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quinta-feira, setembro 05, 2013

Parece que foi ontem, Manaus... Não foi não?!

Marcus Vinicius, my self e Maíra Pessoa

Trastes & contrastes. Título do meu quinto livro de poesia. Publicado em 1981. Duzentos exemplares mimeografados, distribuídos de mão em mão e enviados pelo correio. Reeditado em 1986, na antologia “Brinca comeu brinco”. 

Um poema longo, visceral, coruscante, apaixonado, febril e delirante sobre a Manaus da minha infância e a Manaus de agora e sempre. 

Em abril, havia nascido a minha primeira menina, Maíra, filha da Marilene. A pergunta que eu me fazia – e para a qual nunca encontrei resposta – era se seria justo a minha princesa herdar um mundo de merda, um mundo em que só quem tem grana é que manda e que presta. 

Mais de trinta anos depois a questão continua em aberto. A Maíra, entretanto, não se intimida mais com estes fantasmas. Ela vai à luta, contesta, pergunta, se irrita, uma nova jornalista da tribo dos desassombrados, mas já solidária às causas perdidas. 

O poema foi escrito após um porre federal no Bar do Leo, em Sampa, durante uma noite chuvosa e escrota. Saiu como um vômito. Talvez seja. (S.P.)


Trago em mim a liberdade vigiada,
Jeito manso de mestiço manau,
Um punhal enterrado no abdome,
Dois poemas pustulentos na garganta
E fixo na retina o anteontem.

Tenho preso, comigo, este espanto,
Esta pressa de tigres e morcegos,
Procurando desenhos hieroglíficos,
Vontade de potência, hierarquias,
Nesta terra de contrastes e desperdício.

Terço em mim a navalha cristalina,
Feito fosse uma ave de rapina

Traço em mim a inútil tentativa,
Feito místico em rito sibarita

Teço em mim a estranha cavalgada
Do inconsútil: a fala e a palavra

Porque

Vivo numa cidade encalacrada
Na perdição fatal do próprio ócio:
Uma cidade onde se produzem
Não proteínas mas relógios.

Vivo numa cidade ensimesmada
Sitiada na selva de seu tédio:
Uma cidade onde a indiferença
É de utilidade pública por decreto.

Vivo numa cidade malsinada
Onde a eterna solidão não se resolve:
Uma cidade onde as mulheres sonham
Não com poemas mas com revólveres.

E mais que vivo, sobrevivo,
Fantasma alado no lodo,
Mãos empoçadas na lama,
Desfibrando, pouco a pouco,
Coragem, revoltas, escamas.

Minhas armas são as palavras
(inúteis de já tão gastas).

Minha força são os poemas
(espúrios feito eczemas).

Minha raiva não tem mais-valia
(a rede Globo a anestesia).

Sim

Agora é terrível porque

O mostrador de quartzo cinge a hora,
O caramanchão de plástico tinge a erva,
O babalorixá devasso risca o ponto
E os megalomaníacos vão embora

Sim

Agora é horrível porque

Meus fantasmas surdos estão soltos:
Só trustes, trastes, em tristes engodos

Meus fantasmas lerdos estão cegos:
Só mormaço, modorra, mato, cemitério.

Meus fantasmas loucos estão mudos:
Só histeria, história, hienas, insultos.

Ora como urrar agora nesta era?
Como errar agora nesta ira?
Como dizer agora nesta lauda?

Que pelas mãos sagradas
Escorre o sangue dos justos
Enquanto a vida se cala
Num mudo medo inconcluso.

Que pelas mães escravas
Esvai-se o cancro do jugo
Enquanto a vida se fecha
Num torpe modo absurdo.

Que pela meia-palavra
Esbarra o manso no puto
Enquanto a vida vagueia
Num semiciclo obtuso.

Sim, Manaus, me explica isso,
Enquanto destravo o choro,
Enquanto repico o sino.

Lembro meu tio-avô sentado
Numa cadeira preguiçosa
E recitando entre dentes:
Esta cidade tem uma parte
de mim – à parte
o meu direito de tê-la.
Assim, me dou neste plano,
um passo, um palmo, dez anos,
rosa, vento morno, abrigo.
De minha parte abro mão
e por direito divino
transfiro aos meus filhos

Sim, Manaus, me explica isso,
Enquanto recobro o sono,
Enquanto reato o riso.

Lembro meu pai suado,
limpando a graxa do rosto
e repetindo confuso:
Esta cidade tem um pouco
de nós – à parte
O nosso direito de amá-la.
E assim dividiremos
este pouco palmo que restou
de peixes, pássaros e pedras:
são nossos os igapós poluídos,
alguns pastos queimados,
esta gente decrépita

Cidade em estado de sítio.
Saudade em estado de choque.
Covardes aqui sitiados.

Como conjugar o verbo fome
com crianças sórdidas,
sem rosto e sem nome?

Como conjugar o verbo matar
com gestantes imundas,
sem roupa e sem lar?

Como esconjurar pedintes em ânsia,
carniças da faina
que o próprio homem planta?

Com a palavra os políticos,
encantados com o próprio umbigo.

Com a palavra os mandatários,
das rendas infames do ágio.

Com a palavra os oligarcas,
da fome plantada a faca.

Com a palavra o judiciário,
dos mil processos guardados.

Com a palavra o magistério,
repressores cidadãos beneméritos.

Com a pala corto a lavra
mas nunca o sentido
que esta revolta causa.

Vou percorrer de novo esta veloz/cidade
amargurando seus totens & ventríloquos.

Vou perseguir de novo esta lubri/cidade
maldizendo seus feaks & dentifrícios.

Vou persistir de novo nesta real/idade
amaldiçoando seus deuses em sacrifício.

Mas temo que a força das palavras
nada acrescente ao céu de absinto,
que trago, terço, teimo, e falo,
e gemo, azurro, tremo e minto

Estranha cavalgada repetindo horas:
compulsão febril, ignomínia inglória.

A ponte azulada da Cachoeirinha
Contornando a ilha do Caxangá
Esconde sapos esverdeados
Que à noite se disfarçam de piá
Enquanto aqui coloco no papel
Meus sentimentos de fel.

Ao largo de Educandos,
Cidade alta, classe baixa,
Serpentes trêfegas trafegam,
Imantando de luz antigos casarões.

Vestígios do fausto,
Vetustos prodígios,
Que um tempo multiforme
Recusa deglutir.

Sonhos maus gestando a madrugada.
Sonhos mil gastando a madrepérola.
Sonho & mais tristeza me dá guarda.

Cruzando a Aparecida, rumo ao Centro
Da gravidade zodiacal na oitava casa do medo:
Vendaval eletromagnético, terra prometida, Canaã
Dos beiradões, onde béri béri, malária, mal de Hansen,
Leishmaniose, impaludismo e esquistossomose
São tão comuns como cunhans morrendo de câncer.

Na Praça Catorze de Janeiro,
Observar os loucos
Mostrando ao mundo
Suas garras de rapina,
Suas dores de esc(r)oteiros

Só mastros girando ao istmo suas nuvens de fagulha.
Só ratos deixando rastros e risos nas esquinas.
Só vida respingando víbora no patamar das buscas.

Descambar então por Petrópolis, São Francisco, Adrianópolis,
Passando pela Raiz do problema ao Japiim,
Onde a noite é mais rápida sem a noção emblemática
Do pecado agonizante nas favas cheirando a vela.

Sim,
É necessário até
O gesto do autômato,
O jeito do perdulário,
O gosto do precipício,
Na realidade perdida
Entre o ato e a ação.

Sim,
É necessário manter a calma,
Mesmo com gestos aparentes,
E esconder os gemidos
Nos guardados da memória
(Farrapos rotos que somos).

Sim,
Não apenas rebelar-se
Feito guerrilheiro basco
Medido pelo desastre
Da bomba que detonou.

Sim,
É preciso resistir, mesmo calado,
Com o sonho preso no bojo
Ou na vertigem dos passos.

Porque, além da angústia dos corpos desassistidos
E do logotipo visível
Nas câmaras de tortura do Distrito Industrial,
Estarão as nossas línguas:
Debatendo, debalde, ou decifrando o enigma.

Porque todas as coisas
Tem seu começo ou novelo
Na mesma dor temporã.

Mister é decifrá-las, ponto por ponto,
Nos escondidos do mundo,
Com olhos de seixo e águia,
As garras fechadas de pássaro
Recusando tanto dor

Porque nascer e viver
Não é tudo.
Na vida,
Não é tudo.
Na vida
De quem quer
Viver a vida.
De quem quer
Que seja
E veja
Na vida, a outra, a esperança,
Buscada nos porres de madrugada
Em que viramos criança.

Aqui, na cidade mal amada,
Esperamos recompensas
Que possam nos devolver
A identidade perdida
Entre os anúncios de néon
(bêbados de coca cola,
tênis all star, calça levi’s
e moletons adidas).

Que possam nos devolver
A noção perdida do tempo
(esquecida entre o acordar cedo
e o tardio deitar nojento).

Diluída na vida carcomida, dia a dia,
Nos grotões de agora e sempre,
daqueles mesmo cheios de gente,
Daqueles cheirando mijo e mofo,
No miserê de putas, postas e povo.

Já te amei demais, Manaus, já
Te amei de mal, já
Te deixei gozar de mim, já
Te fiz mais do que podia,
Mais do que podar tuas árvores
Nas ruas em pleno dia
E nem faz tanto tempo.

Não lamento. Não choro. Me contento
Em saber que em ti já fiz de tudo,
Inclusive trepar em pé,
Encostado em alguns muros,
Quando era madrugada
E a vontade de gozar
Superava o medo dos tiras,
Mantedores da ordem e da mentira.

Os bares estão, de novo, brilhando.
Os bares estão, de novo, abertos.
Mas não pra tua gente chafurdando nas favelas.
Mas não pros teus párias e mendigos de espera.
Mas não pros loucos e revoltados em suas celas.

Os bares estão abertos pros mesmos
Donos de tudo, donos de homens mudos,
Donos da fome que fabrica mongolóides.
Donos do verde dor que tememos tanto:
Donos do verde horror, do verde dólares

São tantas cidades em uma só,
Que só conheço a pior,
Que só conheço a menor,
Que só vivo a resmungar.
E não estão todos surdos, sabe?
E não estão todos mudos, viste?
E nem é todo mundo, saca?
Que trapaça, ameaça, que devasta
Esta terra maluca amazônica,
Esta selva em que a verve cala,
Porque só calar nos resta agora,
Na diáspora interna em que vivemos,
Relutando entre ser colonizado
Ou morrer do próprio veneno.

Eles acenam com progressos abissais,
Mas o que se sabe, de concreto, do progresso,
É um mistério travestido em missionário,
Falando em paraíso aos nossos índios
E roubando nossas fontes minerais.

O que se sabe, por certo, do progresso,
É uma gente chorosa pelos cantos,
Nos cortiços, nos mocambos, nas favelas,
É uma gente envergonhada das mazelas,
Que sonha de progresso o seu regresso
Ao mundo ameno do esquecido interior.

O que se sabe, ao certo, do progresso,
Está no número de homicídios e de assaltos.
Está no número de mortos no asfalto.
Está no rosto sorridente dos gerentes,
Entronizados nas multinacionais,
Contabilizando o lucro pelo luto
E corrompendo lideranças sindicais.

O que se sabe do progresso,
É que não houve.

O que se soube do progresso,
É que não ruge.

O que se fala do progresso,
Não se ouve.

A não ser que progresso seja andar apressado,
Sem tempo para sonhar,
Os instintos amortecidos pelo glamour da tevê.

A não ser que progresso seja ser estuprado
Em algum terreno baldio,
A vizinhança olhando, com medo de intervir.

A não ser que progresso seja um tiro no crânio
Sufocado pelas dívidas,
Filhos chorando de fome e a mulher tuberculosa

Sim,
Já chega desta vida pré-datada dos cheques,
Desta gula atribulada dos sheiks,
Desta zona alucinada na selva.

Porque todas as coisas
Tem seu desfecho ou anelo
Na mesma angústia malsã.

Vamos tentar mudar
A marota rota da história,
Reinventando a cabanagem
Sem qualquer pavulagem.

Aí, celebraremos nossos filhos
Na edificação dos mitos,
Com a esperança sagrada
herdada de Ajuricaba.

Pois só assim resistiremos
Ao pasto de gado gir,
Às minas de bauxita,
Às jazidas de caulim
E à truculência selvagem
Dos pistoleiros fardados,
Invadindo nossa terra
Com papéis incracomprados.

Porque todas as coisas
Tem seu enredo ou avesso
Na mesma luz da manhã

Sim,
Somos fugitivos da seca nordestina,
Somos fugitivos dos duros seringais:
Trocamos o chibé pelo cheese-salada,
Trocamos as açucenas pelos espinhais.

Sei,
Em vez de cacimba, um tanque de amianto,
Mas água que é bom necas de pitibiriba.
O piá agora sonha com um videogame
E a piá aposentou os vestidinhos de chita

Certo,
Como mariposas bêbadas em noite escura,
Fomos hipnotizados pelas luzes da cidade.
Os corpos submissos e escarrando sangue
Só dão um toque original a esta fealdade.

Porque todas as coisas
Tem seu pretexto ou averno
Na mesma malva-maçã

Pois é, Manaus, aqui estou contigo,
Decifrando teus sinais luminosos,
Como o marulho de água correndo
Pelo leito de um rio pedregoso.

Pois é, Manaus, aqui estou contigo,
Traduzindo tua gente ignara:
Sem pinceladas de verde-esperança,
Sem o ardil das meias palavras.

Pois é, Manaus, aqui estou contigo,
Brotando do silêncio do chão,
Sonhando ou comendo apenas
As sobras do teu coração.

Pois é, Manaus, aqui estou contigo,
Sentindo a tristeza de um mártir,
Pela dor que me dói tanto
De mais amor não ter pra dar-te.

(Hotel Augusta Boulevard, São Paulo, agosto de 1981)

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