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quarta-feira, maio 14, 2014

Apesar de alguns defeitos, o filme sobre a agonia de Getúlio brilha na paisagem escurecida pela safra de comédias cretinas


Tony Ramos no filme Getúlio, de João Jardim

Augusto Nunes

O primeiro longa-metragem sobre o homem que governou o país por turbulentos vinte anos dura menos de duas horas e dezenove dias. A cena de abertura de Getúlio (Brasil, 2014), que estreia no país nesta quinta-feira, mostra o atentado da Rua Tonelero, que matou o major Rubens Vaz e feriu o jornalista Carlos Lacerda. O final infeliz chega com o suicídio do mais importante político da história do Brasil. Ao limitar-se à exumação dos fatos ocorridos entre 5 e 24 de agosto de 1954, o diretor João Jardim demonstrou que conhece Getúlio Dornelles Vargas o suficiente para entender que gente assim não cabe num filme só.

Ainda que fosse tão extensa quanto os discursos do jovem Fidel ou as apresentações televisivas de Hugo Chávez antes de recorrer aos médicos do velho Fidel, nenhuma obra cinematográfica conseguiria condensar a saga do gaúcho de São Borja que, depois do batismo eleitoral, em 1909, foi deputado estadual, deputado federal, ministro de Estado, governador do Rio Grande do Sul, senador e chefe de Estado durante vinte anos, oito dos quais como ditador. O resgate terá de ser feito por etapas. E Getúlio é um bom começo.

Qualquer filme histórico seria bem-vindo num momento em que a produção nacional parece monopolizada por comédias de quinta categoria. Mas Getúlio não é um longa qualquer. A cuidadosa reconstituição de época e a fotografia de Walter Carvalho recriam o Rio de Janeiro dos anos 1950 e restauram o clima político sufocante daquele trágico agosto. O roteiro acompanha passo a passo a caminhada do presidente que saía da vida para entrar na história. Em torno do pivô da trama, movimentam-se coadjuvantes com den­sidade de protagonista.

Abstraída a inexplicável ausência de Oswaldo Aranha, amigo íntimo de Getúlio desde os anos 1920 e ministro da Fazenda em agosto de 1954, não faltou ninguém. Alguns desempenhos são impecáveis – Drica Moraes, por exemplo, é a reencarnação de Alzirinha Vargas, a filha predileta de Getúlio. Outros confirmam que só intérpretes de primeira grandeza igualam o brilho dos atores que encenaram o drama na vida real.

Premiado com o papel principal, o competente Tony Ramos consumiu dois anos na composição do personagem. Profissional aplicado, hospedou-se no Palácio do Catete durante 51 dias seguidos, ao longo dos quais teve pesadelos na cama em que Getúlio dormia, usou a escrivaninha que testemunhou o parto da carta-testamento, atravessou madrugadas nos corredores reduzidos pela crise a becos sem saída. Incontáveis consultas a livros e jornais antigos tornaram a esfinge menos indecifrável.

Tony aprendeu que um gaúcho da fronteira pode ser tão cauteloso, astuto e matreiro quanto o mais radical dos mineiros. Um macacão importado de Los Angeles deixou-o 30 quilos mais gordo. As semelhanças foram acentuadas por duas horas de maquiagem, que incluía bolsas dos olhos e rugas simuladas com o uso de látex, e pela adição diária de fios de cabelo branco ao couro cabeludo. Fisicamente, tudo a ver com Getúlio. Pena que as falas não sejam tão irretocáveis quanto os silêncios.

Entrevistado por VEJA, o ator revelou que a inexistência de registros da voz de Getúlio em conversas privadas o aconselhou a não reproduzir o que ouviu nos discursos gravados. A decisão resultou no sumiço de pelo menos duas marcas registradas: o uso da segunda pessoa do singular e o “l” pronunciado à castelhana. O personagem não diz “tu” nem sequer nas conversas reservadíssimas com Alzirinha. E o “Trabalhadores do Brasil” que abria os discursos do Primeiro de Maio é deformado pelo “l” de Brasil com som de “u”. Tais distorções talvez sejam originárias do método. “Personagem não vai comigo para casa, não entra nem no carro”, informa Tony Ramos.

Se a regra abrisse uma exceção para Getúlio Vargas, Ramos poderia ter interpretado o papel com a mesma intensidade convincente exibida pelo inglês Daniel Day-Lewis em Lincoln. Uma temporada no estado natal de Abraham Lincoln ensinou ao ator britânico como é o sotaque de quem vive em Illinois. Tony Ramos nem precisaria ter instalado Getúlio no quarto de hóspedes para descobrir como o filho dos pampas falava em casa. Bastaria uma semana em São Borja para transformar um bom desempenho numa performance perfeita.

(Publicado na edição impressa de VEJA)

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