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quinta-feira, maio 08, 2014

Tipos brasileiros: os sungas-pretas


Depois dos turistas, dos maricas e dos camelôs, a tribo mais em evidência de Copacabana é chegada num ray-ban

Marcos Caetano

É provável que você não esteja familiarizado com o termo, mas certamente já deve ter visto alguns de nós, ali pela praia de Copacabana, jogando vôlei, caminhando ou batendo papo no calçadão. Pense bem, remexa nas prateleiras da memória: quantas vezes você se indignou com a quantidade de vagabundos, dos ociosos que se refestelam nas areias das praias cariocas, enquanto dirige seu carro (ou se inebria, em ônibus cheios, com os odores das axilas alheias) em direção ao trabalho, no centro da cidade? Depois dos turistas, dos maricas do Posto 6 e dos camelôs, nós, os sungas-pretas, somos uma das tribos mais em evidência da fauna praiana.

Estamos sempre por lá, sem camisa, com nossas barrigas acintosas queimadas de sol, meias brancas, tênis brancos – e a fatal sunga preta. Por que preta e não azul-marinho, ou marrom, ninguém sabe. É claro que calções de banho estampados e com cores vulgares sequer seriam cogitados por militares da reserva, funcionários públicos aposentados e pequenos empresários, grupos que compõem o grosso das fileiras sunga-pretenses. Brancos, muito menos: sunga branca é coisa dos boiolas da Farme de Amoaids.

Muitos de nós, ainda que não seja o caso deste humilde capitão-de-corveta reformado, foram homens célebres. O maior de todos, claro, foi o inesquecível general Figueiredo. João Baptista de Oliveira Figueiredo, presidente da República e sunga-preta dos mais ortodoxos. O velho general de cavalaria sempre gostou de ser fotografado com os trajes da nossa seita, em suas caminhadas pela Granja do Torto ou aqui mesmo, no calçadão. Todo domingo, lá estava ele: sem camisa, pança proeminente, meias soquete, tênis brancos e sunga preta. Ah, e óculos ray-ban escuros. Pena não ter ido adiante o movimento para erigir uma estátua de Figueiredo – de sunga preta – no calçadão.

Ainda que o general Figueiredo também gostasse bastante de equitação, a atividade física de um típico sunga-preta não vai além das caminhadas (não cúper, que correr é coisa de frescos) e do voleibol. Voleibol nem é o termo, posto que inventaram um termo desrespeitoso para descrever o nosso esporte favorito. “Vovôlei” – dizem eles, insistindo que o nosso vôlei, jogado em câmera lenta, e com regras algo lenientes no tocante à condução de bola, pertence a uma outra categoria esportiva.

Sempre fui contra convidarmos aqueles garotos para jogar, mesmo nos dias de pagamento de benefícios do INSS, quando nosso grupo fica sobejamente desfalcado. Mas não tem jeito. Numa manhã de quarta-feira, você só encontra na praia, além de nós, jovens desocupados e travestis. Uma rede de sungas-pretas em frente à Galeria Alaska aceita a participação de pederastas nos jogos de vovôlei. Mas estes, ainda que tenham boa impulsão e sejam sempre dispostos, gritam em demasia e, o que é pior, com aquelas vozinhas esganiçadas que dão vontade de arrebentar-lhes as fuças. Na minha rede, continuamos fiéis aos princípios mais arraigados dos sungas-pretas. Alguém consegue imaginar o general Figueiredo jogando com bichas-loucas? Acho que nem mesmo a prática do abominável frescobol – que a cada dia vem sendo mais e mais praticado por homens que eu julgava machos – seria tão questionável quanto essa mescla indecente de gerações e opções sexuais.

Vez por outra, um abelhudo vem questionar por que diabos, nós, maduríssimos senhores de pandulho eloqüente, usamos sungas – e não largos calções, mais recatados e condizentes com a nossa idade e forma física. Apresso-me em esclarecer que não é qualquer velhote que pode usar uma sunga preta. Um autêntico sunga-preta tem a barriga protuberante, sim, porém dura. Duríssima! Velhos de abdômen flácido não praticam exercícios e, portanto, não devem ser considerados sungas-pretas, ainda que as trajem. Além disso, as sungas (que os jubilados paulistas chamam de “maiô”, imaginem só!) ressaltam nossa genitália, que, ao lado do nariz e das orelhas, são as únicas partes do corpo humano que continuam a crescer depois da maturidade. Babás, prostitutas e empregadas domésticas, as três principais espécimes femininas que freqüentam as praias durante a semana, parecem gostar da nossa fatiota.

Por falar em fatiota, alguns sungas-pretas vêm tentando, debalde, impor o uso de bonés como parte do nosso way of life. Questão complexa, que causou celeuma na nossa grei. Um boné branco, ainda que combinasse com tênis e meias, ficaria ridículo. Isso sem falar no risco de passarmos a ser chamados de bonés-brancos, em lugar de sungas-pretas, o que seria embaraçoso. Já um boné preto esquentaria demais as nossas cabeças, esvaziando um de nossos bordões mais repetidos: “Já esquentei muito a cabeça nessa vida, rapaz”.

Pior do que isso, só mesmo um falso sunga-preta, conhecido ali no Posto 4. Um desonesto, que além do próprio – e acanhado – equipamento, acomoda na sunga um tubo de Calminex, com o fito de aumentar-lhe os dotes. Calminex é um bom remédio de cavalo, usado no tratamento de nossas dores e contusões, que são muitas. Mas daí a usar a embalagem do ungüento como recheio de sunga vai uma enorme distância – a distância que separa os velhos dos velhacos, os militares dos paisanos, os machos dos nem-tanto.

Gilvânia era uma mulatona bonita, de uns 40 e tantos anos. Todos os dias, ela desfilava em frente à nossa rede, a caminho do armarinho, onde comprava aviamentos para a patroa. Passei a vida ressaltando os horrores da miscigenação, algo que, sabidamente, é responsável por quase todas as mazelas pátrias, inclusive o apagão aéreo (não é um acaso que o atual comandante da Aeronáutica seja um nissei).

Era-me inconcebível ter relações com alguém de outra raça, mesmo que apenas à guisa de desafogo hormonal. Mas toda vez que aquela estupenda égua castanha cruzava o sinal da avenida Atlântica, eu pensava em deixar de lado todos os pruridos e convicções para viver a mais inconseqüente das aventuras. “Pensa em guerra, capitão, pensa em guerra!” – gritava-me um amigo, para ver se eu esfriava o ímpeto e sossegava o periquito. Há alguns anos, um sunga-preta sequer levaria em conta uma possibilidade de abater a fogosa potranca sobre lençóis Santista. Era possível querer, mas, como poder não podíamos, voltávamos mansamente ao nosso pacato voleizinho. O advento do Viagra, no entanto, reconciliou o querer com o poder, e aí.

Eu bem que lutei. Toda vez que aqueles troncos de pernas passavam por mim, pisando firme como as bailarinas profissionais de flamenco, eu pensava em guerra. Como gosto bastante de guerra, na verdade, passei a pensar naquelas fotos sórdidas do Ministério da Saúde nos pacotes de cigarros. Tudo em vão. Certa manhã de sexta, a brisa que vinha do Arpoador ergueu levemente a saia estampadinha que a Gilvânia usava, deixou entrever suas portentosas ancas – e eu capitulei. Apesar de ser a minha vez de sacar, dei vaga no time para um pivete das redondezas e corri para entabular conversações com a mulataça. Estava disposto a abrir mão de tudo para ficar ao lado dela até o fim da minha vida ou até a quebra do INSS, o que chegasse primeiro.

Estava disposto a tudo. Ou a quase tudo. Após horas de conversa agradável e reveladora, quando tive certeza de que Gilvânia era a balzaca da minha vida – ou do meu final de vida –, arrisquei um convite: “Quando é que podemos ir à praia juntos?”. Ela disse que era só marcar, mas tinha que ser num sábado ou num domingo, pois durante a semana a patroa não dava a menor folga. Pensei um pouco, paguei a água de coco que estávamos bebendo, beijei as mãos da moça, disse adeus e voltei para a minha rede de vôlei. Nunca mais voltaríamos a nos falar. O amor, mesmo no outono da vida, é sumamente importante. Mas as verdades imutáveis precisam ser respeitadas, entre elas esta aqui: um sunga-preta jamais vai à praia nos finais de semana.

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