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sexta-feira, maio 29, 2015

A difícil arte de não escrever



Ivan Lessa

Além de ter completado seis anos, cultivava eu, na São Paulo de 1941, o costume de fazer com que meu pai me levasse ao cinema pelo menos duas vezes por semana. Entrávamos no Santa Helena, saíamos, entrávamos no Cinemundi. Depois, finzinho de tarde, encaminhávamos-nos para o Franciscano, na Libero Badaró, para um chopinho (ele) e um frapê de coco (eu).

Enquanto eu explicava a meu progenitor as óbvias diferenças entre seriado da Columbia e da RKO (montagem, jogo de contrastes, fluxo da narrativa), íamos, distraídos, evitando pisar nos cadáveres dos estudantes mortos a bala pelo ditador de então, Obdúlio Vargas, se não me engano.

Seguindo pela Rua Direita, fugíamos ao assédio dos mendigos e retirantes nordestinos distribuindo socos e pontapés. Na Praça do Patriarca, fazíamos vista grossa aos carcamanos vendendo drogas e ouvidos de mercador aos turquinhos oferecendo suas mães, filhas e irmãs (“Fazem barba, cabelo e bigode, zim zenhor!”) em troca de alguns cobres. Não era incomum darmos com um preto fujão, em geral crítico literário, tentando escapar do tronco e das habituais 25 chibatadas. (A fina garoa da paulicéia desvairada de então molha-me a fronte enquanto rabisco, em Londres, estas lembranças de um tempo para sempre perdido.)

Estávamos sentados na mesa com Mário de Andrade, Francisco Mignone e uma senhora gorda cujo nome, no momento, não me ocorre. Estou vendo diante de mim a carona alegre e simpática de Mimi Sustenido, apelido dado por Otto Lara Rezende ao inesquecível musicólogo e beletrista precocemente desaparecido.

O papo girava em torno de músicas, ou gêneros musicais, com nomes terrivelmente assustadores para um menino de minha tenra idade e apurada sensibilidade: tamba-tajá, maguary, escubidu, gury-mirim, japyassu, almeida, prado – sentia-me como o Noah Beery Jr. em A Ilha Misteriosa: cercado por perigosos e barulhentos índios.

Além do mais, nunca me interessei por primitivismos em música. Eu acabara de sair da inevitável fase pela qual todo jovem passa, a do xaroposo Mahler, e, numa concessão ao gosto popular de então, procurava entender certos charts traçados para algumas orquestras norte-americanas tidas na época como “inovadoras”: Boyd Raeburn e Claude Thornhill são dois nomes que me vêm à mente.

Mimi Sustenido (esse Otto tinha e tem cada uma!) me perguntando naquele seu inimitável linguajar – que ouvido tinha! – popular:

– E tu, garboso infante, que almejas ser quando atingires a maturidade física e cronológica? Escritor, como o pai?

Num gesto muito brasileiro, cocei o saco do garçom que passava e respondi com minha poderosa voz de baixo profundo:

– Escrever tudo mundo escreve. Difícil é tomar notas. Pra isso tem que ter talento. Eu vou tomar notas.

Como se ilustrando meu sonho e vocação, tomei da rodela de chope e garatujei algumas palavras só a mim compreensíveis, instamaticando a ocasião. Um manto de silêncio cobriu a mesa. Dava-para se ouvir um Mattarazzo peidando na Avenida Paulista.

Até sua morte, Mário de Andrade inundou-me com longas, ternas e eruditas cartas. Nunca respondi; estava mais ocupado tomando notas. Em março de 1958, vendi tudo para as cinco noivas dos sete irmãos Campos por dois mil e quinhentos guarujás (creio que era esta a moeda corrente no país àquela época); de qualquer forma, as cédulas mostravam índios em conjunção carnal com animais de grande e pequeno porte (um dinheiro que, evidentemente, não podia dar certo; parem com essa história de culpar o FMI).

Com o correr dos anos – mais precisamente o revezamento dos anos; tudo a mesma coisa, uma gentinha feia desembestada pra cima e pra baixo com um pauzinho na mão – anotei adoidado. Tenho, aqui em casa, uns três armários repletos de anotações. Se alguém for pós-estrutura ou desconstruir minha obra ver-se-á em palpos de Osvaldo Aranha, conforme se dizia na ONU. A página em branco jamais me tentou, mas ai! um macinho vazio de Malboro, um canto do Times, um punho de camisa Viyella branca, um guardanapo da Bombay Brasserie!

Eu tinha um gatinho chamado Cetim, alegre e macio, gostava de mim. Nele, numa dessas tardes de outubro em Londres, chatas como um parágrafo de Autran Dourado, tomado de súbita inspiração (vodca, uma pedrinha de gelo, rodela de limão), escrevi as palavras mortais como um hebdomadário satírico-humorístico carioca: “Majestosos, de mãos dadas, íamos do Arpoador ao Posto Seis, eu e – cumá-era-o-nome-dela mesmo? –, pela Rainha Elizabeth, by appointment to Her Majesty the Queen.”

Cetim morreu, mas não tive a coragem de enterrar ou jogar na lata do lixo o bichano com a inspiração. Sim, claro, bastava eu passar a bobageira para outro lugar qualquer. Mas não é assim que se toma notas. Cetim, com minha mensagem, jaz morto e apodrece no armário. Pensando bem, acho que lá também tem uma falecida namorada – Ismênia? Clodovilda? – com um epigrama nas costas. Acho que, nela, empreguei outro método favorito: o da pontinha de cigarro aceso. Não sei, preciso checar.

Aí está, pois: eu tomo notas. Livro é coisa de pobre, de gente que lê Veja; que escreve para publicação brasileira; que foi, é ou vai ser contratada pela Globo. Sou um homem sério, conheço minhas fraquezas. Seria uma questão de tempo eu ceder à tentação e terminar, como um desses infelizes que sequestraram o embaixador do Araguaia (já repararam como a cada semana tem mais), publicado e resenhado. Com sorte, passaria despercebido.

Mas manjo minhas Eumênides, sei de minhas zebras e o mais provável seria um desses ex-laterais-esquerdos do Olaria, que estudaram na Universidade de Buffalo com o Affonso Rommanno de Santanna, acabar me arrasando – pior: louvando! – em palestra sobre Comunicação na sala de conferência de um hotel com um nome deprimente qualquer assim feito Maksoud-Plaza.

Num dia de 1968, peguei a moto de Joyce – silêncio, exílio e Almirante Canning – e me mandei. (1968 foi um grande ano para se deixar qualquer lugar.) Não queria, e não quero, saber mais do Bananão, tal como carinhosamente chamo esse troço em que vocês “vivem”.

A esta altura, o leitor esclarecido, aquele que comprou o livro da Marguerite Yourcenar e acha tchâm (é assim que se diz?) o Marcílio de Souza, terá notado uma ligeira discrepância e perguntado aos botões dourados do blazer cor-de-rosa do Telmo Martinho: “Mas se esse cara diz que não escreve o que é que eu estou fazendo no meio desta matéria?”

A resposta, gentil-leitor esclarecido, é simples: primeiro, você, como todos que o cercam, é um idiota; segundo só estou batendo estas linhas porque me ofereceram uma fortuna em dólares e não em conchas, tatuís, goiabas, marajós, guararapes, canudos, ou seja lá qual for a piada que, no momento, por aí, passa por “moeda corrente”; terceiro, apesar de nunca ter visto um exemplar da esplêndida revista Status, tenho a certeza de que estou sendo publicado ao lado de mulher pelada, artigo sobre aparelho de som e receita de bebida a ser servida em copo longo e com guarda-chuvinha de papel roxo. Só topo nessas condições.

Abri um dos armários. Apanhei o que coube na mão. Decifro e desenchavo com preguiça. Ainda há lauda que não acaba mais a encher. Ô Bananão chato!

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