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segunda-feira, junho 02, 2014

E se não tiver Copa?


Mouzar Benedito (*)

A pergunta que faço aos militantes do movimento “Não vai ter Copa”, e aos não militantes também, é essa: se esse movimento tiver sucesso e não acontecer a Copa do Mundo no Brasil, o que acontecerá? Que resultados teremos?

Compartilho com todo esse pessoal a indignação com o destino de muitos bilhões de reais para um evento efêmero, indo boa parte dessa grana parar nas contas bancárias de empreiteiras mutreteiras, políticos safados, mercantilizadores do esporte e instituições imperiais corruptas e mandonas. E acredito que idealizadores desse movimento sejam contra o capitalismo e odeiem a Fifa e a CBF. Compartilho isso também.

Talvez eu precise tomar conhecimento do “e daí? O que faremos em seguida?”, para poder embarcar nessa campanha também. Mas enquanto não souber o conjunto todo da proposta, prefiro outras vias. Não sei se haverá o que modernamente chamam de “empoderamento” do povo, se será criado um clima para derrubada do capitalismo ou, pelo menos, se haverá uma mudança na política brasileira que ponha fim a um Congresso vendilhão, que só funciona à base do toma-lá-dá-cá.

COPAS PASSADAS NÃO MOVEM MOINHOS?


Antes de voltar a discutir a Copa de 2014, gostaria de lembrar de algumas outras copas que “presenciei” à distância.

Minha primeira Copa foi a de 1958. Tinha 11 anos de idade, estudava na primeira série do curso ginasial e ganhava um dinheirinho vendendo frutas e engraxando sapatos, morando numa cidade do Sul de Minas com cerca de dois mil habitantes na área urbana.

Não tínhamos rádio, assim como a maioria da população. Numa cidade em que o dinheiro circulava pouco, era difícil comprar qualquer coisa industrializada que não fosse de primeira necessidade. Então, fomos todos para a frente do cinema – isso mesmo, naquela época, uma cidade minúscula tinha cinema! – ouvir a final Brasil X Suécia pelo alto-falante instalado ali. Uma multidão vibrava na praça. E a conquista do campeonato foi como uma declaração de poder, de tomada de uma autoestima inédita. Acabava-se o mito de que brasileiro era perdedor por natureza.

Na Copa seguinte, de 1962, a conquista foi como uma reafirmação dessa autoestima.

Em 1970, já morando em São Paulo e estudando na USP, com ideias de esquerda – que preservo e até radicalizo –, no auge da ditadura, havia também uma pedra no meio do caminho: se o Brasil vencesse, a ditadura ia faturar em cima, ganhar mais popularidade. Por isso, corria a proposta de torcer contra o Brasil. Mas durou pouco: assistimos e vibramos no pátio do prédio de Geografia e História, todos os jogos do Brasil. E a ditadura realmente faturou em cima. Enquanto se torturava e matava opositores do regime nos porões da ditadura, ouvia-se direto a música “Pra frente, Brasil”. Mas até os presos políticos, em boa parte, torceram pela seleção, que jogou bem e bonito, mereceu vencer.

Em 1982, na Espanha, a seleção jogava bonito como nunca, mas perdeu. Foi uma tristeza imensa, mas até hoje se reconhece o valor daquele time. Acredito que pelo menos o pessoal um pouco mais velho se lembra dela com mais saudade do que das seleções vencedoras de 1994 e 2002. E a perda serviu para os burocratas do futebol se dedicarem a exigir um abandono do chamado futebol-arte, imitando o futebol-força europeu. Uma pena. Quando o Barcelona se tornou o time que vencia jogando bonito, o técnico disse que estava fazendo com o time simplesmente o que aprendeu vendo o Brasil jogar “antigamente”.

VOLTANDO A 2014


Acredito que se, há seis ou sete anos, houvesse um plebiscito para decidir se o Brasil disputaria o direito de sediar a Copa do Mundo de 2014, o sim venceria fácil. Pouca gente era contra.

Mas se fôssemos informados de todas as condições que a Fifa impôs e o governo brasileiro aceitou, de nos submetermos a essa instituição imperialista como colonizados sem vontade própria, obedientes e subservientes, aí sim, acredito que o “Não vai ter Copa” seria quase unânime.

O Brasil se submeteu. Numa linguagem vulgar, abriu totalmente as pernas. A Fifa manda e desmanda. Para começar, houve a escolha das cidades que sediariam os jogos. A Fifa impôs o que quis. Por que escolher, por exemplo, Natal, que não tinha um estádio à altura, nem tanta torcida, além de ser relativamente perto de duas sedes – Fortaleza e Recife – e deixar de fora Belém, que já tinha um estádio pronto, “padrão Fifa”, na linguagem atual, e além disso tem uma torcida enorme que freqüenta esse estádio para ver jogos do Payssandu e do Remo?

Como torcedor do Internacional, que tem o Saci como mascote, pergunto: por que deixar de lado um estádio pronto, também “padrão Fifa”, recém-construído pelo Grêmio e ter que fazer um estádio novo, do Inter?

Como simpatizante do Corinthians, perguntou: por que deixar de lado o estádio do Morumbi, que se fosse na Europa seria festejado pela Fifa, e fazer um estádio do zero em Itaquera, com o custo de quase um bilhão de reais, fora as obras do entorno?

E o caso do Maracanã? O estádio passou por uma grande reforma para os Jogos Panamericanos, estava quase “zero quilômetro” e a Fifa exigiu que fosse posto abaixo para ser refeito, a um custo de mais de um bilhão e muitos problemas.

A grana tinha que rolar alto, não é? Quanto mais gastos, mais lucros para a Fifa. E para empreiteiras também: é comum aqui ganhar uma concorrência para fazer uma coisa por uma valor e a obra acabar custando muitas vezes mais. Além disso, fazendo de propósito que a obra atrase, encosta-se o poder público na parede: “Se não puser muito mais grana, não vai ficar pronto a tempo”. Claro que os atuais assentados no poder não fizeram nada para mudar isso. E claro também que a “culpa” tem muito a ver com o tão glorificado empresariado, tratado como honesto e não sei que mais pela mídia e por uns babacas que fingem acreditar que existem corruptos sem existirem corruptores.

E a questão “do” mascote (sei que mascote é palavra feminina, mas ninguém fala “a” mascote)?

PERNETA, E DAÍ?


Mesmo sabendo que a Fifa (e a CBF também) encara o esporte como um negócio, simplesmente, propusemos o Saci como mascote da Copa. Já expus várias vezes o motivo. Em síntese, o Saci era um indiozinho guarani, foi transformado em negro e ganhou o gorrinho mágico presente em mitos europeus, então é uma síntese do brasileiro.

Nesses tempos em que se fala tanto em meio ambiente, o Saci tem a vantagem de ser um protetor da floresta.

Nesses tempos em que se fala tanto em combate ao racismo, o Saci tem a vantagem de ser negro. Aliás, maior parte dos jogadores brasileiros, do Pelé aos pernas de pau, é negra.

Nesses tempos em que se fala tanto em aceitar as diferenças, o Saci tem a vantagem de ser perneta. Mas apontam isso como um problema: como chutar bola tendo uma perna só? Brinco: ele tem o apoio do redemoinho.

E mais: mesmo sendo pobre, negro (dois motivos para ser estigmatizado nesta terra que muito teoricamente não tem preconceitos), o Saci é brincalhão e alegre. Quer algo mais brasileiro do que isso?

Escolher o Saci como mascote da Copa seria um recado para o brasileiro olhar para si mesmo, e com certeza não só ele, mas toda a mitologia brasileira seria valorizada, estudada aqui e divulgada fora daqui.

Mas o Saci tem uma qualidade a mais, que para a Fifa e a CBF é um defeito: ele é um personagem pronto. Não seria preciso pagar milhões para uma agência de publicidade… mas também não seria possível cobrar royalties por ele. Qualquer pessoa ou grupo criaria a sua imagem do Saci em camisetas, por exemplo.

Milhares e milhares de pessoas mandaram mensagem para a CBF propondo o Saci como mascote, mas os burocratas comerciantes do futebol não deram nenhuma resposta. Chegamos a pedir que nos explicassem que critérios usariam para escolher o mascote, mas nem deram bola. Nunca falaram sobre isso. É próprio dela e da Fifa. São instituições que se julgam no direito de não precisar dar respostas a ninguém.

Enfim, escolheram o que queriam, mas só depois de patentear os possíveis nomes que o coitado do tatu-bola teria. Muitos bobalhões votaram pela internet, como se estivessem decidindo alguma coisa, para ele ter o fuleiro nome de Fuleco.

Se o Saci não podia ser escolhido por ter uma só perna, o coitado do tatu-bola entra numa situação pior: bola é para ser chutada, não para chutar. E tem esse nome infeliz. Fuleco!

O certo é que acredito que se o Saci fosse mascote, milhões e milhões de brasileiros (além de estrangeiros também) estariam usando camisetas com algum desenho dele com a bola no pé, na cabeça ou no redemoinho. Alguém viu por aí uma camiseta com o Fuleco?

Ah, falam que a escolha do tatu-bola, um animal em extinção, ajudaria as instituições que o pesquisam e tentam fazer que sobreviva, receberiam muito apoio. Uma boa causa, enfim. Mas aconteceu? Vi recentemente nos jornais que a instituição que propôs a escolha do tatu-bola não recebeu um centavo.

SEM COPA?


Volto agora à possibilidade de não ter Copa.

Nem ponho em questão coisas do tipo “como ficará a imagem do Brasil no exterior”. Será que o capital, as empreiteiras, a Fifa e os corruptos em geral seriam atingidos de alguma forma? Será que alguém acredita que o dinheiro gasto (desperdiçado, na maioria) voltará automaticamente e será usado para construção de casas populares e melhoria dos sistemas de educação e de saúde? Será que os corruptos e corruptores serão identificados e punidos? Será que caminharemos para um sistema econômico mais democrático?

Acredito que o movimento “Não vai ter Copa”, seja mais para “Vai ter Copa, mas com protestos”. Impedir totalmente a sua realização, agora que já houve a gastança toda, me parece que significa perder mais ainda.

Então, pelo menos provisoriamente, minha ideia é que a Copa não só aconteça como seja muito legal, e que a seleção brasileira jogue bem e bonito, e ganhe sempre.

Isso não implica em apoio à Fifa, à CBF, aos que se locupletam superfaturando obras, aos oportunistas nem nada. Que o movimento continue e cobre tudo isso.

Se houver um movimento pós-Copa para que se realize o que ele propõe hoje e vá até muito além, estou dentro, sem perdoar quem quer que seja. Que o Brasil tenha e seja tudo o que querem os ativistas do “Não vai ter Copa”.

Mas não contem comigo para “protestar” depredando pequenos comércios, como bancas de jornais (isso é contra o capitalismo?) e provocações inúteis. Vamos direto ao ponto, contra os que mantêm o sistema econômico e político atual, as injustiças em geral. Contra eles, “tamos aí”.

E não contem comigo, também, para participar de movimentos com nome em inglês. Black, red, seja que cor for, é coisa deles e imitar gringo me parece que é voltar à estaca zero, ao tempo em que ser brasileiro era ser sinônimo de perdedor por natureza. Não que os movimentos gringos sejam em princípio ruins, mas são deles, e pronto. Nos tempos da ditadura e da Guerra Fria, o então ministro Juracy Magalhães disse uma frase que ficou célebre como postura submissa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Isso me causa ojeriza até hoje.

SONHANDO UM POUCO


O “Não vai ter Copa” poderia ir um pouco além e conquistar algumas coisas relativas ao próprio esporte.

Um exemplo: é difícil torcer pelo Brasil sem termos jogadores atuando aqui. Foi-se o tempo em que nos identificávamos com os atletas do Santos (Pelé, hoje estaria nesse time?), do Corinthians (viva Sócrates!), do Botafogo (nossa: nele jogaram ao mesmo tempo, Nilton Santos, Garrincha e Didi, depois teve o Gerson), do Flamengo (com Zico e muitos outros), do Cruzeiro (que timaço, com Tostão, Dirceu Lopes e Joãozinho!), do Internacional (time de Falcão)… Agora, para gostar de um jogador é preciso assistir a jogos do Barcelona, do Real Madrid, do Manchester, do Milan e até times da Ucrânia. Não tem graça.

A mercantilização do esporte manda todos os que se destacam para a Europa, então o futebol daqui fica cada vez mais pobre, embora também mercantilizado. E isso não acontece só com o Brasil. Basta dar uma olhada nas escalações de várias seleções para ver que poucos atuam em seus países. Não seria o caso de chamar só jogadores que atuam dentro do país?

Certo, o jogador tem o direito de ir pra Europa ganhar dinheiro, mas teria como opção ganhar aquela grana toda ou ter a possibilidade de jogar na seleção. Podem dizer que nossa seleção ficaria muito mais fraca. E daí? Perder por perder, melhor perder decentemente. Duvido que se na Copa da África do Sul teríamos uma campanha pior do que a seleção do Dunga.

E tem essa coisa de ganhar uma grana exagerada. Fico pensando: como pode um jogador de futebol ganhar num mês o que um trabalhador comum às vezes não ganha na vida inteira? Em alguns casos, o cara ganha num jogo mais do que um proleta em toda a vida. É justo? Poderão dizer: não, não é, mas a coisa funciona assim. Ora, se queremos mudar tudo, com o povo conquistando o poder e fazendo o que lhe é útil, essas coisas estariam na nossa pauta também, não? Assim como apresentadores de televisão que ganham milhões por mês. Vamos radicalizar: concessões de rádio e TV a grupos capitalistas e políticos, privilégios em geral, reforma (preferiria dizer “revolução”) política, lucros de empresas… Gostaria de ter Copa e mudar tudo isso. Inclusive tomar da Fifa tudo o que ela está nos tirando e, se possível, acabar com ela.

(*) Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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