Há alguns anos, quando ele e Mário Dantas me procuraram para ser sócio no Blog da Floresta, abri mão da oferta:

– Meu caboco, eu vou estar na luta com vocês dois, mas não quero um tostão. Vou mandar matérias, fazer colunismo, lavar o chão, passar roupa e ir pra porrada, se for preciso. A grana que vocês receberem, dividam com quem merece, ou seja, com os jornalistas que vocês contratarem. Eu não quero um centavo de vocês dois, além da nossa amizade.

(O jornalista e cinegrafista Mário Dantas, sócio do Orlando, é meu amigo de adolescência e casado com a Maria José, irmã gêmea do centroavante Zeca Boy, do meu imbatível Setembro Negro)

Fui colaborador do Blog da Floresta durante esse tempo todo, sem jamais pedir que o Orlando me pagasse uma mísera coca cola.

O Mário Dantas está vivo e pode testemunhar sobre isso.

Seria uma bobagem eu não falar que a morte prematura do Orlando Farias me abalou profundamente.

O que me atraía no sacana era sua capacidade de trabalho.

Ele era um batalhador incansável, sempre procurando pautas que fugissem do rame rame tradicional das redações.

Nesse particular, nunca fui seu irmãozinho – mas também não me queixo.


Infelizmente, toda a minha vida foi uma insana batalha contra o jornalismo – e o mais risível disso é que hoje vivo disso.

Talvez, devido ao excesso de jornalistas na minha frente – tentando pegar o ônibus, receber do guichê no caixa do jornal, conversando a morena que me espera no banco da praça, pegando o meio quilo de açúcar na mercearia, perguntando ao atropelado como é que ele está se sentindo –, eu tenha procurado sempre estar à frente e acima da manada.

Não consegui, claro.

Mas sempre achei que os jornalistas deveriam parar com essas besteiras e escrever de uma vez o grande romance da geração deles.

De jornal, bom mesmo são as notícias das agências, porque invariavelmente mal traduzidas e curtas, e os anúncios dos cinemas, quando dão a hora certa que começa o filme.

O famigerado Lord Beaverbrook, magnata da imprensa britânica, descreveu à perfeição o jornalismo: “Jornalismo é tudo aquilo que eu consigo encaixar entre um anúncio e outro”.

O pior jornalismo é aquele que se diz dinâmico e moderno.

Vem pouco abaixo do jornalismo construtivo e responsável.

O jornalismo objetivo empata, em matéria de bobagem, com o jornalismo investigativo.


E o jornalismo do correspondente estrangeiro, sonho recorrente dos profissionais da minha geração, inclusive do Orlando Farias?

Escória da escória.

Principalmente se dinâmico, moderno, construtivo, responsável, objetivo e investigativo.

Tem toda razão as redações com seu ódio feroz ao correspondente estrangeiro.

O que faz o correspondente estrangeiro?

Acorda tarde, marca almoço com alguém da embaixada (em geral, segundo secretário), passa na agência do Banco do Brasil, pega malote na TAM ou na Gol, dá uma capotada, lê por alto jornais e revistas via Web, depois despacha a matéria.

A matéria é sempre contra o pobre do leitor.

Que ele é ignorante porque não leu tal livro, não viu tal peça ou filme, não sabe quem é fulano nem conhece o pensamento de sicrano.

O leitor é tratado aos pontapés porque não saiu do Brasil e, com boa vontade, só deu uma chegadinha, faz tempo, a Orlando, na Flórida, ou Paris, sempre “uma festa”, no linguajar rasteiro da profissão.

O correspondente no estrangeiro só tem um problema: catar material em publicação que não tenha chegado ao conhecimento do chefe de redação.

Se o leitor assina a revista onde saiu a publicação, dane-se o leitor.

Ainda bem que o Orlando Farias fugiu dessa armadilha.

O que não diminui um milímetro essa dor de nunca mais voltar a conversar com ele.

Estou triste pra caralho.

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