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quinta-feira, maio 29, 2014

Horror simbólico e real


Estudo confronta o canibalismo ocorrido após o naufrágio do navio que inspirou “Moby Dick” com o sutil tratamento dado por Melville ao abismo entre homem e natureza

Em novembro de 1820, o “Essex”, um baleeiro originário de Nantucket, no estado americano de Massachusetts, foi atacado duas vezes por um grande cachalote no Pacífico. Com a quantidade de comida, água e equipamentos náuticos que pode agarrar no curto intervalo que o navio levou para soçobrar, a tripulação de 20 homens abandonou o “Essex” em três escaleres. Pelos mais de 90 dias que se passaram até que fossem recolhidos, navegaram ao léu pelo Pacífico, torturados pela sede, a fome e o delírio, bebendo a própria urina e finalmente cedendo ao canibalismo. Apenas oito sobreviveram.

Essa é a história de caça à baleia que mais diretamente inspirou “Moby Dick”, de Herman Melville. Mas Melville encerra seu romance com o naufrágio do “Pequod” (seu “Essex”) e o afogamento de todos, com exceção de Ishmael, o narrador. Talvez não considerasse pertinente a sequência da história real. Melville compara o oceano aos “horrores da vida apenas semiconhecida” que cerca “a Taiti insular” de cada alma. “Não te afastes dessa ilha”, adverte, “pois jamais poderás voltar!”

Em certo sentido, a história do “Essex” afasta-se em direção da “vida apenas semiconhecida”, mas talvez não de uma forma que inflamasse o tipo de imaginação de Melville. Seu universo era enormemente metafórico. Ele não conseguia descrever a tessitura de uma esteira ou a disposição de uma corda de arpão sem encontrar simbolismo nelas. Seu Capitão Ahab e seu Moby Dick são monumentos à execração mútua entre homem e natureza.

Mas, com o naufrágio do verdadeiro “Exssex”, a baleia branca desaparece; a história se contrai e se volta para dentro; torna-se, como foi, intestina. Todo o problema em torno de 85 g de biscoito de despensa e 280 ml de água por dia debaixo do sol escaldante é que eles se resumem a isso; e que com o passar do tempo, reduzirão a pessoa a devorar as entranhas do seu amigo. Não é preciso dizer mais nada. Em outras palavras, os fatos falam por si sós.

Na realidade, a história se espalhou celeremente por toda a comunidade de baleeiros. No ano seguinte o primeiro contramestre do “Essex”, Owen Chase, publicou seu relato da penosa experiência, agora reeditado como “O Naufrágio do Baleeiro Essex” (“The Wreck of the Whaleship Essex”). Depois, em 1960, encontrou-se um caderno de notas que encerrava outra narrativa sobre o “Essex”, paralela à de Owen Chase, escrita por Thomas Nickerson, criado de bordo no navio e um dos tripulantes do escaler de náufragos de Chase.

Agora, “No Coração do Oceano” (“In the Heart of the Sea”), de Nathaniel Philbrick, usa a versão de Nickerson para ampliar o relato de Chase, mais conhecido, além de uma enorme quantidade de leituras complementares sobre todos os aspectos da história – desde a comunidade dos “quakers” do começo do século XIX em Nantucket e a atividade baleeira até a psicologia da sobrevivência e a incidência “in extremis” do canibalismo.

Philbrick está impregnado desse assunto e de todos os ramos do conhecimento correlatos de uma forma que o próprio Melville teria aprovado. Mas, naturalmente, onde Melville é exagerado e brincalhão, Philbrick fala a sério. De modo geral ele realiza com grande habilidade sua pesquisa em torno do drama da primeira mão de suas fontes, mas há momentos em que é infeliz. Teria sido necessário, por exemplo, citar as provações dos combalidos soldados da Segunda Guerra Mundial para explicar o desespero dos náufragos? E quando Owen Chase decide “entregar-nos totalmente aos rumos e à vontade do Criador”, será que nos interessa mesmo saber que isso é prova da compreensão intuitiva da teoria do “ativo-passivo” das situações de sobrevivência, como descreveu o psicólogo John Leach?

Na verdade, não é fácil escapar de ser eclipsado por Owen Chase. Seu livro é ao mesmo tempo direto e cheio de estilo, flui aos ritmos e imagens familiares a seu público leitor da Bíblia. Seu minúsculo barco lançado ao sabor da tempestade, por exemplo, torna-se “uma partícula de matéria perante o terror esmagador da tempestade”; e o sono dos homens, depois de uma vigília longa e angustiante, torna-se tão profundo que “nenhum sonho poderia romper as sólidas amarras do alheamento que agora aprisionavam a mente”. Mas Philbrick tem a vantagem de ser moderno. Onde Chase, no século XIX, lança um véu, ele pode levantá-lo num átimo.

Ele queria saber mais, conforme diz em seu prefácio, e nós também – sem nos importar com os ritmos. Com um grau de minudência que quase beira o de um voyeur, ele descobriu que, quando um organismo é privado de água, os lábios se retraem como que amputados, a gengiva preteja, o nariz reduz-se à metade e a pele se contrai a tal ponto em torno dos olhos que impede o pestanejar. Descobriu que a gordura, em organismos desnutridos, transforma-se numa “substância gelatinosa translúcida” e que a carne que um organismo nesse estado pode fornecer será de valor nutritivo duvidoso, assim desprovida de gordura. Ele nos fala também dos efeitos psicológicos da desnutrição, e da degradação para um comportamento “bestial”, como foi demonstrado pelos sobreviventes de Auschwitz.

E, de forma mais ampla, ele se interessa por coisas que Chase e Nickerson ignoram; o papel desempenhado pelas mulheres de Nantucket na ausência dos baleeiros; a posição dos membros negros da tripulação e os motivos pelos quais eles foram os primeiros a morrer; a solidariedade dos habitantes de Nantucket a bordo e seus efeitos sobre suas chances de sobrevivência. Ele conhece a história de outros naufrágios e tripulações de náufragos, e os motivos pelos quais se saíram melhor ou pior. Conhece a linguagem sibilante das baleias e tem uma teoria sobre por que o barco foi atacado. Também sabe mais sobre o Pacífico do que a tripulação do “Essex”, e entende por que eles não conseguiram pescar na da na assim chamada Região Desolada.

Mas a coisa mais dolorosa que ele sabe é algo que a tripulação do “Essex” também tinha todas as condições de saber, mas ignorava: que a ilha de Taiti, que eles poderiam ter alcançado, não era habitada por canibais. Isso, ironia cruel, era o que eles mais temiam. Os ingleses tinham uma missão na ilha desde 1797, mas, por uma “combinação de arrogância, ignorância e xenofobia”, diz Philbrick, os habitantes de Nantucket não quiseram arriscar aportar em suas praias. Melville sabia que a ilha era segura, e anotou esse fato em seu exemplar do livro de Owen Chase. O que nos traz de volta a sua referência, em “Moby Dick”, à “Taiti insular” em meio aos horrores do oceano circundante. Nessas circunstâncias, o leitor se pergunta se essa expressão não teria sido uma alusão deliberada à incauta e desventurada tripulação do “Essex”.

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