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quinta-feira, agosto 07, 2014

Arnaldo Baptista diz que tem tudo o que sonhava e nunca voltará ao Mutantes


Leonardo Rodrigues

Em seu mundo onírico, psicodélico e espacial, o artista se contorce, desafina, maltrata impiedosamente o piano, perdendo-se em andamentos que escapam de qualquer entendimento formal. E é invariavelmente ovacionado. Sempre. É Arnaldo Baptista. Se o insano salto da janela de um hospital  psiquiátrico em 1981, que lhe fez perder massa encefálica e trouxe graves sequelas, não é tabu, a loucura é muito menos.

No show independente “Sarau o Benedito?”, que no último domingo (3) ocupou o palco do Cine Theatro Brasil de Belo Horizonte, Arnaldo se apresenta acompanhado apenas de um piano de cauda e das pétalas que circundam o suntuoso instrumento. Ao fundo, um telão projeta as formas estranhas e de cores berrantes de suas criações artísticas, que ele mesmo define como “exorealistas” – uma mistura de surrealismo com o prefixo “exo”, que é “o que vem de fora”. Em outras palavras, ETs.

Sob a benção de “Dionísio”, o Deus grego dos excessos e da loucura, o recital/sarau não obedece a critérios lógicos. Arnaldo não tem setlist. Segue apenas as coordenadas de seu fluxo de (in)consciência, que conjuga, em forma de pequenas vinhetas, obras de Os Mutantes (como “Balada do Louco”, “Ando Meio Desligado” e “Desculpe, Babe”), a carreira solo (“Cê Tá Pensando Que Eu Sou Lóki?”, “Jesus, Came Back To Earth”) e versões diversas (“Rocket Man”, de Elton John, “Blowin’ In The Wind”, de Bob Dylan, e “Hit The Road Jack”, de Ray Charles).

Essa mesma insanidade, que ganhou asas de Ícaro nos tempos de LSD, é uma das vias de seu novo trabalho, o ecológico “Esphera”. O álbum deve chegar às lojas após sua segunda exposição de arte na galeria Emma Thomas, em São Paulo, prevista para 20 de novembro. Além do primeiro disco em dez anos, é também sua nova epifania, ele diz. Reverenciado pelo mundo, após mais de quatro décadas, Arnaldo Baptista, enfim, encontrou seu rock and roll.

Quando não está em seu sítio em Juiz de Fora, Arnaldo está em seu apartamento, em um edifício de cinco andares na zona centro-sul de Belo Horizonte. E é neste espaço, arejado e de salas e janelas amplas, que o músico de 66 anos – completados em julho – consegue encontrar a paz para pintar e escrever. E é também onde se prepara para iniciar as comemorações de 40 anos de seu primeiro álbum solo, “Lóki?”, que moldou a identidade artística que mantém até hoje. Bem distante do rebuscado rock progressivo que os Mutantes praticavam na época, sob a batuta de seu irmão Sérgio Dias. Um som mais básico, mais de piano, “mais lóki, bicho”.


Arnaldo Baptista durante o show “Sarau o Benedito?” no Cine Theatro Brasil, em Belo Horizonte

Leonardo Rodrigues – Como está sua rotina aos 66 anos? Você ainda toma energético e dorme pouco?
Arnaldo Baptista – Eu nunca fui uma pessoa amiga do “dormir demais”. Sempre tive insônia. Eu estou legal agora. Não dá mais para correr mais 200 km. Não pode, né? A velhice vem. Então, não tem jeito. Interessante é que agora estou com 66, e eu tinha 33 quando eu quase morri. Já vivi a segunda metade [risos].

Você praticou meditação durante um tempo. Continua?
De certa forma, fiz, sim. Tipo yoga. Mas hoje eu faço pouco, só para relaxamento mesmo. Eu acho um pouco monótono, no sentido de ter um objetivo. Prefiro fazer algo mais físico.

E seu trabalho com as artes plásticas? Como será sua próxima exposição?
Eu já compus mais de cem músicas, estava vendo outro dia pelo que recebo. Mas, na pintura, não chego perto disso. Na música sou mais calejado. Nas artes plásticas não tenho tanta experiência. Então vamos ver até onde eu alcanço, porque não conheço tão bem artes plásticas quanto conheço música. Conheço Degas, Salvador Dalí, mas não é uma coisa tão profunda quando a música. Então eu vou tentar experimentar minha fase de estilos.

Quais são suas influências nas artes?
Eu não tenho inspirações. Às vezes vejo uma tela em branco e eu não tenho ideia do que vai sair. Mas, às vezes, durante o dia, eu vejo uma menina linda e tento retratá-la. Eu vejo um automóvel com motor de Corvette, um jipe, e a motivação vai nesse sentido, também na criação. Tem uma semana que pinto três ou quatro quadros. E, às vezes, passo um mês sem pintar. É difícil me programar cronologicamente.

Seus pais tinham formação de música clássica. O quanto isso te influenciou como músico?
Isso me ajudou muito. Quando eu era criança, tinha um piano lá em casa. Eu não ficava trocando bangue-bangue na rua, brincando de pega-pega. Eu ficava estudando o teclado em casa. E eu fazia um estudo meio de ouvido. Mamãe já tocou em Viena, em grande orquestra, a primeira mulher que compôs piano em orquestra no mundo. Então ela tinha uma técnica maravilhosa, mas ela não conseguia tocar de improviso, tinha que ser escrito. Eu sou diferente dela nesse sentido, mas foi muito importante para a minha criação. Papai já escreveu vários livros, era poeta, cantor. Mamãe também cantava. Então deram uma inspiração para a gente.

Você acha que Os Mutantes inventaram o rock brasileiro?
Acho que pode ser aceito assim. Muita gente falava que colocamos guitarra na música brasileira, mas a guitarra elétrica do Les Paul é mais antiga, tem a minha idade. Os Mutantes colocaram o contrabaixo na música, que os Beatles e os Rolling Stones já tinham colocado. O baixo que existia antes era aquele rabecão. Mas o baixo elétrico, que dá aquele som assustador, que deixa todo mundo meio imóvel, pasmo, isso foi a gente que botou. Antes era tudo meio italiano, meio Pepino de Capri. Os Mutantes botaram um lado mais artístico, clássico. E era necessário fazer isso, colocar uma coisa mais brasileira.

Em 2006 você voltou a tocar com Os Mutantes. Hoje, se houvesse o convite, você retornaria?
Não. Mais pelo sentido tecnológico, o que pode ser difícil para o pessoal entender. Eu não gosto mais do meu irmão Sérgio. Eu prefiro o amplificador valvulado ao digital. Uma vez, no aeroporto, ele falou: “Amplificador valvulado é frágil e dificílimo de ligar”. Pensei: “Como ele é burro”. Na época, eu estava naquela de que o silêncio conduz ao absoluto. Então eu não falei nada, mas eu nunca mais vou tocar com ele, porque ele não tem um gosto que harmonize com o meu. Nas guitarras também. Ele escolheu as guitarras piores, a Fender, guitarras que eu não gosto. Prefiro Gibson. Não concordo com ele. Nunca mais toco com ele.

E a Rita Lee?
A Rita é uma coisa que já apaguei da minha vida.

Você se considera um purista do rock?
Não. Nessa turnê dos Mutantes tocamos no teatro Fillmore, em São Francisco. Bob Dylan já tocou lá. E eu cheguei lá e o amplificador também era digital. Então eu não posso dizer que eu sou contra o mundo inteiro, né? Tenho a ousadia de achar que a válvula no amplificador é o absoluto obsoleto, que ninguém usa mais. Como é difícil explicar a diferença que existe entre o som da válvula e o digital, estou pensando em criar o “Clube dos Possuidores dos Amplificadores Valvulados” [risos]. Ia ser mais fácil para aceitarem os valvulados.

Qual é a principal diferença do valvulado?
É muito mais fiel porque apresenta a definição dos graves. No digital fica confuso, não tem a precisão do tom que se está fazendo. E, além disso, a distorção do valvulado fica uma distorção bonita. Os transistors que distorcem o digital são muito quebrados, parece vidro. Já na válvula é gostoso. Não fica mudando na mão do cara que comanda o mixer e controla o som do show.

Você é contra CD e MP3 também?
Não sou contra o digital. Eu uso gravador digital. Sou contra só o amplificador digital. O CD foi, para mim, uma maravilha. Todo mundo conheceu nosso trabalho, ficou como parte da cultura. A gente assimilou isso num sentido mundial.

O que você escuta em casa?
Escuto um pouco de Elton John, que eu gosto muito. Um pouco de Jethro Tull, Pink Floyd, Yes. É o que ouço. De música clássica gosto muito de Liszt, da Rapsódia húngara, que é muito bonita. Eu ouço pouca coisa clássica.

Falando de Yes e Jethro Tull, muitos criticam a fase final dos Mutantes, quando a banda enveredou para o rock progressivo. Você se arrepende dessa mudança de estilo?
Ótima pergunta. Estava falando de equipamentos, coisas tecnológicas, válvula. Eu amo o Yes, mas não tanto. E o nosso baixista, o Liminha, comprou um contrabaixo igual ao do Yes, um Rickenbacker. Eu não gosto, é muito agudo. Prefiro o Gibson do West, Bruce and Laing, que eu ouço bastante. E o Sérgio comprava guitarra Fender, que também não gosto. Então, nesse sentido, eu me arrependo de a gente ter entrado em uma coisa tão difícil, que afastou a Rita. Se fosse um lado difícil mas que eu concordasse, seria bom. Mas ficou tudo mais ou menos. Por isso que eu enveredei para o “Lóki?”.

Os Mutantes teriam resistido se vocês não tivessem mudado o estilo?
É muito difícil. Com o Sérgio presente, eu prefiro evitar de falar. Pode-se dizer que eu sou um “one man band”, toco todos os instrumentos, contrabaixo, bateria, guitarra, teclado e voz. O Sérgio, meu irmão, não foi humilde o suficiente para deixar eu tocar bateria nessa tour progressiva dos Mutantes. Nem guitarra, nem contrabaixo. Ele botou para mim um dos três teclados lá no fundo. Então foi uma decepção.



Capa do disco “Lóki?” (1974), de Arnaldo Baptista

O show em Belo Horizonte marca o início das celebrações dos 40 anos do “Lóki?”. Por que escolheu a capital mineira?
Eu tenho a impressão de que o Brasil é cheio de altos e baixos quanto à cultura. Por exemplo, o carioca foi colonizado pelos portugueses. O Nordeste é holandês. São Paulo tem bastante italiano. E agora, em BH, eu tenho a impressão de que é um lado central do Brasil, onde todas as culturas se condensam em uma coisa só. Devia se chamar “Brasília”. Tem esso lado. Eu gosto.

E como será seu novo álbum, “Esphera”?
Estou trabalhando nele. A vida artística é cheia de altos e baixos. Num dia o seu gravador não funciona... [risos]. Eu vou adiante. A maior parte das músicas já está gravada. Agora é questão de esperar o lançamento. Eu estou com a esperança de que seja aceitável. “Esphera” é uma coisa que tenho pensado em lançar há muito tempo.

Existe um conceito por trás dele?
Sim. Eu entro no sentido de que eu tento melhorar a vida de todo mundo que está ouvindo, e a minha também. No “Lóki?”, o primeiro, eu levei para o lado de ser mais psicodélico. Atualmente eu estou numas de energia. Eu acho que a humanidade tem um sentido de piromaníaco [risos]. Qualquer coisa que passa energia, acaba queimando, e isso acaba com a atmosfera. Essa história de eletricidade solar, a eólica, com o vento, isso tudo ainda é meio deixado de lado. Então eu estou botando isso adiante. O carro elétrico, com o uso de energia solar, anda de graça. O carro tem que gastar só pneu. Isso, no futuro, vai acontecer.

Musicalmente, o disco cai mais para qual lado? O piano básico de “Lóki?” (1974) ou a tristeza acústica de “Singin' Alone” (1982)?
Ótima pergunta. Nessa coisa de estilo, eu faço questão de não endereçar para nenhum ponto. O “Lóki” não foi para o samba, não foi para o rock. Eu nunca faço só um estilo de música, só caipira, folclórica, rock and roll, mais puro ou psicodélico, como o Pink Floyd. Nessa coisa de estilo eu vario de música para música. Tem o lado caipira, aí eu boto adiante violão, viola, gaita. Se a música tem um lado de jazz, eu passo sintetizador. A diferença do “Lóki?” para o “Esphera” vem muito da parte de equipamentos, que me interesso muito. Para mim, a diferença é enorme, porque agora tenho tudo que sonhava ter na vida. Contrabaixo Gibson, guitarra Gibson, bateria Ludwig, órgão Hammond. Estou mais completo para alcançar o que tenho a fazer com a música. Será uma coisa interessante.

Você já disse em certos momentos que seu trabalho é “exorealista”. O que isso quer dizer exatamente?
Existem muitos estilos. Surrealismo, impressionismo, essas coisas. Eu tive a ousadia de falar que o meu estilo não é surrealista, é “exorealista”. No sentido em que “exo” tem a ver com esoterismo. “Exo”, em latim, quer dizer “para fora”. Então, de certa forma, eu adoro o que vem de fora. Por exemplo, nas artes plásticas, “exorealismo” vai ser um lado onde eu tento pintar o que seriam os ETs. Imagine, e desculpe o termo, a vagina de uma ET [risos]. Do lado surrealista eu vou tentando botar algo mais aceitável, de acordo com a respiração, se tem asa, se tem seis dedos, e essas coisas todas.

Você já afirmou que gravar o “Lóki?” foi um processo dificultoso. De que forma?
Tenho a impressão de que foi para me separar da imagem dos Mutantes, porque o “Lóki?” foi gravado com o baterista e o baixista dos Mutantes, o Liminha. Ele falou: “Tem que gravar de novo, está muito Sérgio Mendes”. Eu falei: “Não tem nada que fazer de novo. Fica o que saiu agora, com espontaneidade. A gente improvisou”. E foi o que saiu. Eu fui para um lado de aceitar o que estava gravado.

“Lóki?” e “Singin' Alone” são considerados seus dois grandes trabalhos solo. Qual deles você prefere?
Prefiro o “Singin' Alone”. No “Lóki?” eu não fiz todos os instrumentos, só na última música, com o violão. No “Singin' Alone” eu já toco tudo, desde bateria, contrabaixo, guitarra, teclado, voz. Então, para mim, foi como ter uma experiência, um teste, para ver se eu era capaz daquilo ou não. Foi mais importante para mim.

Sua música mais conhecida ainda é “Balada do Louco”. O quanto a loucura ainda faz parte da sua vida?
Acho que o louco pode ser colocado da seguinte forma: o cérebro humano é igual a uma máquina, talvez seja o melhor computador que exista. No motor de carro, quando você coloca STP [marca de lubrificante], ele funciona mais bonito, flui melhor, com maior energia e mais potência. No cérebro humano também acontece isso, no sentido de liquidez, fluidez, espontaneidade. É a verdade, profundamente.

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