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quarta-feira, maio 21, 2014

Liêdo Maranhão deixa sentimento de perda para a cultura popular


O escritor recifense sofreu uma parada cardíaca às 5h30 da última quarta-feira, dia 14

“Sou Liêdo Maranhão de Souza, nascido em 3 de julho de 1925, no Recife, bairro de São José. Sou dentista e esquizofrênico cíclico, como um amigo psiquiatra já me disse. Sou poliglota: falo espanhol, francês, e falo gago também”. O depoimento concedido há dois meses dá pistas sobre o bom humor insistente do escritor e pesquisador de cultura popular.

A alegria das anedotas, no entanto, deu lugar à tristeza diante da notícia: Liêdo Maranhão, 88 anos, morreu na última quarta-feira, às 5h30, após parada cardíaca. Familiares e amigos acompanharam o velório no Memorial Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes, que prosseguiu até 11h da quinta-feira. A cremação do corpo ocorreu em seguida, no mesmo local.

Liêdo estava internado no Hospital Santa Terezinha há três meses, em decorrência de sequelas provocadas por um acidente vascular cerebral (AVC), que o deixou sem andar e falar. O escritor passou décadas coletando e pesquisando a cultura popular do estado, trazendo a linguagem das ruas ao ambiente acadêmico. Também foi escultor, cineasta, fotógrafo, dentista. Para ele, a cultura popular se baseava em futebol, religião e sexo.

Nos fundos de casa, em Olinda, ele mantinha a Casa da Memória Popular, onde está guardado o seu acervo. A paixão pela escultura repousava nas obras de ferro e madeira, espalhadas pelo quintal, e nos presentes recebidos de ícones da cultura nordestina, como Bajado, Samico, José Cláudio, João Câmara, todos amigos. Ele morava com a esposa, espanhola conhecida no período vivido na Europa, entre 11 países.

Em junho de 2013, o Viver visitou o espaço, uma sala com dois ambientes, refrigerada. Revistas, santinhos, objetos antigos, livros, fotografias, dedicatórias e a capa emoldurada de uma revista com a foto de Bill Gates com a frase “vou doar 90% da minha fortuna”. A coleção de livros sagrados convive com série de revistas pornográficas, publicadas na ditadura militar. No quarto, dezenas de diários encadernados, escritos desde 1971, de onde saíram todos os 14 livros.

Certa vez, o escritor Ariano Suassuna declarou: “Liêdo é um dos maiores conhecedores da literatura de cordel do Nordeste.”

Liêdo deixa uma esposa, a espanhola Bernarda Ruiz, com quem era casado havia 60 anos, além de dois fihos, Roman e Ruth.


A Cepe relançou três livros do escritor: “Classificação popular da literatura de cordel”, com apresentação de Ariano Suassuna, “Que só”, sobre a expressão usada para comparações, e “Marketing dos camelôs do Recife ou O mundo da camelotagem”. A edição com as obras custa R$ 15.

Há um inédito: “O porto e a zona do Recife - Opening city dos mariners”, sobre as zonas de prostituição nas décadas de 1950 e 1960.

Obras completas:

Classificação popular da literatura de cordel (1976)
O mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste (1977)
O povo, o sexo e a miséria ou o homem é sacana (1980)
O folheto popular: sua capa e seus ilustradores (1981)
Conselhos, comidas e remédios para levantar as forças do homem (1982)
Cozinha de pobre (1992)
Que só (1993)
O marketing dos camelôs do Recife (1996)
Classificação popular da literatura de cordel (1976)
A fala do povão: o Recife cagado-e-cuspido (2004)
Rolando papo de sexo: memórias de um sacanólogo (2005)


No ano passado, Liêdo Maranhão concedeu essa entrevista à jornalista Luiza Maia:

Nas décadas de 1950 e 1960, o senhor ia quase diariamente ao Mercado de São José e levava dinheiro para o pessoal de lá. Sua mulher reclamava?

Minha mulher é espanhola, europeia, não gostava. Eu não tenho ambição, não gosto de automóvel, ando de ônibus. Dirigi um tempo, mas é um negócio horrível. O automóvel individualiza a pessoa. No ônibus, você vai junto. E hoje, com essas minissaias...

As mulheres mudaram muito?

Mudaram, claro. As mulheres são muito livres hoje, não tem mais aquele preconceito, aquela vergonha que tinha no meu tempo. As pessoas moralistas, puritanas, acho que isso é uma hipocrisia. Gosto do povo porque é solto, é leve. As pessoas que têm posse têm até medo de se aproximar das pessoas pobres.

O senhor ainda frequenta o mercado? Qual a última vez que foi?

Há uns 15 dias. Agora, eu estou sem condições. A idade, o medo de esquecer na rua. Eu ando com isso, olha (mostra o cartão que o filho fez), porque posso perder a memória.

O senhor tem algum livro inédito?

Eu tenho um sobre a zona do Recife. Eu era habitué da zona. Era um negócio bonito, as radiolas de ficha, as pensões, as prostitutas. Eu tinha uma ‘amigação’ lá no centro, Alice. Era o que a gente chamava ‘tabaco de caridade’. Eu, liso, estudante, não pagava. Ela até comprou um pijama para mim. Conheço muita zona. Em Hamburgo, eram as mulheres nuas, na vitrine, sentadas em uma poltrona, com registradora e tudo. Na França, você estava na rua e a mulher abria a capa de pelo, nua. Mostrava retratos, dizia que tinha filhos para cuidar.

Qual o nome do livro?

O porto e a zona do Recife - Opening city dos mariners, porque os americanos chamavam de cidade aberta. Aqui, quando veio Rossellini, Gilberto Freyre mandou levar para a zona. Ele era casado com Ingrid Bergman e se engraçou com uma prostituta. E ela ‘vou nada, um homem chato’. A zona era um cartão de visitas do Recife.

Por que o senhor gosta de pesquisar sobre a safadeza?

Porque é a sinceridade do povo. Lolita, o primeiro homossexual a enfrentar a burguesia pernambucana, dizia “a delicadeza é um dom, mas a safadeza é que é bom”. Antigamente, quando os frangos - que viado é coisa do Pasquim - passavam, o povo gritava “bota água no fogo para pelar o frango”. Havia uma discriminação muito grande.

O senhor tinha preconceito?

Não. Eu comi muito frango. A gente comia ali nos pés de escada. Tinha um, o frango Zé, naquele tempo ele tinha muito medo para não cair na boca dos meninos. Aí ele me chamou para comer uma macarronada na Leiteria Vitória e disse “Liêdo, vamos falar em inglês”.

E isso era comum?

Antigamente, mulher era um negócio meio difícil. A gente ia para a zona e sobrava. Os frangos eram a saída, Pé de Papo, Gaguinho, Carinhoso. A gente comia nos pés de escada. Antigamente, não se fechavam os pés de escada. Imperatriz, Rua Nova, a gente levava para lá. Eu digo isso em um livro meu.

Seu filho mora perto?

Mora, aqui na cidade. Roman tem umas coisas engraçadas. Minha mulher queria que ele fosse engenheiro. E aqui meu filho era incapaz de estudar. Então ela matriculou Roman na Espanha e voltou toda satisfeita. Aí um dia ele escreveu “Mamãe, deixei de fazer suas merdas e quero fazer as minhas”.

O que o senhor faz no dia a dia? Acorda cedo?

O sono de velho é acordar para mijar a cada hora. Levanto às 5h, 4h, 3h, faço um café, fico deitado, feito cobra de jardim, leio, vou à padaria às vezes, brinco com um, com outro, conto piada.

O senhor ganha dinheiro com os livros?

Sempre me custeei com o trabalho de dentista. Entrei por concurso federal. A banca eram uns caras chatos, com nome estrangeirado, metidos. Na véspera do concurso, fui a uma conferência com Josué de Castro, no Teatro de Santa Isabel. Aí minha mulher: “você é um irresponsável. Amanhã, você vai fazer concurso”. Eu disse: “mas o cavalo quando é bom descansa na véspera da corrida.” Lá em Beberibe, o pessoal gostava muito de mim. Os médicos diziam que eu dava muita liberdade. Porra, uma gente lascada, que chega de madrugada, entra na fila e muitas vezes não encontra vaga.

Como o senhor começou a gostar do mercado?

Quando a gente fica fora do país por muito tempo, fica mais brasileiro. Quando eu estava na Espanha, visitei o Palácio da Alhambra. Ele estava abandonado e foi redescoberto por um norte-americano, Washington Ivg, que escreveu Cuentos de la Alhambra (Contos de Alhambra). Quando cheguei à praça, começaram a me contar histórias. “Pronto, isso é minha Alhambra”. Aí comecei a escrever e anotar. Naquela época da ditadura, eles tinham medo. Eu era do partido comunista, do PCB, e arrecadava dinheiro da classe médica. Mas sou muito covarde. No golpe, fiquei com um medo danado. Não aguento dor física.

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