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domingo, agosto 10, 2014

Ele passou a mão na bunda da Caetana


José Ribamar Bessa Freire (10/08/2014 – Diário do Amazonas)

 Quando eu morrer / Não quero choro nem vela... / Não quero flores / Nem coroa com espinho / Só quero choro de flauta / Violão e cavaquinho. (Noel Rosa)

Lá no sertão da Paraíba, a morte é do sexo feminino e se chama Caetana, escreveu Ariano Suassuna:

– Aliás, o único jeito de eu aceitar essa maldita é se ela vier como uma mulher bonita e carinhosa.

Ela veio. Recentemente. Levou o próprio Ariano e outras pessoas, tudo gente fina, algumas de projeção nacional como Rubem Alves e João Ubaldo, outras amadas intensamente, embora em âmbito mais restrito, como o sábio tukano Manoel Moura e o engenheiro amazonense José Geraldo, que não resistiu e passou a mão na bunda dela, desmoralizando-a como fazem os mexicanos com La Catrina.

Foi assim: o nosso herói José Geraldo Bessa (1953-2014), conhecido como Djewry Power, nascido no Bairro de São Jorge, em Manaus, depois de quarenta dias num hospital, foi cremado no Parque da Colina, em Niterói, nesta quinta-feira, 7 de agosto, numa  festa do arromba. Teve tudo: música  profana, como Meu carro é vermelho do Tremendão, no lugar do Requiem de Mozart e até o hino do Botafogo. Só faltou mesmo a mulata do Noel Rosa sapateando no caixão, mas a ausência foi justificada no convite à cerimônia fúnebre feito por um dos filhos, Rodrigo, que é músico:

– Aos amigos, peço que levem seus instrumentos, eu levo meu violão. Aos parentes, aviso que vou fazer o velório do jeito como ele pediu: uma festa com alegria, sem tristeza, fora do padrão, do jeitinho dele e também um pouco do meu. Infelizmente não consegui a bateria da escola de samba, como ele queria, mas acho que também eu não teria coragem, como ele certamente teria, de causar essa polêmica.

O anti-herói


Quem é, afinal, esse Djewry Power, que nunca usou espelho pra se pentear e foi capaz de organizar o seu próprio velório com uma festa que deixaria os mexicanos mortos de inveja? Teve choro - é verdade - que ninguém é de ferro, mas também muito riso, porque de vez em quando alguém lembrava histórias do nosso herói, que morreu como viveu: rindo de si mesmo e do mundo. Embora tenha escolhido uma vida curta e gloriosa como os heróis gregos, na verdade foi um anti-herói; conseguiu ser aquilo que muita gente quer ser e não pode.

Ser anti-herói não é para qualquer um. Tem que ter muito borogodó, muito carisma ou nascer de novo para ser o reverso de uma vida prosaica e ordeira, enquadrada no establishment. Ele era um palhaço transgressor, embriagado da poesia que levava para o picadeiro. Nas festas familiares, o espetáculo era ele. Quando chegava, tornava-se o centro das atenções. Não tinha pra mais ninguém. Era logo cercado pela sobrinhada, que se divertia com suas traquinagens, loucuras, sacanagens e seus palavrões que fluíam com tanta pureza e espontaneidade. São muitas as histórias.

Há anos, uma sobrinha de Manaus veio a Niterói com o noivo e numa festa familiar, apresenta-o ao tio que, de cara séria e amarrada, começa a interrogá-lo: quais suas intenções, estudos, bairro, trabalho, de que família era. Quando o rapaz, alarmado com o interrogatório, sem suspeitar da farsa, falou que sua mãe se chamava Raquel, Djewry lembrou de uma colega no curso de inglês, em Manaus, em 1970, que tinha esse nome. O noivo, feliz por estabelecer uma ponte, confirma que a mãe havia efetivamente estudado inglês nessa época.

– No ICBEU? Raquel ou Rachel? – perguntou Djwerry.

– É, no ICBEU. Rachel.

– Então – disse Djewry carrancudo – só tem casamento depois de um exame de DNA. Você pode ser meu filho. I fucked several times a senhora sua mãe – jurou num padrão que Alexandre Nero usa agora na novela Império.

Uma de suas diversões era aterrorizar os namorados das sobrinhas, que antes de apresentados eram advertidos sobre o humor do tio. Ainda assim, o bicho pegava. Uma delas, namoradeira, ouviu-o dizer a um ficante:

– Como é mesmo teu nome? Sicrano, Beltrano, Fulano ou Herculano?

Quando o tal do Herculano ia abrir a boca, Djewry dispensou o rapaz:

– Phoda-se, bicho. Não precisa dizer. Amanhã vai ser outro namorado e não vou perder meu tempo decorando teu nome.

No universo familiar, ele desempenhou a função de coesão, cingindo a tessitura dos laços afetivos, fazendo sempre o contraponto de negar o instituído, provocando os arrogantes e audaciosos e defendendo quem estava por baixo. Era sempre "do contra", mas com sentido.

Sobrinhos do Capitão


O velório não surpreendeu seus amigos de Manaus, que lembram as cumplicidades na molecagem. O Tracajá – esse era seu apelido no bairro – aprontou muitas em parceria com o hoje historiador Geraldo Sá Peixoto. Na Escola Técnica Federal do Amazonas, onde era conhecido como Catatau, ele e Simão Pessoa, ex-poeteiro e cronista, em plena ditadura, infernizaram a vida do professor de educação moral e cívica, editando um jornal anarquista que pregava o amor livre e denunciava a virgindade como uma doença, conforme o próprio Simão conta no seu blog. (leia aqui)

Com problemas vasculares e uma pancreatite, foi internado na unidade semi-intensiva do Hospital São José, em Botafogo, onde fui visitá-lo duas semanas antes de sua morte. Quando entramos, ele já entubado, disse ao enfermeiro, apontando a cunhada viúva que nos acompanhava:

– Essa daí é a “outra”, que te falei. É meu caso.

Quando deu entrada no hospital, a atendente, uma morena bonita que preencheu a ficha perguntou: – estado civil? A família só verificou a resposta que ele deu na hora de fazer os trâmites para a cremação. Lá estava: solteiro. De pura gozação. Era casado e muito bem casado com Tânia Maria Andrade, numa relação amorosa duradoura, com quem teve três filhos – Rodrigo, Daniel e Geraldo Jr. e dois netos – Lara e Rodriguinho. Foi pai e avô como foi tio: divertido e carinhoso.

Quando nos via juntos, Tânia exclamava numa fingida queixa:

– Ai, meu Deus, livrai-nos dos sobrinhos do capitão!

Os sobrinhos do capitão eram dois irmãos gêmeos – Hans e Fritz – cujas histórias apareciam num gibi dos anos 1950-60, e que serviram de inspiração ao cartunista Angeli, criador da tira “Os Skrotinhos”. Eles infernizavam a vida dos adultos, entre eles o Capitão – um marinheiro aposentado gordo e de barba negra e o Coronel – um bedel que perseguia os alunos que matavam aulas. Os dois meninos viviam em luta permanente contra a autoridade escolar e administrativa e contra todo tipo de poder.  


Os dois Skrotinhos armavam juntos, em cumplicidade. Não era o caso aqui. Na verdade, o Hans de Niterói era apenas macaca de auditório do Fritz, a quem aplaudia e festejava as bravatas, marcadas pelo humor e a irreverência, que desconstrói o sagrado e questiona o estabelecido. O êxito dele no picadeiro era esse, essa era sua forma transitiva de amar. Adorava os aplausos. Vai fazer muita falta, mas será sempre o objeto de nossas memórias e a gente vai rir à bessa, lembrando de suas histórias que serão editadas em livro. Cada risada será a eterna presença dele nas cumplicidades que nos mantém ligados por algum DNA.

Fritz se foi e numa última gozação com a Caetana fez um selfie todo entubado. O circo ficou sem o seu palhaço. Hans virou um avião sem asa, fogueira sem brasa, queijo sem goiabada, Buchecha sem Claudinho. Hans precisa acreditar na alisada de bunda da Caetana para matar essa vontade danada de chorar de saudades.

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