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terça-feira, fevereiro 04, 2014

Pelo telefone, deixa isso pra lá... pela intimação


Emicida

Em 1916, o chefe da polícia já estava ligando para dizer que na Carioca tinha uma roleta para se jogar, segundo Pelo Telefone, canção considerada o primeiro samba registrado em nossa história, em que o refrão recomendava ao ouvinte “Deixe as mágoas pra trás, ó rapaz, fica triste se é capaz e verás”.

Sempre que ouço fico pensando: “Por que a polícia tem que ficar mandando os outros ir pra outro lugar?”. O contexto era cruel. O samba ainda era muito reprimido naqueles primeiros 30 anos pós-abolição da escravatura. Música de preto junta preto. Na impossibilidade de compreender o que aquilo era realmente, a primeira opção era, como ainda é: “Tira eles dali, manda de volta pro lugar deles”.

Obviamente essa é uma das várias interpretações possíveis desse samba que nasceu de improviso no terreiro de Tia Ciata, uma das tias baianas mais conhecidas, principalmente por abrigar o samba em sua jornada retirante, saindo da Bahia de São Salvador e se enraizando no Rio de Janeiro naquele começo de século.

Em 1964, Jair Rodrigues lança o clássico tido por muitos como o primeiro rap brasileiro. A música era Deixa isso pra lá, que dizia em suas primeira rimas “Deixa isso pra lá, vem pra cá, o que que tem? Eu não tô fazendo nada, você também, faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?”.

A canção era revolucionária para a época. Lembro-me de que ao conhecer o mestre Jair Rodrigues conversamos sobre ela, e ele disse que ao mostrá-la para os arranjadores eles falavam que não sabiam “arranjar conversa”, em referência à maneira como a música soava, remetendo a um estilo falado de canto e não tão preso à melodia como era praxe na época.

Acho Deixa isso pra lá revolucionária – até porque ela traz sutilmente e populariza a mãozinha de Single ladies, da Beyoncé, na horizontal, mas isso é assunto pra outro post – pelo ano, pela forma, pelo estilo e pela coragem. Mas ela também me traz uma reflexão semelhante a Pelo telefone: a gente incomoda mesmo, né? A letra é um claro desabafo sobre o que andam falando, mas que eles – os personagens da canção – não estão nem aí. Então deixe que digam, que pensem, que falem... eu não tô fazendo nada, você também...


Sempre recorro de forma bem-humorada a Deixa isso pra lá, como se fosse uma profecia sobre o que estava por vir em nossa trajetória, em conversas com amigos sobre uma espécie de conservadorismo instantâneo que surge quando o tema é rap brasileiro.

Para cada manifestação individual que chama a atenção, emergem dezenas de “especialistas em tudo”, detentores da verdade universal, o “Tribunal do facebook”, conforme batizamos o último trabalho de Tom Zé.

E é a Deixa isso pra lá que retorno neste momento, em que o tema da moda é rolezinho, que nada mais é do que um batuque na cozinha que a sinhá continua não querendo.

Temendo uma insurreição crioula, uma inquisição bronzeada e de Juliet no rosto, que virá cobrar todas as mazelas sociais, abismos econômicos e discriminações raciais a que foi submetida desde antes de nascer, a burguesia se apavora e exerce seus podres poderes, uso “burguesia” porque concordo com Caetano Veloso quando ele diz que a palavra “elite” é discriminada.

Gosto da palavra “elite”, uma palavra que tem em seu significado o que existe de melhor em uma determinada categoria. Porém, é exaustivamente usada para se referir a quem tem muito dinheiro e não raro possui somente isso, vinculando o termo ao que há de mais cafona entre o céu e a terra.

Mas, voltando a nosso rolezinho, a massa movida pelo funk (ostentação) e considerada a mais alienada, a menos politizada, a subcultura contemporânea ou qualquer outra ofensa vinda do asfalto, involuntariamente conseguiu um “case” fascinante (sejamos publicitários aqui, temos um belo case em mãos).

Talvez essa mesma massa nem tenha se dado conta disso, mas expôs de uma maneira exemplar toda a segregação, o racismo e o medo (dos burgueses), fazendo apenas o que a publicidade e os meios de comunicação ordenam que faça todo dia: consuma e se exiba.

Não preciso falar sobre o rolezinho em si nem sobre a repressão policial chucra e costumeira da despreparadíssima Polícia Militar do Estado de São Paulo de Geraldo Alckmin (o que também daria outro texto).

Eu mesmo já tive uma arma apontada para minha cabeça há dez anos em uma simples ida ao cinema, que fica no shopping. Era meu rolezinho, com mil, duas mil, três mil pessoas? Não, éramos apenas eu e meu irmão mais novo tendo que tirar nossas camisas sob os berros dos policiais na frente de todos os que passavam.

Nada disso é novidade para nós. As novidades são a liminar, a vistoria, a análise e a permissão de acesso ao shopping para um mesmo perfil de cidadão, aquele clarinho que mora cercado, que adora falar sobre meritocracia, democracia e direitos, mas que na primeira possibilidade de criar uma verdadeira democracia aciona a liminar e o porrete nos mais escurinhos, mostrando que realmente Narciso acha feio o que não é espelho.


No tempo de Donga, no tempo de Jair, no tempo de Caetano ou no meu tempo, tudo igual: o perfil padrão vítimas do apartheid criado e alimentado por quem há pouco mais de um mês chorava a morte de Nelson Mandela.

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