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sábado, outubro 31, 2015

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (1)


Moacir Andrade é o nome artístico de Moacir Couto de Andrade, filho de Severino Galdino Andrade e Jovina Couto de Andrade, nascido na Santa Casa de Misericórdia, em Manaus, às 10 horas do dia 17 de março de 1927, numa manhã chuvosa em plena época carnavalesca, dia em que se comemorava o aniversário de Santa Gertrudes, sua padroeira.

O professor Temístocles Pinheiro Gadelha foi escolhido como padrinho de Moacir e como madrinha, a professora Clotildes de Araújo Pinheiro, filha única de Fausto Pinheiro, um importante comandante fluvial da Amazon Rivers & Company Limited. Seu batizado foi realizado pelo frei José de Leonissa, capelão da igreja de São Sebastião.

Logo após o seu nascimento, Severino e Jovina, com o filho Mozart, de apenas um ano, e Moacir, com poucos dias de nascido, viajaram para a zona rural de Manacapuru, onde a família de Jovina possuía um vasto terreno. Sem trabalho em Manaus, pois Severino era mestre-de-obras e já há muito as construções estavam completamente paralisadas na cidade pela absoluta falta de dinheiro decorrente do debacle da borracha, ele resolveu tentar a vida no interior como agricultor, pescador e caçador de subsistência.

Severino instalou sua família num terreno de mais de 5 mil metros de frente para o rio Solimões. Ali, o mestre-de-obras construiu sua barraca de palha e paxiúba, onde acomodou sua mulher e os dois filhos. Jovina era professora normalista assim como suas outras irmãs, Maria (“Mariquinha”), Josefa e Camila. Enquanto Severino cuidava da roça, Jovina ensinava as primeiras letras para os caboclinhos da vizinhança. Com cinco anos, Moacir e Mozart já sabiam ler, escrever e contar.

Em 1933, quando Moacir Andrade tinha apenas seis anos de idade, a família resolveu retornar para Manaus a fim de dar uma melhor educação aos filhos. Ao chegarem a Manaus, instalaram-se num hotel de seringueiros no final da Av. Joaquim Nabuco, depois se mudaram para um quarto de estância à Rua Miranda Leão e depois para a Rua dos Andradas, onde os meninos foram matriculados no Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Av. Joaquim Nabuco. Algum tempo depois, se mudaram outra vez para a Rua Ramos Ferreira e, finalmente, foram morar na Rua Dr. Machado nº 115.

Foi nesse tempo que Moacir começou a frequentar a residência de sua madrinha Clotildes de Araújo Pinheiro, localizada na Av. Joaquim Nabuco, nas proximidades da Primeira Igreja Batista de Manaus. Ali, Moacir, incentivado pela sua madrinha, começou a desenhar em papel com lápis da marca alemã Johan Faber nº 6, muito comum naquela época.

Mais tarde, sua mãe o matriculou no Grupo Escolar Ribeiro da Cunha, na Rua Silva Ramos, onde o menino estudou do terceiro ao quinto ano do curso primário. Foi também nesse grupo que Moacir conquistou seu primeiro prêmio como artista plástico, por ter desenhado à mão livre a fachada daquele colégio público, quando cursava o quarto ano primário, em 1937.

Segundo o próprio Moacir Andrade, a grande influência para sua dedicação precoce às artes plásticas veio da profissão de seu pai:

– No final do século 19, aí por volta de 1896, 1897, quando Manaus foi incendiada pela febre das construções residenciais provocada pelo dinheiro fácil oriundo do alto preço da borracha, muitos pedreiros portugueses chegaram à cidade, vindos dos mais distantes recantos de Portugal, para se dedicarem à construção de prédios com as características da art noveau da época, experiência que eles já haviam exercitado nas colônias africanas ultramarinas.

Eles eram exímios construtores de casas com fachadas de uma porta e duas janelas altas, pé direito com cinco metros e porão arejado com gateiras que correspondiam ao número de janelas. Meu pai, apesar de pernambucano, foi um desses profissionais que ajudaram a fazer da capital amazonense a cidade sorriso, com suas casas pintadas de várias tonalidades de cores quentes, forradas em dois níveis com madeira importada, telhados com quatro águas e fachadas encimadas com belíssimos frontões, cheios de desenhos em alto relevo e monogramas com as iniciais dos proprietários e o ano de suas construções.

Todas as ruas do centro da cidade eram cheia dessas construções, que datam de 1898 até 1920, quando a borracha perdeu sua competitividade internacional e o sonho acabou. Dentre os grandes pedreiros que se dedicaram a esse ofício e construíram os mais belos frontões de Manaus estava o português Clara, um sujeito de altura avantajada, vermelho como um pimentão, olhos profundamente azuis, que muitas vezes vi sobre os altos andaimes, esculpindo ou reformando velhos frontões das muitas casas de Manaus, em companhia do meu pai. Lonas enormes cobriam o local de trabalho do Clara, pois todo esse exercício era realizado longe da vista dos curiosos e de outros colegas que desejavam imitá-lo. Clara tinha o cuidado de esconder seu trabalho para não revelar o segredo da criação de tão belas peças, que trouxera consigo de Lisboa, onde aprendeu a profissão.

Meu pai trabalhou muitos anos como ajudante do Clara. Considerando que o português era sem dúvida o mais capacitado e o maior artista nesse ramo da construção civil, meu pai teve a oportunidade de ouro de aprender com esse excelente profissional o segredo de esculpir em cimento e cal aquelas belíssimas obras de arte, das quais são poucas as remanescentes da destruição provocada pelo advento da Zona Franca de Manaus. Meu pai morreu em fevereiro de 1945 e deixou num velho barracão de madeira, no fundo do quintal de nossa residência, dezenas de formas com os mais variados padrões de ornamentos. Muito deles eu cheguei a reconhecer em vários frontões, antes que começasse a derrubada desse singular patrimônio arquitetônico pelos comerciantes que invadiram a cidade, atraídos pelos incentivos da área de livre comércio. No meu livro “Manaus, Ruas, Fachadas e Varandas”, de 1984, eu conto em detalhes essa triste história.


Terminado o curso primário, Moacir Andrade foi matriculado no 1º ano ginasial do Ginásio Amazonense Pedro II, em 1939. Com a notícia da abertura do Liceu Industrial de Manaus, dedicado ao ensino profissionalizante, cuja inauguração oficial de suas novas instalações ocorreria no dia 10 de novembro de 1941, data da implantação do Estado Novo pelo caudilho Getúlio Vargas, seus pais, em comum acordo com seus padrinhos, decidiram interna-lo nesse novo estabelecimento de ensino secundário profissional, tendo em vista que o menino era um exímio desenhista e suas pinturas já despertavam admiração nas autoridades da época.

Para as solenidades de inauguração das novas instalações da escola, o Diretor de Instrução Pública, Dr. Claudiomiro Leite, juntamente com o Diretor do Liceu, Dr. Luiz Paulo Sarmento, resolveram realizar uma mostra de seus desenhos e pinturas, cuja exposição foi carinhosamente organizada pelo então professor de desenho Pojucan Rafael de Souza, seu antigo mestre e amigo.

Assim, a primeira mostra de arte individual de Moacir Andrade, com os desenhos que ele vinha fazendo na residência de sua madrinha desde 1934, acabou se transformando em um evento muito concorrido dentro do programa oficial.

Em fevereiro de 1942, sua mãe internou-o no Liceu Industrial de Manaus, onde ele ficou até 1945, quando concluiu o curso industrial – equivalente ao curso ginasial. Na sequência, Moacir Andrade matriculou-se no Colégio Brasileiro, do professor Pedro Silvestre da Silva, onde concluiu o curso de contabilidade, e depois fez o curso científico no Ginásio Amazonense Pedro II, atual Colégio Estadual do Amazonas.


Dotado de uma memória prodigiosa, Moacir Andrade guarda algumas recordações pitorescas dessa sua época de adolescente.

– Eu fui internado no Liceu Industrial de Manaus para fazer o primeiro ano industrial um mês antes de completar meus 15 anos. Por ser muito tímido, eu acreditava em tudo que os mais velhos me falavam, principalmente se fossem professores, que eu considerava uma classe extremamente importante e impoluta.

Em 1943, em plena guerra mundial, havia dois médicos no liceu que eram muito queridos pelos alunos: o Dr. Djalma da Cunha Batista, tisiólogo de grande capacidade e festejado por toda a sociedade de Manaus, e o Dr. Jorge Abrahim, sendo que ambos eram amigos íntimos do professor Kideniro Teixeira e do antropólogo Nunes Pereira.

Os quatro se reuniam diariamente para discutir assuntos literários e científicos. Kideniro Teixeira era poeta e professor de português do Liceu Industrial de Manaus, que depois passou a chamar-se Escola Técnica de Manaus, depois Escola Técnica Federal do Amazonas, depois Centro Federal de Tecnologia (CEFET), hoje Instituto Federal do Amazonas (IFAM).

Em dezembro daquele ano, época das provas finais do curso, eu estava estudando biologia numa das salas de aula, quando, de repente, entrou na sala o Dr. Djalma Batista, acompanhado de Nunes Pereira e Kideniro Teixeira. O antropólogo aproximou-se de mim e perguntou-me o que eu estava estudando. Respondi-lhe que estava estudando a parte da biologia que diz respeito ao sistema digestivo, que seria minha prova oral. Eu havia feito um resumo e estava decorando o texto para não esquecer nenhuma palavra. Nunes Pereira mandou que eu lesse o resumo para que eles ouvissem. Não me fiz de rogado. Li toda a lição começando pela boca e terminando pelo reto.

Nunes Pereira, que eu conhecia somente de vista, me parecia um homem muito importante e sério, pois só falava com o Dr. Djalma Batista e Kideniro Teixeira, daí eu confiar plenamente em tudo que ele dizia. O antropólogo falou que o que eu estava decorando não correspondia com a verdade, explicando que o sistema digestivo não terminava no reto, mas num esfíncter chamado cu, fato confirmado pelos seus dois acompanhantes. Ele mandou que eu recitasse alto, de novo, mas desta vez dizendo que o sistema digestivo terminava numa abertura ou esfíncter chamado cu. Fiz o que ele me pediu, já que confiava plenamente na palavra de Nunes Pereira, ainda mais contando com a aprovação de outros dois renomados intelectuais.

Alguns dias depois, com a sala cheia de alunos que seriam examinados, fui chamado pela professora que, por sinal, era extremamente moralista e católica fervorosa. A lição estava decorada na ponta da língua. Não demorou muito e fui chamado pela banca examinadora, constituída de três mestres, para falar sobre o assunto. Cheio de vaidade e orgulho besta, comecei a declamar bem alto a lição, começando pela boca até finalmente concluir que o aparelho digestivo terminava em uma abertura vulgarmente denominada de cu. Ao ouvirem essas palavras, meus colegas de classe irromperam em uma estridente gargalhada, a qual logo se seguiu um silêncio tumular. A professora, espumando de ódio, olhou para mim e perguntou:

– Terminou?

– Sim, professora, terminei! – respondi, timidamente.

Ela bateu nervosamente na campainha sobre a mesa, chamando o inspetor de alunos:

– Leve esse boca-suja daqui, imediatamente! – disparou. – E, como castigo, coloque ele sete dias na prisão disciplinar! Também não esqueça de deixar bastante sabão e creolina pra ele lavar a boca...

Eu não sabia onde me esconder, de tão nervoso que fiquei. Tirei zero na prova oral. Como tinha tirado dez com louvor na prova escrita não fui reprovado. A nota mínima para ser aprovado era cinco. Naquela época, a disciplina do colégio era ministrada pelo Exército, que tomava conta principalmente dos alunos internos. O inspetor de alunos era um sargento camarada, mas cônscio de suas responsabilidades militares. Fui trancado numa sala no pavimento superior, entre o teatro e o dormitório, onde tinha um banheiro, uma cama e um armário, além de uma janela que dava para o pátio interno. Só saía dali para as refeições, para assistir as aulas ou para ir à enfermaria por algum problema, mas sempre acompanhado por um soldado.

Quando os autores da minha desgraça souberam o que havia acontecido foram à sala onde eu estava preso, oportunidade em que expliquei o que ocorrera. Na mesma hora, Nunes Pereira foi buscar um dicionário de Cândido Figueiredo e me mostrou que eu estava certo, que a palavra era aquela mesma e que estava devidamente inserida no mais importante dicionário do país. O antropólogo me garantiu ainda que eu devia lutar pelos meus direitos e que deveria mostrar ao diretor a injustiça que estava sofrendo por ter simplesmente citado uma palavra de uso comum e já devidamente dicionarizada.

Nunes Pereira ensinou-me como explicar a situação para o Dr. Paulo Sarmento, que além de diretor do liceu, era presbiteriano, exigente e muito rígido na aplicação disciplinar. Como estávamos em plena ditadura de Getúlio Vargas, argumentou o antropólogo, ficava muito mal para eu ter a minha ficha suja com aquela prisão por indisciplina, principalmente em se tratando de uma instituição federal. O próprio Nunes Pereira escreveu numa folha de papel tudo o que eu devia dizer ao diretor, devidamente decorado, sem esquecer uma vírgula.

Fui à diretoria, acompanhado do inspetor de alunos, pedi licença à secretária e, conforme havia sido instruído, falei ao diretor:

– Senhor Diretor. Por que somente os cabelos, os olhos, os braços, as pernas, o corpo, as mãos – veja as mãos de Eurídice, existe poema mais lindo? – são glorificados em prosa e verso e não o cu, palavra de uso corrente e perfeitamente dicionarizada pelos nossos maiores linguistas? Por que essa discriminação abjeta contra o cu, quando todos nós sabemos de sua extrema importância para o organismo, embora tenha nascido tão escondido e esmagado por duas muralhas da bunda? Por que essa discriminação arbitrária contra o pobre cu, sempre asfixiado, coitado, sob o peso do corpo que sentamos? Por que, senhor Diretor, me diga por quê?...

O diretor, fixando-me com seus olhos intensamente azuis, sem dizer uma palavra, fez um sinal quase imperceptível para o inspetor de alunos se aproximar e me deu 30 dias de prisão...

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (2)


Em 1946, Moacir Andrade começou a trabalhar durante o dia como auxiliar de escritório da firma comercial Ciex S.A., de Isaac Benzecry, que se tornou seu grande amigo e um dos principais incentivadores para que o artista se dedicasse ao paisagismo amazônico, e na parte da noite, dava expediente como revisor do Jornal do Commercio.

Durante uma reunião informal de jornalistas, no Café do Pina, na Praça da Polícia, ele conhece Aristóphano Antony, proprietário do vespertino “A Tarde”. A conversa entre os dois sobre cultura, antropologia e folclore amazônico rendeu a Moacir um convite para colaborar no vespertino.

Seus primeiros textos, indicando uma futura carreira de escritor, historiador e poeta, são publicados em “A Tarde”. Foi também no Café do Pina que Moacir conheceu o lendário jornalista Ubiratan de Lemos, um dos mais talentosos repórteres da revista O Cruzeiro, pertencente ao empresário e jornalista Assis Chateaubriand.

Em 1948, Moacir foi contratado como desenhista de construção civil da empresa Mário Novelli, que construiu o Sanatório Adriano Jorge, no bairro da Cachoeirinha. No mesmo ano, a convite do jornalista Assis Chateaubriand, realiza sua primeira exposição no Rio de Janeiro, no salão de eventos do charmoso Hotel Glória, onde conhece os grandes intelectuais da então capital da República: Austregésilo de Ataíde, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Pascoal Carlos Magno, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector, Guilherme de Almeida, Dinah Silveira de Queiroz, Antônio Olinto, David Nasser, Graciliano Ramos e Leandro Tocantins, entre outros.

O jornalista e escritor Graciliano Ramos é um dos mais empolgados com a exposição e publica o seguinte texto no jornal carioca Correio da Manhã:

Moacir Andrade, pintor, historiador, poeta, investigador, desenhista, é homem de mil atividades culturais, ressaltando-se, e com justa razão, a de pintor, na qual sua contribuição às artes do Brasil é incalculável. A vocação de artista plástico veio-lhe muito cedo, quando ainda era uma criança de apenas seis anos. Aos quatorze anos já demonstrava o seu poder inato de um futuro artista. Mais tarde, muito mais tarde, nos idos de 1941, o pintor já mostrava para os céus as suas poderosas asas de pássaro de grande voos. Caracterizou-o, entretanto, um acendrado amor pela sua terra, pela sua gente e se existe obra que possa ser chamada de brasileira é a dele.

Moacir Andrade não tem somente o amor pelo Brasil, tem também o orgulho e, na defesa de seu nacionalismo, empenha-se em polêmicas que se tornaram famosas. Se seus assuntos são o homem e a terra do Brasil, apanhados do Norte a Sul, a forma com que os explora é também brasileira, pela sintaxe das cores que emprega em seus quadros e pelos modismos que introduz nos pequenos retângulos de sua obras, pois foram seus quadros que lhe deram nomeada nacional e foram, inclusive, mostrados nos salões oficiais deste Brasil. O Brasil do campo, o Brasil dos beiradões dos rios amazônicos e dos pequenos povoados estão presentes em sua obra luminosa, assim como o homem da sociedade, o homem da rua e o caboclo dos igarapés.

Moacir Andrade, como um ambicioso esteta, abarcou em suas telas os aspectos mais variados da nossa sensibilidade e da nossa formação, constituindo sua obra um painel a que nada falta, inclusive o caboclo aculturado que nela tem participação considerável. Moacir Andrade, como expoente máximo da arte brasileira, manifesta-se como um anjo do bem e do mal diluído em cores. Moacir Andrade é o expoente robusto da caboclitude, da expressão estética da nossa inteligência. Nenhum outro pintor tem em mais alto grau a alma brasileira materializada em quadros. Houve e há quem lhe aponte no estilo algo de pomposo e de declamatório com a sua paixão pela natureza, de que sempre se utiliza em suas características e imagens.

Moacir Andrade foi o primeiro artista brasileiro a usar suas tintas à base de seiva de plantas, obtendo, com isso, um resultado surrealista e abstrato. Ele é um virtuoso da paleta, cujos valores consegue explorar na direção que pretende, seja reproduzindo o clima variado da sua região, seja usando o diapasão mater, seja ostentando numerosas outras direções estéticas simbolistas modernas na sua maneira livre de criatividade, em sua composição medida, versátil e hábil, todas essas diretrizes que se observam em sua obra. Hoje, com apenas vinte e um anos, desfrutando os mais altos degraus da fama, Moacir Andrade certamente desfrutará, ainda neste século, o que nenhum artista nacional ou estrangeiro desfrutará nas enciclopédias. Recebe, pois, o meu abraço, Moacir Andrade.


Em 1950, Moacir Andrade se junta ao engenheiro José Florêncio da Cunha Batista e dá início a um escritório de desenhos técnicos e projetos de construção civil, localizado na Rua da Instalação nº 109, onde trabalharia por 20 anos. Simultaneamente, Moacir fez vários concursos para professor conquistando sempre os primeiros lugares. Por conta disso, exerceu o cargo de professor de desenho e educação artística na Escola Normal São Francisco de Assis, do saudoso professor Fueth Paulo Mourão, na Escola Normal Benjamin Constant, no Colégio Estadual do Amazonas, na Escola Técnica Federal do Amazonas, no Colégio Militar de Manaus e na Universidade do Amazonas. Moacir também fez um concurso para Cartógrafo do Ministério da Aeronáutica, obtendo a maior nota da região norte do país.

– Nos meus quadros, eu trabalho com o telurismo, com o regional, com as coisas autóctones, com todo o mistério que caracteriza a Amazônia – diz ele. – Mas não sou um pintor, sou antes de tudo um professor. Ser professor, para mim, é um estado de espírito e de bem-estar social. Pintar, fazer poesias e escrever ensaios antropológicos e memorialísticos foi apenas um desdobramento natural do fato de eu ser professor.

No dia 9 de maio de 1953, Moacir Andrade se casou com a senhora Graciema Britto de Andrade, com quem teve cinco filhos: Gracimoema, Lúcia Regina, Graciema, Maria do Carmo e Moacir Junior. O casal também adotou uma nova filha, Raimunda Santos da Cruz.

No ano seguinte, em companhia de Jorge Tufic, Anthístenes Pinto, Alencar e Silva, Saul Benchimol, Teodoro Botinelli, Farias de Carvalho, Francisco Vasconcelos, Óscar Ramos, Luiz Bacellar e Afrânio de Castro, entre outros, ele participa da fundação do Clube da Madrugada, sob o pé de uma frondosa árvore localizada na Praça da Polícia Militar, que denominaram de “Mulateiro” ou “Banco dos Patos”.

No mesmo ano, sob os auspícios da recém-fundada sociedade cultural, realizou uma exposição de seus quadros nos salões do Ideal Clube, ocasião em que recebeu grande consagração por parte do público que prestigiou o evento, e iniciou sua carreira de escritor com a publicação do livro de poemas “Lauréis”.

Em 1955, a pedido da União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas (UESA), Moacir Andrade inaugura um curso gratuito de desenho e pintura, com ênfase no ensino de desenho geométrico plano, aberto a todo e qualquer aluno filiado à entidade. No mesmo ano, expõe seus novos trabalhos no hall da Biblioteca Pública, localizada na Rua Barroso, esquina com a Av. Sete de Setembro. Em julho, a convite do jornalista Assis Chateaubriand, realiza uma nova exposição no Rio de Janeiro, dessa vez na Galeria Bonino, em Copacabana.

O poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto registrou o evento:

Gostei de ter conhecido, conversado e ter convolado amizade com esse sertanejo nortista da Amazônia, de ter observado com atenção, respeito e admiração, seus quadros construídos com o material mais caro e mais raro nos nossos tempos atribulados de hoje em dia: a imaginação criadora. Moacir Andrade não é igual à maioria de seus colegas pintores que tenho conhecido através desse mundo de Deus, nas minhas viagens como diplomata. Ele é autóctone, singular, único, solitário, no seu mundo artístico das selvas selváticas. Ele não imita, não rouba as ideias alheias. Ele arranca das regiões abissais de suas entranhas toda uma população de fantasmas que habitam o seu mundo interior, agasalhados como tesouros indevassáveis em sua alma de artista genial.

Sim, porque Moacir Andrade é um gênio que materializa em cores, formas e conteúdos toda uma multidão de seres mitológicos que habitam aquela região alagada por muitas águas de que ele é feito. Descendente de nordestino – seu pai, Severino, filho de portugueses, trocou o sertão seco, esturricado, faminto do nordeste, pelo sertão úmido e afogado daquela incomensurável pátria das águas –, ele se manifesta um telúrico, um amazônida impregnado de todas essas cicatrizes ancestrais de portugueses e índios.

Moacir não pode escapar de sua ancestralidade que manifesta não só em seus quadros monumentais, mas na poesia, na maneira de falar, de se comunicar com as pessoas. Homem de cultura superior e jornalista, poeta, conferencista, contador de histórias (o seu humor é inimaginavelmente empático), tem o poder de logo conquistar as pessoas. Basta saber dos convidados que afluíram à sua mostra na Galeria Bonino, em Copacabana, patrocinada pelo patrono da comunicação que é o jornalista Assis Chateaubriand onde compareceram artistas como Manoel Bandeira, Ubiratan de Lemos, Marcos Acyoli, David Nasser, Pascoal Carlos Magno, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Áureo Melo, Rodrigo de Melo Franco de Andrade, Paulina Kaez, além de dezenas de convidados, todos seus amigos e admiradores. Seus quadros, depois dessa mostra, deverão viajar para a Europa onde, certamente, receberão a consagração que bem merecem.

Moacir Andrade ainda faria mais duas exposições, em Manaus, antes de sair para conquistar o resto do Brasil e, de lá, conquistar o mundo: em 1957, nos salões do Ideal Clube, e em 1958, novamente no hall da Biblioteca Pública.

Em 1958, patrocinado pelo empresário Adalberto Vale, Moacir Andrade viaja para Brasília (DF) e mostra seu trabalho nos salões do Brasília Palace Hotel. Entre os ilustres convidados que prestigiaram a exposição estava o presidente Juscelino Kubitschek.

– Belíssimos quadros. O Amazonas é grande até nos seus artistas! – declarou JK.

Foi o primeiro elogio público recebido por Moacir Andrade de uma alta autoridade federal. Talvez por conta desse “empurrãozinho” presidencial, ele vendeu todos os quadros que expunha no mesmo dia.

Ainda patrocinado pelo empresário Adalberto Vale, Moacir Andrade realiza uma nova exposição no Museu de Arte de São Paulo, o famoso MASP, encantando a Pauliceia Desvairada.

– Esse artista amazonense conseguiu atingir a plenitude de uma obra pictórica – assegurou Pietro Maria Bardi, presidente do museu. – Seus quadros são de um colorido equilibrado e bem distribuído. Parabéns ao Dr. Adalberto Vale por ter trazido ao Museu de Arte de São Paulo um artista do quilate de Moacir Andrade.

– A pintura do artista Moacir Andrade tem a marca forte e segura do mestre maduro que já traçou o seu caminho na difícil saga da criatividade – observou o importante crítico Sérgio Milliet. – Ele sabe aplicar com maestria as tonalidades do verde, do azul e do amarelo, da mesma maneira como dispõe as figuras no formidável cenário amazônico, manifestado em cada quadro que compõe a sua magnífica obra, toda ela uma sinfonia de amor e sentimento. Há equilíbrio, harmonia, muita beleza que despertam empatia e muita emoção estética no conjunto, assim como uma grande sensação de movimento e dinamismo em todos os componentes do quadro. Parabenizo o meu velho amigo Pietro Maria Bardi pela oportunidade de mostrar, ao público de São Paulo, este singular artista amazonense e sua excelente obra.

No final de 1959, Moacir Andrade mostra seus novos trabalhos na Galeria Montmarte-Jorge, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

– Quando Ubiratam me disse que Moacir Andrade era um gênio, não duvidei, mas agora vi que seus quadros são realmente lindos – suspirou a cantora Dolores Duran.  – Parabéns!


O ensaísta e jornalista Otto Maria Carpeaux escreveu um pequeno texto para o jornal Correio da Manhã, dando conta da impressão positiva que aquelas obras haviam produzido no seu espírito:

Numa casa à beira de um barranco, deitado sobre o rio Solimões, um menino loiro, magro, olhos rasgados em forma de amêndoas, olhava os imensos cardumes de botos cinzentos que boiavam de instante em instante à superfície das águas barrentas como se dançassem um ritmo qualquer de balé. Talvez, naquele instante de silêncio e observação, um mundo de personagens mitológicos estivesse alicerçando um edifício estético na mente daquela criança magra, que se comprazia em riscar a superfície das praias brancas, que afloravam do rio na baixada de suas águas.

Como um Anchieta caboclo, o menino desenhava horas e horas sobre a areia, um poema mitológico, talvez uma mensagem ancestral psicografada pelo inconsciente, de datas sem cronologia. Ouvia estórias de velhos índios aculturados, seus parentes recuados que lhe transmitiam uma mensagem tão antiga como sua origem. Cada palavra que ouvia registrava em seu subconsciente como uma gravação em fogo. Aquilo era uma linguagem mágica para os ouvidos do pequeno caboclo que dormia e sonhava com mundos inconscientes, imagens fantásticas e indefinidas.

Esse menino, que cresceu alimentado pelas águas e as lendas da grande calha amazônica, jamais pensou que hoje, 33 anos depois, viesse situar-se entre os melhores pintores do Brasil. Seu nome? Moacir Andrade.

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (3)


Em 1960, Moacir Andrade participa do Concurso Probel de Pinturas, no Museu da Arte Moderna (MAM), em São Paulo, e do 1º Salão de Arte Moderna de Manaus. Na sequência, realiza mais duas exposições individuais, uma no hall da Biblioteca Pública, e outra na Escola Técnica Federal de Manaus.

No ano seguinte, Moacir Andrade mostra seu trabalho para os gaúchos, por meio de uma mostra individual na Galeria Casa das Molduras, em Porto Alegre (RS), depois participa do 1º Salão de Artes Plásticas da Universidade Federal do Pará, em Belém (PA), e faz uma nova mostra individual no Rio de Janeiro.

O poeta e compositor Vinícius de Moraes, que marcou presença no evento, publicou suas impressões no jornal O Globo:

Por ser um dos grandes pintores vivos e ter alcançado a glória que apenas alguns artistas só conseguiram após a sua morte, Moacir Andrade não toma conhecimento de sua importância no cenário nacional. Frequentando os bares da cidade em companhia de intelectuais e artistas seus amigos, onde oferece à mesa posta toda a ternura de seu humanismo, escrevendo poemas e rascunhos para futuros quadros, Moacir Andrade se confunde com a simplicidade da gente de Manaus onde nasceu e vive até hoje. Moacir Andrade é desses gênios perdidos e raros como o cometa de Halley, que aparece de tempos em tempos, marcando indelével e universalmente a sua presença luminosa.

Sua obra cheia de grandeza, hipnotismo estético e muita poesia, desperta, cria, sacode, revoluciona, enlouquece, prende e emociona até a estesia. De uma beleza incomparável e uma harmonia e equilíbrio que alcança o mais profundo da sensibilidade, gera a verdadeira empatia e prende o observador provocando ternura, quase paixão pela sua obra.

Seus peixes, suas iaras, suas boiúnas, seus espíritos do fundo, seus caboclos remadores, seus pescadores, suas lavadeiras, são cheios de magia e mistério que se misturam e se galvanizam numa alquimia de cores, de formas e de movimentos, resultando daí um verdadeiro universo de poesia, ambas pertencendo a um só binômio, cuja dimensão se confunde com o horizonte da palavra e do sonho, poderosos instrumentos de comunicação e de amor, recriados cada vez que o artista se propõe a viajar o espaço infinito de sua privilegiada imaginação com toda a carga da sua grandeza espiritual, penetrando o interior do seu universo fabuloso e realizando a sua obra maravilhosa.


Em uma das viagens que fez ao Rio de Janeiro, Moacir Andrade conheceu o jornalista, escritor e diplomata Leandro Tocantins. Nascido em Rio Branco, no então Território Federal do Acre, Leandro Tocantins realizou os estudos elementares na cidade natal e depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito, ingressou no Itamarati e, depois, se transformou em um dos maiores amazonólogos do Brasil. Os dois se tornaram amigos íntimos.

Autor do seminal livro “O Rio comanda a vida”, Leandro Tocantins convidou Moacir Andrade para ser uma espécie de “embaixador cultural itinerante” do país, proferindo palestras e mostras individuais custeadas pelas embaixadas brasileiras.

Na exposição de motivos que enviou ao Ministério de Relações Exteriores, o escritor acreano anotou o seguinte:

Esse gigante de quase dois metros de altura, forte, agitado, falador, brincalhão, gozador, irreverente, é, no entanto, um dos mais importantes artistas plásticos do Brasil. Espírito dinâmico e criativo, vive inventando coisas e promovendo movimentos em favor da preservação do meio ambiente. Ele foi o primeiro brasileiro a levantar a opinião pública contra os devastadores das nossas florestas, desfilando como homem sanduíche pelas principais ruas da capital amazonense, verberando contra os predadores da natureza. Isso aconteceu em 1942, em plena ditadura do presidente Getúlio Vargas. Por isso, quase foi expulso do Liceu Industrial de Manaus, onde estava estudando como aluno interno.

Escritor, antropólogo, jornalista, pesquisador de nossas origens, trabalhador incansável em defesa das crianças abandonadas, Moacir Andrade tornou-se uma lenda na consciência do povo amazonense. Não conheço ninguém que tenha produzido livros e obras de arte das mais variadas, e nem sei de um artista tão profundamente dedicado às coisas mais fundamentais da Amazônia brasileira. Seus livros, não menos importante na sua obra polimorfa, são disputados pelas universidades e colégios secundários, que leem e se abeberam de seu conteúdo indispensável. Como pintor, Moacir Andrade, em suas primeiras manifestações acontecidas na década de 1930, deu-nos uma mostra evidente de beleza e esplendor de sua alma generosa.

Seus traços, já cheios de uma grandeza à flor da pele, falam a todas as consciências das raças. Aquela nostalgia, sempre corrigida por uma constante exaltação às mais belas formas daquela natureza selvática e misteriosa, é um dos traços da inteligência e da sensibilidade desse artista que já nasceu pronto. Seu processo criativo impressiona pela singularidade e limpidez de estilo. Criar termos elogiosos à obra desse gênio não são suficientes para traduzir toda a grandeza de que a natureza o dotou. Outros, com mais autoridade e notoriedade, certamente falaram de Moacir Andrade, da sua majestade, da emoção de sua eloquência no trato com as cores, das suas virtudes públicas e privadas e das suas glórias conquistadas nos salões das exposições, na literatura e na imprensa.

Estudando o evangelista da sensibilidade e o apostolado do artista, há de confundir-se com a história da República, desde quando ela era apenas uma fórmula lógica da liberdade. Como jornalista, Moacir Andrade não foi menor do que nenhum dos colegas que exercitam sua profissão nos jornais de Manaus. Na sua simplicidade de caboclo interiorano, jamais saiu de sua boca uma palavra sequer de elogio próprio ou de sua obra. Escreveu em todos os jornais de Manaus, ao tempo de sua juventude, sendo amplamente lido não só pela sociedade dita letrada, mas pelo proletariado, a quem diz pertencer.

Como todos os verdadeiros gênios, Moacir Andrade trouxe do berço a sua lira fecunda, o seu instrumento maior de criatividade. O tempo não lhe dará senão maior intensidade à emotividade criadora, alargando-lhe a visão interior que produz a ideação das imagens. As suas obras são assim, perfeitas, até à magia do êxtase. Seus quadros são tão perfeitos na linguagem contemporânea que chegam ao absurdo estético. Não há neles nenhum deslize cromático outonal, uma só ofensa às leis do bom gosto. Talhados numa linguagem pura, divina, macia, cantante, vaporosa e verde, de um verde extremamente verde, eles tudo exprimem e retratam magnificamente o universo residente no cerne de seu subconsciente miraculoso, seguindo, com admirável plasticidade e nudez, as curvas caprichosas da inspiração.

Moacir Andrade quer descrever a natureza agreste, brutal, convulsiva, na sua agressividade selvagem dessa cordilheira de pilosidade íngreme e inabitável, como se fossem joias impalpáveis que enfeixadas em livros dariam uma enciclopédia. Moacir Andrade, nome hoje inserido no pódio dos campeões da cultura nacional, é um nome de importância na história moderna da cultura surgida a partir da década de 50, com o aparecimento do chamado Movimento Madrugada que deu aos amazonenses e ao Brasil muitos nomes hoje consagrados.


Em 1964, Moacir viajou para o Rio de Janeiro onde cursou museologia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-graduação em Matemática na mesma universidade. No mesmo ano, realizou exposições individuais na Galeria do Hotel Nacional, em Brasília (DF), na Galeria Belvedere de Sá, em Salvador (BA), e participou da 2ª Feira de Artes Plásticas de Manaus.

No ano seguinte, ele realizou sua primeira exposição individual em Recife (PE). O antropólogo Gilberto Freyre ficou tão empolgado com a exposição que publicou um pequeno texto no Diário de Pernambuco intitulado “Moacir Andrade, pintor do trópico anfíbio”:

Não há escritor que não se ufane de ter, alguma vez, ou mais de uma vez, criado novas expressões para a caracterização da velha realidade. Confesso esta minha vaidade para dizer que uma dessas criações é “trópico anfíbio”.

Com a expressão “trópico anfíbio”, procuro caracterizar principalmente a Amazônia brasileira, sem dúvida, a mais grandiosa expressão dessa espécie do trópico. Espécie de trópico que teve em Euclydes da Cunha o seu apologista máximo em língua literária. São páginas, as suas, sobre a Amazônia, que rivalizam com as que o imortalizaram como intérprete de paisagem e gentes dos sertões.

Pois é esse o trópico a que venho chamando de anfíbio – e do qual a Amazônia brasileira é tão vigorosa expressão – que encontrou em Moacir Andrade quem, como pintor, lhe interpretasse alguns dos significativos encantos de forma e de cor. Interpretação que continua a processar-se, pois a identificação de Moacir Andrade com a sua e nossa Amazônia é das que vão além de tempos cronológicos: necessita de ir a todos os extremos daquilo que os especialistas em classificar tempos chamam “duração”. Não representa uma fase na sua arte, mas a realização contínua de uma vocação quase religiosa.

É como se Moacir tivesse nascido brasileiro e se tornado pintor para cumprir um voto: o de interpretar a Amazônia brasileira como a expressão do trópico anfíbio, como terra, como mata, como verde, como céu, como azul e também como água. Água que vive a confundir-se com a terra.

Um pintor assim de sua região é um pintor como que monogâmico. Fiel a um imenso e exclusivo amor amazônico. Teluricamente amazônico. Brasileiramente amazônico.

De modo que à proporção que a Amazônia se torna, como está se tornando, mais brasileira, Moacir é parte desse processo para o qual vem concorrendo, pois não é só através da ciência, da engenharia, da economia, da política, que se nacionaliza em profundidade uma região ou uma área: também através da arte.

Em 1966, Moacir Andrade ingressou na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Amazonas – onde concluiu o curso de Administração de Empresas em 1970 – e realizou sua primeira exposição individual em Fortaleza (CE). Ele também foi o convidado especial de uma Feira de Cultura Amazônica, em Belém (PA), pela celebração do 350º aniversário da cidade.

Por ocasião do evento, o escritor João Guimarães Rosa escreveu um texto intitulado “Ciclopicamente Moacir”, em que analisa o trabalho do artista plástico:

Moacir Andrade apropriou-se sem piedade de todos os personagens vivos e espirituais que habitam a portentosa Amazônia de muitos mistérios, muitos fantasmas, muitos seres ciclópicos, entes que pululam no vasto cenário verde, que desde o seu nascimento, em 1927, hipnotizaram-no a ponto de pô-lo fora da órbita terrestre. Moacir Andrade não habita entre nós, posto que é um espírito encarnado em mil formas de vida e de ternura, que ele sabe transferir através das cores que, guiado pelos gnomos e devos, seus irmãos, sabe como um gênio que é materializar-se em suas joias que espalha como um ciclope benfazejo em todas as partes do mundo.

Moacir Andrade exorciza, com seu bisturi estético, todo o encanto, todo o cerne divinal que ainda permanece escondido nas profundezas ancestrais da etnia amazônica e esculpe em cores e forma esse panorama feito com todos os retalhos de sua pesquisa incansável. A inconsutibilidade de seus gestos singulares o fizeram esculpir do nada as obras que certamente ficarão eternas, como eterno ficará o seu nome e a beleza de sua personalidade marcante.

Moacir Andrade submete, em disciplinados espaços de arte, galos de tapeçarias, cintilações de mosaicos e magia de presépios, os paroxismos de seu diluviano zoorama, feérico de fauna, peixes leviatãs, dragões, harpias, perlados de fria espuma e de recordações oníricas, a luz de um amarelo a um tempo telúrico e transcendente, apanha assim em terna ronda a vida do grande rio e grava nos olhos de xerimbabos abissais a desmesurada selva, a cósmica, calada essência da Amazônia.

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (4)


Atendendo às recomendações do diplomata Leandro Tocantins, o Ministério de Relações Exteriores solicita que Moacir Andrade fique à disposição do ministério, sem prejuízo de salário ou da contagem de tempo para a aposentadoria de suas outras funções em cargos públicos, e, pelos dez anos seguintes, o artista amazonense se transforma em uma espécie de “embaixador cultural itinerante” do país.

Em 1968, ele viaja aos Estados Unidos e expõe seus trabalhos nas Universidades de Knoxville, Nashville, Union City, Jackson, Memphis e na sala dos representantes de Tennessee, no Congresso Nacional de Washington (DC). No mesmo ano, ele realiza uma exposição em Paris, mostrando 35 telas inspiradas nas lendas amazônicas.

O escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, prêmio Nobel de literatura, ao visitar a mostra de Moacir Andrade na capital dos Estados Unidos, em 1968, escreveu em seu livro de presenças:

– A obra de Moacir Andrade é um gesto largo e eterno de formas e cores, uma poderosa energia injetada nas veias da história da arte universal, presença permanente da Amazônia brasileira. Moacir Andrade é um exemplo vivo de dignidade humana, respeitado por todas as camadas sociais brasileiras, que lhe rendem homenagem pelo seu trabalho e pelo seu comportamento de homem probo, distinguido pelas mais importantes universidades internacionais que lhe outorgam prêmios pelo seu mérito cultural, pelo seu caráter íntegro, que lhe valeu ser venerado como um semideus do universo cultural.

Em 1969, retorna a Washington (DC) para realizar uma mostra individual na galeria do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird). Da capital norte-americana segue para a Europa, onde apresenta seus trabalhos nas embaixadas brasileiras de Lisboa, em Portugal, e de Londres, na Inglaterra. No ano seguinte, apresenta seus trabalhos na embaixada brasileira de Madrid, na Espanha.

Em 1971, expõe seus trabalhos nas embaixadas brasileiras de Quito, no Equador, e de Bruxelas, na Bélgica. Em 1973, faz sua segunda mostra individual na embaixada brasileira de Lisboa, em Portugal. Em 1974, expõe seus trabalhos na sede da Fundação Japonesa de Cultura, em Tóquio, no Japão. A mostra é exibida nas cidades de Osaka, Nara e Hiroshima. No mesmo ano, ele expõe seus quadros na Galeria Orozco, na Cidade do México, no México.

Em 1975, Moacir Andrade está de volta aos Estados Unidos para fazer uma nova exposição itinerante de seus quadros e uma série de palestras sobre a Amazônia, nos estados de Tennessee e Arkansas. Entre os locais dos eventos, o TTU Campus of Cookville, The Botanic Hall of Nashville, Cheekwood Fine Arts Center, Luzo-Brasilian Club, Harpeth High School, Art House Vanderbilt University, Learning Disabilities Center, Latin American Center, Fine Arts Center, Carriage Trade Inn., Jewish Community Center, Holiday Inn. e as universidades de Cookville, Knoxville, Blytheville, Nashville, Chattanooga e Osceola. A pedido da embaixada brasileira, a exposição é mostrada no Instituto Cultural Brasileiro, em Washington.

Em 1978, ele publica seu primeiro livro, o hoje clássico “Alguns Aspectos da Antropologia Cultural do Amazonas”, onde resgata as principais manifestações da cultura popular do estado, incluindo a brincadeira do boi-bumbá, as quadrilhas caipiras, os cordões de pássaros e o bailado das tribos indígenas.

Durante os dez anos seguintes, Moacir Andrade se transforma realmente em um autêntico regatão da cultura amazônica, realizando exposições e conferências pelos quatro cantos do mundo: Lisboa, Madrid, Barcelona, Copenhague, Estocolmo, Amsterdam, Rotterdam, Berna, Bruxelas, Paris, Roma, Milão, Mônaco, Viena, Lunz am See, Graz, Salzsburgo, Oslo, Berlim, Atenas, Moscou, Budapeste, Kiev, Bucareste, Anatólia, Dublin, Glasgow e Londres são as primeiras cidades europeias contempladas.

Na Austrália, ele expõe em Adelaide, Sydney, Brisbane e Melbourne. Na Ásia, em Pequim, Tóquio, Osaka, Nagasaki e Hiroshima. Nas Américas, em Nova York, Washington, Los Angeles, Nashville, Montreal, Ontário, Quebec, Cidade do México, Guadalajara, La Paz, Caracas, Porto Príncipe, Lima, Paramaribo e Bogotá. No Oriente Médio, em Tel Aviv, Jerusalém, Beirute, Damasco, Teerã e Bagdá. Na África, em Luanda, Argel e Maputo. Todas as exposições são acompanhadas de conferências sobre a Amazônia brasileira.

Nesse meio tempo, Moacir Andrade começa a publicar seus novos livros: “Amazônia, a esfinge do terceiro milênio” (1981), “Manaus, monumentos, hábitos e costumes” (1982) e “Tipos e utilidades dos veículos de transportes fluviais do Amazonas” (1983).


Em outubro de 1985, o jornal A Crítica reproduz a tradução literal de um texto de Joe Levi Milles, considerado um dos maiores críticos de arte norte-americanos, publicado originalmente no The Village Voice:

A sua figura singular, alto, cabeça coberta por uma vasta cabelereira, testa larga, com rosto marcado por um fino bigode à moda mongol, com um permanente sorriso esboçado nos lábios, impressionou-me desde o exato momento em que lhe fui apresentado pelo então embaixador do Brasil em Washington, Araújo de Castro.

Toda aquela maravilhosa obra sobre a sua Amazônia que ali estava exposta, tinha que ter nascido daquela cabeça iluminada. Rubens Ricúpero, adido cultural da representação diplomática brasileira na capital dos Estados Unidos, não parava um só instante, apresentando-lhe às personalidades presentes, entre as quais os embaixadores da França, da Inglaterra, da Bélgica, da Itália, da Grécia, de Portugal, da Espanha, da Holanda e de outros países, além de escritores de nomeada, pintores famosos, cientistas, professores e colecionadores de obras de arte, convidados para o vernissage naquele belo começo de noite, no vetusto salão de exposições do Instituto Brasil-Estados Unidos.

A tranquilidade, o aprumo e o charme com que Moacir Andrade recebia os cumprimentos de seus convidados era de um nobre da alta estirpe europeia. Bem vestido, sem perder de vista as pessoas que se aproximavam dele para os devidos cumprimentos, olhando nos olhos como fazem as pessoas de boa origem, conversava em francês, espanhol e português, línguas que domina muito bem.

O reitor da Universidade de Washington, também professor de línguas latinas, encantado com a cultura e o cavalheirismo de Moacir Andrade, convidou-o para uma visita de cortesia ao seu gabinete de trabalho onde ofereceu-lhe um coquetel, ocasião em que foi apresentado às pessoas presentes especialmente convidadas para aquela homenagem.

Mais uma vez tive oportunidade de observar a mágica com que Moacir Andrade recebe e conquista de imediato as personalidades que o cercam. Durante a recepção, todos os quadros que estavam em exposição naquele recinto foram vendidos quase que á moda leilão em razõ do grande interesse dos presentes em adquiri-los. Logo no dia seguinte, domingo, os jornais da cidade noticiavam o fato.

Poucas vezes tive oportunidade de ver brasileiros ilustres nas páginas do New York Times, desta vez foi Moacir Andrade, do extremo norte daquele país continental, homem de um saber extraordinário e polimorfo, manifestado não só nas suas pinturas maravilhosas, mas em livros, esculturas, entalhes em madeira, poesia, contos, enfim, em várias manifestações do seu espírito privilegiado que domina com maestria, principalmente em humanismo, cuja ternura faz concentrar sobre si a atenção de todos os presentes, nas conferências que profere nos ambientes universitários de todo o mundo para onde é convidado especial.

Possuo vários livros de autoria de Moacir Andrade, todos eles de extrema importância documental para pesquisas. O último me foi remetido do Brasil há algumas semanas, intitulado “Nheengaré ou Poranduba dos Dabacuris – estórias dos beiradões amazônicos”. Livro excelente, cheio de sabor antropológico, de espírito folclórico local, das lendas, dos costumes do dia a dia daquela gente magnífica.

Moacir Andrade, com sua argúcia, a par de sua intensa atividade de artista plástico, é também um apaixonado pesquisador da vida amazônica, seus costumes, suas crenças, seu folclore, suas lendas, seus mitos, etc. Servido de uma aguda sensibilidade de ensaísta, traz nesta obra, ao conhecimento do leitor, em narrativas envolventes, o universo encantado da cobra-grande, do boto, do curupira, do mapinguari, do matintaperera e de outras entidades que povoam e enriquecem o lendário da misteriosa região.

Tive grande prazer de assistir uma de suas conferências na velha universidade de Washington e observei atentamente o desenrolar do tema abordado: a Amazônia. Fiquei deveras abismado em ver a facilidade, a sutileza e a rapidez com que Moacir Andrade ilustra suas palestras desenhando no quadro negro. Suas perspectivas, seus desenhos criativos, geométricos são de uma beleza ímpar e parecem feitos com instrumentos, tal a perfeição dos traços, a segurança das formas e o instante necessário de sua presença como informação imediata. Mesmo sem falar inglês, Moacir Andrade foi insistentemente convidado para lecionar desenho e pintura naquela tradicional universidade americana, declinando, entretanto, do honroso convite para voltar à sua terra – o Amazonas –, que diz adorar profundamente.

Situado entre os maiores pintores contemporâneos do mundo, Moacir Andrade prefere viver uma vida bucólica, simples, quase de um camponês, no Brasil, precisamente no extremo Norte, no Amazonas, onde vive rodeado de caboclos, ensinando pintura, desenho, escultura e entalhe em madeira aos meninos pobres de sua cidade, pintando os arrabaldes, os barcos ancorados na praia do rio Negro e bebericando nos bates da cidade.

Apesar de ser ainda relativamente jovem, forte, pois tem apenas 58 anos de idade, já alcançou a glória universal, tendo quadros em importantes coleções particulares e famosos museus da Europa e América, mesmo assim continua pobre, humilde, vivendo da venda de seus quadros, livros e esculturas, que vende para colecionadores e donos de galeria que o procuram em seu ateliê na Rua Comendador Alexandre Amorim, 253, no bairro de Aparecida, em Manaus.

Além de fazer pinturas e escrever livros que ele mesmo edita, Moacir Andrade leciona Educação Artística na Escola Técnica Federal do Amazonas e viaja para o interior do Estado aproveitando as grandes férias escolares, oportunidade em que faz campanhas em favor da defesa do meio ambiente. Intransigente defensor da Natureza brutalmente agredida, Moacir Andrade já percorreu as grandes capitais do mundo exibindo cartazes como homem-sanduíche com dizeres em defesa da paz e dos bens naturais da humanidade.

Muitas coisas e muitos já falaram sobre a singular personalidade desse monumento vivo universal que é Moacir Andrade, a quem o Brasil deve muito pelo que tem realizado em prol de sua cultura e em defesa de sua verdadeira soberania que é a consciência cultural de seu povo.

Eurico de Andrade Alves, seu amigo dileto, jornalista português de fina sensibilidade, presidente da Associação dos Amigos de Ferreira de Castro, homem de grande valor moral e intelectual, verdadeiro embaixador de sua terra pelo muito que tem divulgado da cultura de seu país natal – Portugal –, assim falou do artista brasileiro:

“Moacir Andrade é um nome grande da pintura brasileira e mesmo mundial (laureado com prêmios no Brasil e estrangeiro, suas telas fazem parte do espólio de importantes museus do mundo), cuja carreira vem conhecendo sucessos dignos de apreço e registro.

Pintor, antropólogo, poeta, museólogo, etnólogo, projetista, fundador de museus e sociedades culturais, Moacir Andrade é sobretudo um sonhador apaixonado da Amazônia, cujo encanto, lendas, folclore, superstições, do povo (índio) vem fixando nas telas matizados orgíacos de beleza e cor.

Moacir Andrade é um espírito extrovertido, irrequieto, que o leva a percorrer mundo e paisagem e adentar-se na misteriosa Amazônia com a teleobjetiva da receptividade do seu inato dom artístico, aonde mergulham também (e aí talvez o segredo do seu êxito) as suas raízes ancestrais, ou uma vez por outra, em fôlego de gigante, deslocar-se a Londres, Paris, Lisboa, Roma, Madri ou Washington para patentear, em mostras públicas, o fabuloso Amazonas que traz na alma (e no sangue) e nas telas.

Em 1969 e 1973 visitou propositadamente Ferreira de Castro em Entre-os-Rios, visitando a seguir Ossela (visita sentimental à casa onde nasceu Ferreira de Castro em São João da Madeira, onde passou dois dias). Quadros seus figuram na Casa-Museu Ferreira de Castro, em Ossela, em São João da Madeira, estando o artista a ultimar uns quadros de temática paisagística amazônica, que tenciona oferecer à Casa-Museu Ferreira de Castro em Sintra”.

Para se ter uma ideia do valor de suas telas hoje no mercado de arte internacional, basta dizer que, em 1982, num dos poucos leilões que a Galeria Metropolitana de Nova York realizou, reunindo quase uma centena de artistas famosos de todo o mundo e de todos os tempos, figurava o nome de Moacir andrade com quadros que somavam alguns milhões de dólares. Os referidos quadros pertenciam ao acervo de um só proprietário que teve a sorte de vendê-los num dos primeiros lotes. Essa notícia teve lugar de destaque nos principais jornais de Nova York, Paris e Londres, colocando Moacir Andrade em maior evidência internacional. Seus amigos Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Ferreira de Castro, Margot Fontayn e Antônio Olinto foram testemunhas das primeiras vitórias internacionais desse artista brasileiro cuja obra monumental é hoje um lastro de valor incomensurável do patrimônio universal.

Poucos artistas tiveram a honra de receber em seu ateliê personalidades ilustres como Moacir Andrade, que já recebeu em seu ambiente de trabalho o príncipe Charles da Inglaterra, o príncipe Ankiito do Japão, Jorge Amado, Gilberto Freire, Margot Fontayn, Guimarães Rosa, Josué Montello, Jean Paul Sartre e Eurico Alves, entre outros.

Glória para o Brasil por ter como filho um artista do quilate de Moacir Andrade, patrimônio universal da cultura amazônica, justo orgulho de todos os brasileiros como disse o grande sociólogo Gilberto Freire: “(...) a permanência de Moacir Andrade na Amazônia é um símbolo augusto para a formação cultural e universitária da mocidade, cuja liderança espiritual, intelectual e moral se fez através da construção de uma obra profundamente humana que dura toda uma vida”.

Já tive a grata notícia de que Moacir Andrade virá expor seus quadros aqui em Nova York. Será uma festa para nós, americanos, e uma oportunidade rara para aqueles que desejam possuir obras de real valor e conhecer um artista que, sem sair da Amazônia longínqua, conseguiu atrair sobre o seu trabalho a atenção, o respeito e a admiração do mundo.


Nos anos seguintes, Moacir Andrade investe simultaneamente nas carreiras de artista plástico bem sucedido e de grande memorialista da cultura amazônica. Seu primeiro livro dessa nova fase é “Manaus, Ruas, Fachadas e Varandas”, lançado em 1986, que se esgota rapidamente.

Em 1988, ele publica “Pratos, lendas, estórias e superstições de alguns peixes do Amazonas”, que também se esgota rapidamente.

Em 1989, em Paris, Moacir recebe o prêmio de “O maior pintor de paisagens tropicais do mundo”. Ele aproveita a badalação criada em torno do prêmio para realizar novas exposições em Bruxelas, Varsóvia, Mônaco e Lisboa.

No começo de 1992, ele concluiu um gigantesco mural de 21 X 6 metros, 20 mil peças e seis toneladas, representando segundo ele, “o edifício cultural da Amazônia através das suas lendas e mitologia, e da diversidade enorme da fauna e da flora”. Qual um quebra-cabeças, os elementos que compunham o mural foram entalhados e construídos em blocos que seriam reagrupados na hora da montagem no local escolhido do prédio-sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, como parte das comemorações mundiais dos 500 anos do Descobrimento da América.

Moacir vinha se dedicando ao projeto – uma sugestão do escritor Arnaldo Niskier, então diretor da Rede Manchete – nos últimos três anos, utilizando mais de 100 espécies diferentes de madeira da Amazônia, entre as quais o cedro, a macacaúba, o pau-ferro, a abiurana, o louro-rosa e o louro-bosta. Ele havia recolhido a madeira do refugo das serrarias existentes em Manaus e em Itacoatiara. A doação do mural havia sido acertada entre o Governo do Estado do Amazonas e a Embaixada da ONU, em Brasília (DF).

O mural destacava várias lendas amazônicas, como a das Icamiabas, do Guaraná, da Vitória-régia, da Mãe-do-Rio, dos Tarianos, do Boto-tucuxi, do Tamacuaré e do Tamba-Tajá, que dominava a parte inferior da obra, cuja pontuação era feita por multidões de macacos, flores, folhagens, tartarugas, pássaros, jacarés e sapos.

Quando Moacir Andrade desembarcou em Nova York, entretanto, teve uma surpresa. A imprensa havia dado grande destaque ao mural como uma prova contundente de que os brasileiros estavam destruindo a floresta amazônica (o Brasil ia sediar a ECO-92 no Rio de Janeiro) e os ativistas do Greenpeace, WWF e similares embarcaram na canoa furada. Moacir Andrade se transformou no inimigo público n° 1 da militância “verde”.

Devido a série interminável de protestos contra a obra de arte – e logo na nação mais poluidora do planeta! –, o mural foi recusado pela ONU e enviado de volta para Manaus. Acabou sendo montado no campus da UniNilton Lins, onde está até hoje.

Naquele mesmo ano, Moacir lança uma nova edição ampliada e revisada do livro “Manaus, monumentos, hábitos e costumes”, que também se esgota rapidamente.

Em 1993, Moacir Andrade é novamente convidado pelo Ministério de Relações Exteriores para retomar seu papel de embaixador extraoficial da cultura amazônica. Com a anuência do Ministério da Educação, onde estava lotado, ele se licencia da Universidade Federal do Amazonas e começa a fazer uma série de palestras sobre a questão ecológica em universidades de Porto Alegre, Florianópolis, Natal, Salvador e Recife. Moacir se dedica de corpo e alma à nova tarefa, coletando informações preciosas sobre o assunto nas incontáveis viagens que continuava fazendo anualmente pelo interior do Amazonas.

Em 1994, Moacir viaja para a Ásia, onde expõe e faz palestras em universidades do Vietnam, Camboja, Coréia do Sul, China e Tailândia. Ele também faz exposições e conferências em Bangalore, na Índia, e em Bangladesh.

Em 1995, Moacir lança o livro “Colégio Santa Dorotéia 1910-1995”, onde conta a história do mais tradicional estabelecimento de ensino exclusivamente feminino do Amazonas. No mesmo ano, publica o livro “Antologia Biográfica de Personalidades Ilustres do Amazonas”, em que lista o perfil biográfico de 200 gênios da raça, que vão de Plínio Coelho a Umberto Calderaro, de Ferreira de Castro a Gilberto Mestrinho, de Abílio Nery a Félix Valois, de Samuel Benchimol a Phelipe Daou, de Anibal Beça a Moura Tapajós, de Ademar Brito a Antônio Loureiro. Trata-se de um dos melhores trabalhos do gênero já publicados em Manaus.

Dois anos depois, ele lança o livro “Moacir Andrade – Uma Lenda Amazônica”, um belíssimo livro de artes em que reproduz em policromia uma centena dos 10 mil quadros que havia produzido ao longo de sua existência. A edição do livro se esgota em menos de um mês. A década seguinte se transforma quase que em um período sabático, que Moacir Andrade aproveita para aprofundar suas pesquisas sobre a cultura amazônica.

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (5)


Em 2004, o escritor, filósofo e professor universitário Demóstenes Carminé escreve um ensaio intitulado “Moacir Andrade, um esteta de múltiplos afazeres”, para ser incluído em um futuro livro de sua autoria, onde analisa a literatura produzida pelo renomado artista plástico:

Fundador da Pinacoteca Pública do Estado do Amazonas, onde exerceu a diretoria por algum tempo, da União Brasileira de Escritores do Amazonas, do Instituto Brasileiro de Antropologia da Amazônia, da Academia de História do Amazonas e da Academia de Poesia do Amazonas, o múltiplo Moacir Andrade também é membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, da Academia Pré-Andina de Letras, da Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas, da Associação dos Escritores do Amazonas e da Associação Amazonense para Defesa da História e das Tradições Populares do Amazonas.

De família de intelectuais e artistas, desde cedo ele conviveu com as artes e se sentiu atraído pela invenção de formas, através de desenhos e pinturas. Seus primeiros exercícios de puro ludismo infantil foram incentivados pelos seus pais e pela sua madrinha e benfeitora Clotildes Pinheiro, fator que foi importante para suas posteriores escolhas de caminho como artista plástico e escritor.

Desde 1947, Moacir Andrade vem participando de exposições individuais de artes plásticas de desenho, pintura, escultura e entralhe em madeira, produção essa que formalmente se singulariza pela leveza, pelo esfumado, pela fluidez das linhas e cuja força como criação, tem sido amplamente enfatizada pelos conhecedores de arte. Ernesto Kawal destacou, nessa pintura inicial, a vibração metafísica e a sedução do artista pelo amazonismo.

Utilizando o material de sua singular vitalidade telúrica e ética, Moacir Andrade delineia paisagens delicadas que também adquirem aspectos metafísicos, quando interceptados pelos mesmos obsessivos planos pintados. Sua atração pelo oculto e desejo de comunhão com a vida total leva o pintor a frequentar durante cinco anos o Seminário Presbiteriano de Manaus, onde assistiu, em grupos de estudos espirituais, palestras sobre aspectos bíblicos de cristianismo. Mas, conforme seu próprio depoimento, é no ato do criador em qualquer das modalidades, que tem encontrando o mais pleno e sagrado significado da vida.

Vista em conjunto, sua obra plástica, poética ou ficcional, na realidade até agora expressa, revela como dominante o seu caráter interrogativo, experimental, isto é, a manipulação da matéria, seja ela palavra, pedra, textura, tela, tintas, etc., em busca da vida essencial, ou da oculta ordem que anularia o caos.

Como sabemos, essa é uma das propostas básicas do experimentalismo em curso, desde meados do século XX, nas áreas de educação e ensino: levar o educando a novas interpretações do universo. Novas, porque devem resultar de seu envolvimento pessoal com a vida, com os outros e da criação de uma linguagem própria, essencial e não meramente repetitiva. Para além do bonito visível, há que descobrir o infinito invisível.

Essa vibratilidade, entretanto, não se expande livre, ela é retida por uma consciência ordenadora regida, consciente ou inconscientemente, por uma visão de mundo de raiz, que diríamos pitagórica – aquela que atribui ao número, ao traçado geométrico, a possível comunicação direta com as potências mais altas do espírito e que os antigos formalizaram em números, mitos e símbolos, para transmitirem memória, saber, beleza, verdade e o incognoscível do espaço invisível da mente humana.


É no encalço dessas respostas que a criação de Moacir Andrade vai se transformando. Da ânsia de autodoação humanitária que o leva a comungar com os fundos e trágicos contrastes do mundo cotidiano onde a vida se cumpre, sua poesia vai deslizando para a sondagem, cada vez mais profunda do mundo oculto a que pertencermos sem saber e no qual estaria a chave que nos falta para decifrarmos o sentido último da vida.

A obra plástica desse monumento que é Moacir Andrade, energizada pela paixão de conviver, da integração eu – outro eu – mundo, do conhecer além do visível concreto e do romper limites, ruptura do convencional instituído para tocar o inatingível, o enigma, a de Moacir Andrade é dos que se vem revelando, no cenário artístico cultural brasileiro, como das mais fortes expressões das forças transformadoras, atuantes em nosso tempo. Aqueles que vêm sendo definidos como pós-moderno e cujo nervo principal, como diz Farias de Carvalho, é “o impulso da totalização”.

Descoberto o fenômeno de que tudo o que vemos é palavra, é discurso, automaticamente se conclui que, mudado o discurso, é também mudada a natureza ou a verdade da realidade nomeada. É no âmbito dessa nova visão de mundo e de vida que se aprofunda a interrogação existencial que assalta a humanidade. Quem sou eu? Ou na conhecida frase de um grande pensador: “Sempre fomos o que disseram que nós éramos”.

Na beleza de seus versos, Moacir Andrade revela metaforicamente, a intenção do maior desencanto: revelar nas cantigas de antanho, o grande ideal de amor, consagrado pela civilização ocidental, bem como a perda da alta espiritualidade e grandeza do amor absoluto, do qual o grande exemplo é vivido por Tereza de Ávila na prosa mística do seu castelo interior emoldurando – a alma e seus encantos, alto ideal amoroso já hoje fora do eixo em torno do qual se move a terra.

Sempre permanentemente atento à grande transformação hoje em processo e alterando radicalmente todo o comportamento físico e mental do homem contemporâneo, tal como foi consagrado pelos tempos, o poeta redescobre e funde as grandes transformações num só objetivo que é a literatura e a história eternizadas como modelos a serem imitados ou repudiados. Modelos de amor ou desamor, de submissão ou rebeldia a ascetismo ou erotismo, mas sempre a serviço da sensibilidade artística. A poesia do artista Moacir Andrade é completa pela singularidade do tema heterogeneidade do discurso criado, onde se fundem o húmus arcaico e a vibratilidade erótica da atmosfera, pelo leitor distraído ou ingênuo.

Desde o nível linguístico, ela exige uma pré-leitura de mundo, pois sua matéria resulta do amálgama de diferentes fontes: latim, o termo vulgaris, o galaico, as falas de Tereza D'Ávila, o italiano e valenciano, etc. Falas represadas em mil linhas poéticas de antanho que foram agora contadas, misturadas e recriadas por esses novos e intrincados caminhos poéticos abertos pelo gênio de Moacir Andrade.

O gênio desse monumento vivo recorda sua própria vida dos rios amazônicos, misturando ficção e realidade, memória e imaginação, temperamento exuberante nas alegrias e tristezas, na fortuna e na pobreza, na justiça e na injustiça, que não constrangem seu modo de ser extremamente humano, nem na vida, nem na literatura. Tomado de orgulho e amor pela vida selvática da Amazônia onde passara toda a sua infância e parte da sua juventude, ao tornar-se uma celebridade o universo dos pensamentos volta às origens, dando dimensões épicas aos coronéis dos seringais amazônicos.

Moacir Andrade, com a sua coragem respaldada pela roupagem de aço de seu patrimônio cultural, inova a crônica brasileira e, comovido, seu magistério tem sido marcante no atual florescimento do gênero entre nós. Quase que exclusivamente cronista, suas incursões no terreno do conto e da poesia são marcantes e legou Moacir Andrade nas suas melhores páginas redimir a crônica da efemeridade do jornalismo para dar-lhe o sentido de permanência da literatura.

Mestre no seu ofício, ao descobrir o lado significativo dos acontecimentos mais triviais, ele comunica suas descobertas ao leitor numa prosa de admirável simplicidade e precisão, cujo teor poético advém menos de recurso do metiê do que da visão essencialmente lírica das coisas. Com uma humanidade que se guarda sempre da efusão sentimental e uma ironia que jamais desliza para a rasteira agressão, Moacir Andrade, nas suas crônicas, celebra o gosto de viver em plenitude o momento que passa – plenitude a que a memória de infância e mocidade e a recordação dos amores platônicos, idos e vividos servem para temperar o indispensável travo de uma melancolia.

Os diálogos, os monólogos de suas cartas ficcionais, são de grande importância para a História da Cultura Brasileira ou Historiografia Brasileira, pelo que representam de inteligente observação de nossa incipiente sociedade ainda com ranço do colonialismo português, catalogando, exaltando e registrando os recursos da terra. Essa postura de flagrante brasilidade, defendida por Arthur Cézar Ferreira Reis, em que a linguagem é simples, apesar de certa tendência à retórica e ao exagero adjetivo, está presa ao barroco, ligando-se ao estilo de vida antiga, de que é vivo testemunho.

Portador de uma simpatia irradiante, vi-o pela primeira vez nos corredores da universidade. Fomos contemporâneos na Universidade Federal do Amazonas, eu, professor de Filosofia, e Moacir Andrade, de Desenho Técnico e Educação Artística. Irrequieto, Moacir Andrade parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre participando de eventos e promoções de natureza cultural, com o objetivo de despertar nos seus alunos o interesse pelas coisas do espírito e sendo o principal elo da cadeia da congregação comunitária.


Pintor, poeta, escritor, jornalistas, antropólogo, professor e um excelente conferencista, Moacir Andrade passou a ser na faculdade onde estava agregado um líder insofismável. Quando foram abertas as inscrições para diretor do Departamento de Artes da Faculdade de Ciências Humanas na Universidade Federal do Amazonas, dois ou três candidatos concorreram à vaga e o medo deles é que Moacir Andrade também fosse um dos pretendentes, por isso fizeram uma sórdida campanha contra o artista que nem de longe estava interessado na tertúlia.

Quando eu o conheci, Moacir Andrade já era uma personalidade de renome internacional sendo alvo quase que diariamente de reportagens da imprensa escrita, falada e televisionada. Apesar de ser convidado várias vezes, ele jamais quis participar do Conselho Superior da Universidade, mesmo porque eu sempre o vi como um verdadeiro embaixador cultural do Amazonas, da Amazônia e do Brasil.

Certa vez, ele recebeu do Ministério das Relações Exteriores um convite honroso para ficar à disposição daquela pasta de comum acordo com o Ministério da Educação e Cultura onde estava agregado. A carta chegou num dia e no dia seguinte Moacir deu entrada no protocolo da Reitoria e em seguida viajou. Somente 15 dias depois a carta chegou às mãos da comissão administrativa para ser aprovada. Um elemento do Conselho Superior vetou as pretensões contidas na carta alegando que o pintor viajara para o exterior sem a devida permissão da universidade e, inclusive, abriu um inquérito administrativo contra o artista, pedindo a sua exoneração por flagrante abandono de emprego.

Achei que a atitude daquele mestre era um gritante absurdo, considerando que aquela disponibilidade era de alto valor para o Amazonas, pois Moacir ficaria a disposição daquele ministério por tempo indeterminado e com percepção integral de seus vencimentos, para cumprir no exterior a missão de alto nível cultural, realizando exposições e conferências nas universidades dos países para onde fosse designado e que a universidade deveria fazer era outorgar ao artista não uma simples demissão mais um título merecido de Doutor Honoris Causa, considerando que em toda a história do Amazonas não existe registro de que nenhum artista amazonense tenha recebido tão importante honraria. O inquérito foi arquivado e a missão aprovada por unanimidade pelo Conselho Superior da Universidade do Amazonas.

Altamente prestigiado pelas autoridades da cultura nacional, mercê das inequívocas qualidades de professor, conferencista, escritor, jornalista, poeta, pintor e desenhista, Moacir Andrade tornou-se um ícone, um sábio, um monumento da nossa inteligência, cujas glórias conquistadas só dignificaram o Amazonas e o Brasil.

Além de pintor emérito, Moacir Andrade tem escrito obras de alto valor antropológico e de caráter social. Por outro lado, não se deixa prender exclusiva nem diretamente por qualquer das estéticas em moda, de todas podem ser encontradas resquícios em sua obra monumental, num ecletismo que dá asas à opiniões diversas. Em certa medida, Moacir Andrade é fruto exclusivo da sua poderosa imaginação transfiguradora que nem sempre o guia para o melhor porto. O seu estilo, a sua linguagem, é outro aspecto peculiar e muito próprio.

Dono de um riquíssimo vocabulário, ele procura sempre usar o termo preciso, exato para determinadas sensações num turbilhão verbal que não conhece fronteira. O culto da forma traduz um estilo de estertor puro e o esteticismo o faz frágil diante de tudo quanto for motivo de beleza ou nela puder transformar-se. De toda a numerosa e variada obra de Moacir Andrade, formada de novelas, contos, fábulas, crônicas, lendas, narrativas, apólogos, reminiscências, baladas, confissões, teatro, poesia, todas elas ocupam situação proeminente no universo literário brasileiro, guiando-o para o pódio dos campeões da inteligência planiciária onde nasceu, cresceu, tornou-se sábio e vive para gáudio da nossa felicidade.

Moacir Andrade fez parte integrante do grupo de jovens intelectuais que inaugurou em Manaus o conhecido Clube da Madrugada no dia 24 de novembro de 1954, onde fez parte não como pintor, que já era conhecido desde a década de 1940, mas como poeta onde publicou o seu primeiro poema intitulado “Benedita”, com o qual ficou conhecido na cidade, graças a divulgação que fez, declamando esse poema nos vários eventos onde participava e participa até hoje, guiado pela sua potente saúde de um septuagenário.

A vitalidade da obra poética desse gênio caboclo, grande poeta da nossa modernidade, é indicada desde logo pelos acidentes estéticos de sua fortuna. Nesta locução de caráter puramente afetiva ou rasteiramente ideológico polarizam com empenhos de desmistificação de um rigor analítico que mal lhe esconde, amiúde, a parcialidade e as prevenções. Tal radicalização de posições críticas indica, por si só, o alto grau de representatividade de Moacir Andrade, cuja matéria enfeixa, numa espécie de pós-facio as linhas de forças essenciais de nossa poesia contemporânea. Sem ser um inventor, Moacir Andrade sabe, no entanto, dar às palavras, o tom, a leveza, a grandiosidade que elas representam. A vitalidade da obra desse portentoso artista, grande poeta do nosso atualismo estético, é indicada pelos críticos dessa loja, um esteta da palavra.

Moacir Andrade é um poeta do auge do nosso modernismo e que juntamente com outros companheiros do Clube da Madrugada fundou, em 1956, a revista “Madrugada”, em Manaus, de quem foi um dos mais destacados redatores. No primeiro número dessa revista original, ele publicou o seu famoso poema “Benedita” que teve enorme repercussão. Estou convencido de que ele é um dos raros poetas modernos do Brasil cuja verve político-social se alça ao nível de poesia cristalizada e expressa numa linguagem coloquial e extremamente profunda. Sua emoção, quando coletiva, transfunde-se em obras que ostentam peremptório poder das palavras.

No instante em que propõe a construir seus poemas, Moacir Andrade vai buscá-los nos abismos incomensuráveis do seu privilegiado subconsciente à luz de seu espírito fartamente iluminado pelos deuses. Moacir Andrade jamais deixou de ser um escritor em poesia, isto é um artesão consciente e lúcido de sua potencialidade. Daí o fato de ter influído nos poetas mais jovens do Amazonas, não só pelo fundo, como uma razão de vários pormenores de fatura do poema.

O polimorfismo desse gênio caboclo dividiu o seu tempo em atividades várias no campo intelectual, incluindo a poesia, a ficção, a crítica literária, a crítica de artes plásticas, a museologia, o folclore, o jornalismo, a crônica social, o conto e, principalmente, o conferencismo, onde atua permanente como professor dedicado. A sua obra como folclorista manifestada em vários livros já publicados e esgotados com certeza terá a eternidade das grandes obras de arte literária, com funda repercussão em nossa metodologia do assunto, alargando consideravelmente, ao mesmo tempo, o conhecimento do nosso riquíssimo populário. Como musicólogo, jamais escreveu as centenas de músicas que criou e que se perdeu na absoluta falta de exercício. A sua obra capital, entretanto, concentra-se na literatura, onde surge como uma das figuras exponenciais, capitais, extremas das letras brasileiras.

Ao longo de toda sua longa história – hoje Moacir está com quase 80 anos –, ele aparece, como já falei, em 1954, com o Clube da Madrugada, onde ainda se encontra sob a influência de seus pares, poetas de primeira linha. Na ficção, Moacir Andrade produziu um livro ainda não publicado, “No Tempo dos Coronéis”, onde incluiu contos, crônicas e cartas, tudo isso com sabor de ficção. Na sua primeira narrativa, utiliza um processo livre, em que as cenas objetivas fazem suceder digressões concebidas dentro de um espírito entre jovial e humorista, desenvolvendo-se caprichosamente pelo fio do entrecho.

Usando de sua genialidade inesgotável, Moacir extrai poesia de textos aparentemente apoéticos dando como exemplo os fragmentos dos nossos primeiros cronistas, enumerações de títulos de livros ou de paródias de poemas. A poesia adulta e forte de Moacir Andrade que muitos críticos colocam na geração de 45 é intimista, com uma pungente saudade da infância e do tempo perdido. Embora tenha participado na sua juventude de um grupo cuja preocupação é o verso, escondido com perfeição, o melhor de seu lirismo reside nos versos que, escritos ao correr da pena, transbordam de emoção e sentimento.

Mas o prestígio que desfruta vem da qualidade ímpar de suas crônicas, tendo como assunto o tipo humano, ingênuo, suas glórias e aventuras, suas miudezas que fazem ainda suportável a vida: a criança é seu universo, o homem bom e amoroso, a jovem ou o adolescente, eis a matéria de um dos mestres da crônica da nossa literatura. Para se ter uma ideia da grandeza criativa estética e humanística desse gênio da nossa literatura e da nossa arte em geral, leia esses versos: “Na praia/ Os barcos acendem ventos e mensagens/ E seus mastros são diálogos mudos/ Conversas abissais de cordas e velames / Nos cilíndricos corpos de madeira/ Escorrem frias antigas agonias de marinheiros mortos/ Os compridos mastros/ Parecem silêncios abissais/ Dançando ao mar na volta sem retorno.”

Um olhar superficial sobre a ciclópica obra poética de Moacir Andrade, toda ela passada na região de seu nascimento, situa-o entre os regionalistas brasileiros de maior repercussão, mas a sua obra ultrapassa esse limite ao aproveitar uma tradição mágica brasileira, que inclui os mitos indígenas e urbanos. Com esse material, Moacir Andrade produz uma ficção que se assemelha aos grandes nomes da literatura nacional. Poeta de formação parnasiana, ele pertence a uma geração em que as normas da escola renascentista perderam o sentido, deixando-se influenciar pela fluidez simbólica. Ficou, entretanto, mais parnasiano do que simbolista. Em sua poesia, em que evoca o mundo amazônico em todas as suas mudanças e pelo qual também perpassam o material Nordeste (seu pai era nordestino), predomina o senso do objetivo sobre o sentimento do subjetivo, a nitidez dos objetos externos sobre a névoa das reflexões internas.

Moacir Andrade é, sem duvida, dentre os nossos pensadores, um dos que souberam granjear maior notoriedade e mais atenção da crítica, culminando em melhor lugar do pódio das letras nacionais no campo da prosa como já me referi. Extensa e valiosa é a sua obra. Ele é um excelente memorialista, cronista, contista, conferencista, exímio contador de histórias e crítico literário. Nos seus monumentais livros de memórias estão vívidas as evocações de seres e ambientes, coisas e acontecimentos, através de uma linguagem farta e precisa.

Nas crônicas, há riqueza de emoção, não de toda expurgada de alguma concessão ao sentimentalismo fácil, com endereço ao leitor de jornal, a que se destinavam originariamente. Seus contos fixam aspectos do sertão amazônico, ora põem em movimento personagens urbanos, sendo que a alguns não faltam toques mórbidos e a outros não carecem de características de apólogos: todos se banham de técnica e concepção realista. A sua crítica literária tem uma forma mista, impressões de leituras se misturam com reminiscências, considerações sobre a obra se alternam com conceitos de ordem geral, às vezes entremeados de digressões, nunca, porém, a ponto de pesarem sobre o texto.

Moacir Andrade tem uma ampla visão romântica de suas obras escritas, tira suas histórias do real imaginário, filão inesgotável no oficio de escrever, o livro está despido de erotismo balofo e de experimentalismo o que não é comum nos dias que passam. Mas as paixões se entrecruzam. E, com isso, cria-se uma saga destinada a pessoas sensíveis delicadas, poéticas, emocionais, empáticas que abominam a violência, seja ela física ou verbal, as agressões aos valores perenes e aos ideais humanitários. Quando Moacir Andrade cresce em significação é exatamente quando está situado em seu contexto estético geracional. O contexto que entre nós acolheu os novos que surgem como poetas nos anos atuais, dando voz aos grandes problemas que tumultuam o mundo, que a guerra viera abalar. Poetas que em diferentes graus, se submetem às exigências formais de um neo-parnasianismo ou de um neo-simbolismo ainda atuantes, nesse inicio do novo século.


Moacir Andrade é um revolucionário, um anarquista, um inovador da palavra. Dentro do processo de renovação cíclica que o mundo vem sofrendo, experimentando, vivendo, através dos milênios, mais uma vez a palavra criadora fez emergir dos caos um novo mundo, uma nova aspiração, uma nova experiência à mais absoluta desordem. É essa revelação essencial dos poemas de Moacir Andrade. Como? Perguntaríamos – em que sentido esse fenômeno é vinculado pela poesia, de que destruição, de que caos fala a sua poesia? Qual a nova ordem que vislumbra? Quais as dimensões dessa palavra? Muito fácil defini-la com brevidade, pois ela representa uma enorme multiplicidade de problemas: Suas opções estéticas e relações com a vanguarda, seus processos de metaforização ou transfiguração da realidade, sua função de arauto de um novo modo de ver o mundo ou de estar nele, a natureza de seu sistema de símbolos: seu universalismo e brasilidade, sua problemática essencial que se identifica com as linhas de força destes tempos de intensas mutações.

Em sua multiforme problemática destaca-se um dos imperativos do poeta contemporâneo a reflexão sobre o processo criador ou sobre a natureza da poesia hoje. Na década de 1960, Moacir Andrade publica uma espécie de manifesto no âmbito da Universidade do Amazonas, manifesto teórico, no qual retoma a palavra total defendida pelos grandes poetas do passado, mais exatamente do século XIX e propõe o totalismo poético, processo de criação que se desenvolve através da variação pluridimensional dos temas, tendo como centro a figura do homem contemporâneo, observando-o através de sua gênese, de sua ação e finalidade última.

A mesma visão global deve ser aplicada à parte formal do poema. O poema-em-bloco é feito antes de tudo e somente de palavras. Estas juntam-se em blocos, constituindo universos completos, relacionados entre si e admitindo infinita capacidade de ligações. Um poema nunca está completamente terminado, prendendo-se aos anteriores ou aos que virão depois. Concomitantemente, em si, representa uma unidade. Essa noção universal de poesia global corresponde à unidade. Essa noção universal de poesia global corresponde à noção de ser humano como parte integrante responsável pelo todo cósmico a que ele pertence. Noção que a pós-modernidade defende. Mas, como todos os poetas contemporâneos, a de Moacir Andrade é uma poética em processo evolutivo.

Dominando com maestria as infindáveis labirínticas falas de seus versos, a arte de Moacir Andrade resulta de uma verdadeira alquimia verbal que funde o puro prazer de lidar com a palavra com o arguto pensar crítico-filosófico-mistíco e uma amorosa comunhão com o outro, identificando com as grandes vozes da literatura universal. Essa alquimia verbal visa envolver o leitor na aventura da escrita que o desafia a decifrá-la. A sua polimorfia literária, a sua robusta e dinâmica proposição aos estudos da poesia e da prosa, fizeram de Moacir Andrade, se não um dos maiores talvez o maior intelectual de toda a Amazônia. Valendo-o do rigoroso instrumental teórico para balizar a escrita e a montagem do complexo material pesquisado, o autor vai às fontes vivas da memória mitológica e folclórica de sua terra que guardam avaramente nos meandros das tradições, os segredos das origens e história, e às fontes documentais. Não é fácil decodificar esse esteta de múltiplos saberes, embora se conte com a colaboração pessoal do próprio ícone para se exumar os recônditos de sua alma e o fausto documentário da sua vida cultural. Por isso, vou ficando por aqui. Até mais.


Demosthenes Ribeiro Carminé morreu, aos 71 anos de idade, no final da tarde do dia 6 de janeiro de 2011. Autor de obras literárias e filosóficas, era membro da Academia Amazonense de Letras desde 2005, ocupando a cadeira 17, de Francisco de Castro. Diabético, ele estava internado no Hospital Nilton Lins, zona Centro-Sul de Manaus.

Demosthenes era conhecido no mundo artístico como Dedé Carminé, atuando como cantor/compositor. Ele chegou a fazer parte da equipe da Rádio Baré na década de 40 e, durante passagem por Minas Gerais, fez parte do movimento “Solar da Seresta”, de Belo Horizonte. O gosto pela música levou Dedé a ajudar na criação do programa “Carrossel da Saudade”, ainda no ar na Tv Cultura do Amazonas. Carminé também foi seguidas vezes convidado a ser jurado no desfile das escolas de samba de Manaus.

Pelos relevantes serviços prestados à sociedade, Carminé recebeu a medalha “Rodolpho Valle”, da Câmara Municipal de Manaus. Entre seus livros mais conhecidos está “Terezinha Morango – Cinderela Amazônica”.