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sábado, outubro 31, 2015

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (5)


Em 2004, o escritor, filósofo e professor universitário Demóstenes Carminé escreve um ensaio intitulado “Moacir Andrade, um esteta de múltiplos afazeres”, para ser incluído em um futuro livro de sua autoria, onde analisa a literatura produzida pelo renomado artista plástico:

Fundador da Pinacoteca Pública do Estado do Amazonas, onde exerceu a diretoria por algum tempo, da União Brasileira de Escritores do Amazonas, do Instituto Brasileiro de Antropologia da Amazônia, da Academia de História do Amazonas e da Academia de Poesia do Amazonas, o múltiplo Moacir Andrade também é membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, da Academia Pré-Andina de Letras, da Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas, da Associação dos Escritores do Amazonas e da Associação Amazonense para Defesa da História e das Tradições Populares do Amazonas.

De família de intelectuais e artistas, desde cedo ele conviveu com as artes e se sentiu atraído pela invenção de formas, através de desenhos e pinturas. Seus primeiros exercícios de puro ludismo infantil foram incentivados pelos seus pais e pela sua madrinha e benfeitora Clotildes Pinheiro, fator que foi importante para suas posteriores escolhas de caminho como artista plástico e escritor.

Desde 1947, Moacir Andrade vem participando de exposições individuais de artes plásticas de desenho, pintura, escultura e entralhe em madeira, produção essa que formalmente se singulariza pela leveza, pelo esfumado, pela fluidez das linhas e cuja força como criação, tem sido amplamente enfatizada pelos conhecedores de arte. Ernesto Kawal destacou, nessa pintura inicial, a vibração metafísica e a sedução do artista pelo amazonismo.

Utilizando o material de sua singular vitalidade telúrica e ética, Moacir Andrade delineia paisagens delicadas que também adquirem aspectos metafísicos, quando interceptados pelos mesmos obsessivos planos pintados. Sua atração pelo oculto e desejo de comunhão com a vida total leva o pintor a frequentar durante cinco anos o Seminário Presbiteriano de Manaus, onde assistiu, em grupos de estudos espirituais, palestras sobre aspectos bíblicos de cristianismo. Mas, conforme seu próprio depoimento, é no ato do criador em qualquer das modalidades, que tem encontrando o mais pleno e sagrado significado da vida.

Vista em conjunto, sua obra plástica, poética ou ficcional, na realidade até agora expressa, revela como dominante o seu caráter interrogativo, experimental, isto é, a manipulação da matéria, seja ela palavra, pedra, textura, tela, tintas, etc., em busca da vida essencial, ou da oculta ordem que anularia o caos.

Como sabemos, essa é uma das propostas básicas do experimentalismo em curso, desde meados do século XX, nas áreas de educação e ensino: levar o educando a novas interpretações do universo. Novas, porque devem resultar de seu envolvimento pessoal com a vida, com os outros e da criação de uma linguagem própria, essencial e não meramente repetitiva. Para além do bonito visível, há que descobrir o infinito invisível.

Essa vibratilidade, entretanto, não se expande livre, ela é retida por uma consciência ordenadora regida, consciente ou inconscientemente, por uma visão de mundo de raiz, que diríamos pitagórica – aquela que atribui ao número, ao traçado geométrico, a possível comunicação direta com as potências mais altas do espírito e que os antigos formalizaram em números, mitos e símbolos, para transmitirem memória, saber, beleza, verdade e o incognoscível do espaço invisível da mente humana.


É no encalço dessas respostas que a criação de Moacir Andrade vai se transformando. Da ânsia de autodoação humanitária que o leva a comungar com os fundos e trágicos contrastes do mundo cotidiano onde a vida se cumpre, sua poesia vai deslizando para a sondagem, cada vez mais profunda do mundo oculto a que pertencermos sem saber e no qual estaria a chave que nos falta para decifrarmos o sentido último da vida.

A obra plástica desse monumento que é Moacir Andrade, energizada pela paixão de conviver, da integração eu – outro eu – mundo, do conhecer além do visível concreto e do romper limites, ruptura do convencional instituído para tocar o inatingível, o enigma, a de Moacir Andrade é dos que se vem revelando, no cenário artístico cultural brasileiro, como das mais fortes expressões das forças transformadoras, atuantes em nosso tempo. Aqueles que vêm sendo definidos como pós-moderno e cujo nervo principal, como diz Farias de Carvalho, é “o impulso da totalização”.

Descoberto o fenômeno de que tudo o que vemos é palavra, é discurso, automaticamente se conclui que, mudado o discurso, é também mudada a natureza ou a verdade da realidade nomeada. É no âmbito dessa nova visão de mundo e de vida que se aprofunda a interrogação existencial que assalta a humanidade. Quem sou eu? Ou na conhecida frase de um grande pensador: “Sempre fomos o que disseram que nós éramos”.

Na beleza de seus versos, Moacir Andrade revela metaforicamente, a intenção do maior desencanto: revelar nas cantigas de antanho, o grande ideal de amor, consagrado pela civilização ocidental, bem como a perda da alta espiritualidade e grandeza do amor absoluto, do qual o grande exemplo é vivido por Tereza de Ávila na prosa mística do seu castelo interior emoldurando – a alma e seus encantos, alto ideal amoroso já hoje fora do eixo em torno do qual se move a terra.

Sempre permanentemente atento à grande transformação hoje em processo e alterando radicalmente todo o comportamento físico e mental do homem contemporâneo, tal como foi consagrado pelos tempos, o poeta redescobre e funde as grandes transformações num só objetivo que é a literatura e a história eternizadas como modelos a serem imitados ou repudiados. Modelos de amor ou desamor, de submissão ou rebeldia a ascetismo ou erotismo, mas sempre a serviço da sensibilidade artística. A poesia do artista Moacir Andrade é completa pela singularidade do tema heterogeneidade do discurso criado, onde se fundem o húmus arcaico e a vibratilidade erótica da atmosfera, pelo leitor distraído ou ingênuo.

Desde o nível linguístico, ela exige uma pré-leitura de mundo, pois sua matéria resulta do amálgama de diferentes fontes: latim, o termo vulgaris, o galaico, as falas de Tereza D'Ávila, o italiano e valenciano, etc. Falas represadas em mil linhas poéticas de antanho que foram agora contadas, misturadas e recriadas por esses novos e intrincados caminhos poéticos abertos pelo gênio de Moacir Andrade.

O gênio desse monumento vivo recorda sua própria vida dos rios amazônicos, misturando ficção e realidade, memória e imaginação, temperamento exuberante nas alegrias e tristezas, na fortuna e na pobreza, na justiça e na injustiça, que não constrangem seu modo de ser extremamente humano, nem na vida, nem na literatura. Tomado de orgulho e amor pela vida selvática da Amazônia onde passara toda a sua infância e parte da sua juventude, ao tornar-se uma celebridade o universo dos pensamentos volta às origens, dando dimensões épicas aos coronéis dos seringais amazônicos.

Moacir Andrade, com a sua coragem respaldada pela roupagem de aço de seu patrimônio cultural, inova a crônica brasileira e, comovido, seu magistério tem sido marcante no atual florescimento do gênero entre nós. Quase que exclusivamente cronista, suas incursões no terreno do conto e da poesia são marcantes e legou Moacir Andrade nas suas melhores páginas redimir a crônica da efemeridade do jornalismo para dar-lhe o sentido de permanência da literatura.

Mestre no seu ofício, ao descobrir o lado significativo dos acontecimentos mais triviais, ele comunica suas descobertas ao leitor numa prosa de admirável simplicidade e precisão, cujo teor poético advém menos de recurso do metiê do que da visão essencialmente lírica das coisas. Com uma humanidade que se guarda sempre da efusão sentimental e uma ironia que jamais desliza para a rasteira agressão, Moacir Andrade, nas suas crônicas, celebra o gosto de viver em plenitude o momento que passa – plenitude a que a memória de infância e mocidade e a recordação dos amores platônicos, idos e vividos servem para temperar o indispensável travo de uma melancolia.

Os diálogos, os monólogos de suas cartas ficcionais, são de grande importância para a História da Cultura Brasileira ou Historiografia Brasileira, pelo que representam de inteligente observação de nossa incipiente sociedade ainda com ranço do colonialismo português, catalogando, exaltando e registrando os recursos da terra. Essa postura de flagrante brasilidade, defendida por Arthur Cézar Ferreira Reis, em que a linguagem é simples, apesar de certa tendência à retórica e ao exagero adjetivo, está presa ao barroco, ligando-se ao estilo de vida antiga, de que é vivo testemunho.

Portador de uma simpatia irradiante, vi-o pela primeira vez nos corredores da universidade. Fomos contemporâneos na Universidade Federal do Amazonas, eu, professor de Filosofia, e Moacir Andrade, de Desenho Técnico e Educação Artística. Irrequieto, Moacir Andrade parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre participando de eventos e promoções de natureza cultural, com o objetivo de despertar nos seus alunos o interesse pelas coisas do espírito e sendo o principal elo da cadeia da congregação comunitária.


Pintor, poeta, escritor, jornalistas, antropólogo, professor e um excelente conferencista, Moacir Andrade passou a ser na faculdade onde estava agregado um líder insofismável. Quando foram abertas as inscrições para diretor do Departamento de Artes da Faculdade de Ciências Humanas na Universidade Federal do Amazonas, dois ou três candidatos concorreram à vaga e o medo deles é que Moacir Andrade também fosse um dos pretendentes, por isso fizeram uma sórdida campanha contra o artista que nem de longe estava interessado na tertúlia.

Quando eu o conheci, Moacir Andrade já era uma personalidade de renome internacional sendo alvo quase que diariamente de reportagens da imprensa escrita, falada e televisionada. Apesar de ser convidado várias vezes, ele jamais quis participar do Conselho Superior da Universidade, mesmo porque eu sempre o vi como um verdadeiro embaixador cultural do Amazonas, da Amazônia e do Brasil.

Certa vez, ele recebeu do Ministério das Relações Exteriores um convite honroso para ficar à disposição daquela pasta de comum acordo com o Ministério da Educação e Cultura onde estava agregado. A carta chegou num dia e no dia seguinte Moacir deu entrada no protocolo da Reitoria e em seguida viajou. Somente 15 dias depois a carta chegou às mãos da comissão administrativa para ser aprovada. Um elemento do Conselho Superior vetou as pretensões contidas na carta alegando que o pintor viajara para o exterior sem a devida permissão da universidade e, inclusive, abriu um inquérito administrativo contra o artista, pedindo a sua exoneração por flagrante abandono de emprego.

Achei que a atitude daquele mestre era um gritante absurdo, considerando que aquela disponibilidade era de alto valor para o Amazonas, pois Moacir ficaria a disposição daquele ministério por tempo indeterminado e com percepção integral de seus vencimentos, para cumprir no exterior a missão de alto nível cultural, realizando exposições e conferências nas universidades dos países para onde fosse designado e que a universidade deveria fazer era outorgar ao artista não uma simples demissão mais um título merecido de Doutor Honoris Causa, considerando que em toda a história do Amazonas não existe registro de que nenhum artista amazonense tenha recebido tão importante honraria. O inquérito foi arquivado e a missão aprovada por unanimidade pelo Conselho Superior da Universidade do Amazonas.

Altamente prestigiado pelas autoridades da cultura nacional, mercê das inequívocas qualidades de professor, conferencista, escritor, jornalista, poeta, pintor e desenhista, Moacir Andrade tornou-se um ícone, um sábio, um monumento da nossa inteligência, cujas glórias conquistadas só dignificaram o Amazonas e o Brasil.

Além de pintor emérito, Moacir Andrade tem escrito obras de alto valor antropológico e de caráter social. Por outro lado, não se deixa prender exclusiva nem diretamente por qualquer das estéticas em moda, de todas podem ser encontradas resquícios em sua obra monumental, num ecletismo que dá asas à opiniões diversas. Em certa medida, Moacir Andrade é fruto exclusivo da sua poderosa imaginação transfiguradora que nem sempre o guia para o melhor porto. O seu estilo, a sua linguagem, é outro aspecto peculiar e muito próprio.

Dono de um riquíssimo vocabulário, ele procura sempre usar o termo preciso, exato para determinadas sensações num turbilhão verbal que não conhece fronteira. O culto da forma traduz um estilo de estertor puro e o esteticismo o faz frágil diante de tudo quanto for motivo de beleza ou nela puder transformar-se. De toda a numerosa e variada obra de Moacir Andrade, formada de novelas, contos, fábulas, crônicas, lendas, narrativas, apólogos, reminiscências, baladas, confissões, teatro, poesia, todas elas ocupam situação proeminente no universo literário brasileiro, guiando-o para o pódio dos campeões da inteligência planiciária onde nasceu, cresceu, tornou-se sábio e vive para gáudio da nossa felicidade.

Moacir Andrade fez parte integrante do grupo de jovens intelectuais que inaugurou em Manaus o conhecido Clube da Madrugada no dia 24 de novembro de 1954, onde fez parte não como pintor, que já era conhecido desde a década de 1940, mas como poeta onde publicou o seu primeiro poema intitulado “Benedita”, com o qual ficou conhecido na cidade, graças a divulgação que fez, declamando esse poema nos vários eventos onde participava e participa até hoje, guiado pela sua potente saúde de um septuagenário.

A vitalidade da obra poética desse gênio caboclo, grande poeta da nossa modernidade, é indicada desde logo pelos acidentes estéticos de sua fortuna. Nesta locução de caráter puramente afetiva ou rasteiramente ideológico polarizam com empenhos de desmistificação de um rigor analítico que mal lhe esconde, amiúde, a parcialidade e as prevenções. Tal radicalização de posições críticas indica, por si só, o alto grau de representatividade de Moacir Andrade, cuja matéria enfeixa, numa espécie de pós-facio as linhas de forças essenciais de nossa poesia contemporânea. Sem ser um inventor, Moacir Andrade sabe, no entanto, dar às palavras, o tom, a leveza, a grandiosidade que elas representam. A vitalidade da obra desse portentoso artista, grande poeta do nosso atualismo estético, é indicada pelos críticos dessa loja, um esteta da palavra.

Moacir Andrade é um poeta do auge do nosso modernismo e que juntamente com outros companheiros do Clube da Madrugada fundou, em 1956, a revista “Madrugada”, em Manaus, de quem foi um dos mais destacados redatores. No primeiro número dessa revista original, ele publicou o seu famoso poema “Benedita” que teve enorme repercussão. Estou convencido de que ele é um dos raros poetas modernos do Brasil cuja verve político-social se alça ao nível de poesia cristalizada e expressa numa linguagem coloquial e extremamente profunda. Sua emoção, quando coletiva, transfunde-se em obras que ostentam peremptório poder das palavras.

No instante em que propõe a construir seus poemas, Moacir Andrade vai buscá-los nos abismos incomensuráveis do seu privilegiado subconsciente à luz de seu espírito fartamente iluminado pelos deuses. Moacir Andrade jamais deixou de ser um escritor em poesia, isto é um artesão consciente e lúcido de sua potencialidade. Daí o fato de ter influído nos poetas mais jovens do Amazonas, não só pelo fundo, como uma razão de vários pormenores de fatura do poema.

O polimorfismo desse gênio caboclo dividiu o seu tempo em atividades várias no campo intelectual, incluindo a poesia, a ficção, a crítica literária, a crítica de artes plásticas, a museologia, o folclore, o jornalismo, a crônica social, o conto e, principalmente, o conferencismo, onde atua permanente como professor dedicado. A sua obra como folclorista manifestada em vários livros já publicados e esgotados com certeza terá a eternidade das grandes obras de arte literária, com funda repercussão em nossa metodologia do assunto, alargando consideravelmente, ao mesmo tempo, o conhecimento do nosso riquíssimo populário. Como musicólogo, jamais escreveu as centenas de músicas que criou e que se perdeu na absoluta falta de exercício. A sua obra capital, entretanto, concentra-se na literatura, onde surge como uma das figuras exponenciais, capitais, extremas das letras brasileiras.

Ao longo de toda sua longa história – hoje Moacir está com quase 80 anos –, ele aparece, como já falei, em 1954, com o Clube da Madrugada, onde ainda se encontra sob a influência de seus pares, poetas de primeira linha. Na ficção, Moacir Andrade produziu um livro ainda não publicado, “No Tempo dos Coronéis”, onde incluiu contos, crônicas e cartas, tudo isso com sabor de ficção. Na sua primeira narrativa, utiliza um processo livre, em que as cenas objetivas fazem suceder digressões concebidas dentro de um espírito entre jovial e humorista, desenvolvendo-se caprichosamente pelo fio do entrecho.

Usando de sua genialidade inesgotável, Moacir extrai poesia de textos aparentemente apoéticos dando como exemplo os fragmentos dos nossos primeiros cronistas, enumerações de títulos de livros ou de paródias de poemas. A poesia adulta e forte de Moacir Andrade que muitos críticos colocam na geração de 45 é intimista, com uma pungente saudade da infância e do tempo perdido. Embora tenha participado na sua juventude de um grupo cuja preocupação é o verso, escondido com perfeição, o melhor de seu lirismo reside nos versos que, escritos ao correr da pena, transbordam de emoção e sentimento.

Mas o prestígio que desfruta vem da qualidade ímpar de suas crônicas, tendo como assunto o tipo humano, ingênuo, suas glórias e aventuras, suas miudezas que fazem ainda suportável a vida: a criança é seu universo, o homem bom e amoroso, a jovem ou o adolescente, eis a matéria de um dos mestres da crônica da nossa literatura. Para se ter uma ideia da grandeza criativa estética e humanística desse gênio da nossa literatura e da nossa arte em geral, leia esses versos: “Na praia/ Os barcos acendem ventos e mensagens/ E seus mastros são diálogos mudos/ Conversas abissais de cordas e velames / Nos cilíndricos corpos de madeira/ Escorrem frias antigas agonias de marinheiros mortos/ Os compridos mastros/ Parecem silêncios abissais/ Dançando ao mar na volta sem retorno.”

Um olhar superficial sobre a ciclópica obra poética de Moacir Andrade, toda ela passada na região de seu nascimento, situa-o entre os regionalistas brasileiros de maior repercussão, mas a sua obra ultrapassa esse limite ao aproveitar uma tradição mágica brasileira, que inclui os mitos indígenas e urbanos. Com esse material, Moacir Andrade produz uma ficção que se assemelha aos grandes nomes da literatura nacional. Poeta de formação parnasiana, ele pertence a uma geração em que as normas da escola renascentista perderam o sentido, deixando-se influenciar pela fluidez simbólica. Ficou, entretanto, mais parnasiano do que simbolista. Em sua poesia, em que evoca o mundo amazônico em todas as suas mudanças e pelo qual também perpassam o material Nordeste (seu pai era nordestino), predomina o senso do objetivo sobre o sentimento do subjetivo, a nitidez dos objetos externos sobre a névoa das reflexões internas.

Moacir Andrade é, sem duvida, dentre os nossos pensadores, um dos que souberam granjear maior notoriedade e mais atenção da crítica, culminando em melhor lugar do pódio das letras nacionais no campo da prosa como já me referi. Extensa e valiosa é a sua obra. Ele é um excelente memorialista, cronista, contista, conferencista, exímio contador de histórias e crítico literário. Nos seus monumentais livros de memórias estão vívidas as evocações de seres e ambientes, coisas e acontecimentos, através de uma linguagem farta e precisa.

Nas crônicas, há riqueza de emoção, não de toda expurgada de alguma concessão ao sentimentalismo fácil, com endereço ao leitor de jornal, a que se destinavam originariamente. Seus contos fixam aspectos do sertão amazônico, ora põem em movimento personagens urbanos, sendo que a alguns não faltam toques mórbidos e a outros não carecem de características de apólogos: todos se banham de técnica e concepção realista. A sua crítica literária tem uma forma mista, impressões de leituras se misturam com reminiscências, considerações sobre a obra se alternam com conceitos de ordem geral, às vezes entremeados de digressões, nunca, porém, a ponto de pesarem sobre o texto.

Moacir Andrade tem uma ampla visão romântica de suas obras escritas, tira suas histórias do real imaginário, filão inesgotável no oficio de escrever, o livro está despido de erotismo balofo e de experimentalismo o que não é comum nos dias que passam. Mas as paixões se entrecruzam. E, com isso, cria-se uma saga destinada a pessoas sensíveis delicadas, poéticas, emocionais, empáticas que abominam a violência, seja ela física ou verbal, as agressões aos valores perenes e aos ideais humanitários. Quando Moacir Andrade cresce em significação é exatamente quando está situado em seu contexto estético geracional. O contexto que entre nós acolheu os novos que surgem como poetas nos anos atuais, dando voz aos grandes problemas que tumultuam o mundo, que a guerra viera abalar. Poetas que em diferentes graus, se submetem às exigências formais de um neo-parnasianismo ou de um neo-simbolismo ainda atuantes, nesse inicio do novo século.


Moacir Andrade é um revolucionário, um anarquista, um inovador da palavra. Dentro do processo de renovação cíclica que o mundo vem sofrendo, experimentando, vivendo, através dos milênios, mais uma vez a palavra criadora fez emergir dos caos um novo mundo, uma nova aspiração, uma nova experiência à mais absoluta desordem. É essa revelação essencial dos poemas de Moacir Andrade. Como? Perguntaríamos – em que sentido esse fenômeno é vinculado pela poesia, de que destruição, de que caos fala a sua poesia? Qual a nova ordem que vislumbra? Quais as dimensões dessa palavra? Muito fácil defini-la com brevidade, pois ela representa uma enorme multiplicidade de problemas: Suas opções estéticas e relações com a vanguarda, seus processos de metaforização ou transfiguração da realidade, sua função de arauto de um novo modo de ver o mundo ou de estar nele, a natureza de seu sistema de símbolos: seu universalismo e brasilidade, sua problemática essencial que se identifica com as linhas de força destes tempos de intensas mutações.

Em sua multiforme problemática destaca-se um dos imperativos do poeta contemporâneo a reflexão sobre o processo criador ou sobre a natureza da poesia hoje. Na década de 1960, Moacir Andrade publica uma espécie de manifesto no âmbito da Universidade do Amazonas, manifesto teórico, no qual retoma a palavra total defendida pelos grandes poetas do passado, mais exatamente do século XIX e propõe o totalismo poético, processo de criação que se desenvolve através da variação pluridimensional dos temas, tendo como centro a figura do homem contemporâneo, observando-o através de sua gênese, de sua ação e finalidade última.

A mesma visão global deve ser aplicada à parte formal do poema. O poema-em-bloco é feito antes de tudo e somente de palavras. Estas juntam-se em blocos, constituindo universos completos, relacionados entre si e admitindo infinita capacidade de ligações. Um poema nunca está completamente terminado, prendendo-se aos anteriores ou aos que virão depois. Concomitantemente, em si, representa uma unidade. Essa noção universal de poesia global corresponde à unidade. Essa noção universal de poesia global corresponde à noção de ser humano como parte integrante responsável pelo todo cósmico a que ele pertence. Noção que a pós-modernidade defende. Mas, como todos os poetas contemporâneos, a de Moacir Andrade é uma poética em processo evolutivo.

Dominando com maestria as infindáveis labirínticas falas de seus versos, a arte de Moacir Andrade resulta de uma verdadeira alquimia verbal que funde o puro prazer de lidar com a palavra com o arguto pensar crítico-filosófico-mistíco e uma amorosa comunhão com o outro, identificando com as grandes vozes da literatura universal. Essa alquimia verbal visa envolver o leitor na aventura da escrita que o desafia a decifrá-la. A sua polimorfia literária, a sua robusta e dinâmica proposição aos estudos da poesia e da prosa, fizeram de Moacir Andrade, se não um dos maiores talvez o maior intelectual de toda a Amazônia. Valendo-o do rigoroso instrumental teórico para balizar a escrita e a montagem do complexo material pesquisado, o autor vai às fontes vivas da memória mitológica e folclórica de sua terra que guardam avaramente nos meandros das tradições, os segredos das origens e história, e às fontes documentais. Não é fácil decodificar esse esteta de múltiplos saberes, embora se conte com a colaboração pessoal do próprio ícone para se exumar os recônditos de sua alma e o fausto documentário da sua vida cultural. Por isso, vou ficando por aqui. Até mais.


Demosthenes Ribeiro Carminé morreu, aos 71 anos de idade, no final da tarde do dia 6 de janeiro de 2011. Autor de obras literárias e filosóficas, era membro da Academia Amazonense de Letras desde 2005, ocupando a cadeira 17, de Francisco de Castro. Diabético, ele estava internado no Hospital Nilton Lins, zona Centro-Sul de Manaus.

Demosthenes era conhecido no mundo artístico como Dedé Carminé, atuando como cantor/compositor. Ele chegou a fazer parte da equipe da Rádio Baré na década de 40 e, durante passagem por Minas Gerais, fez parte do movimento “Solar da Seresta”, de Belo Horizonte. O gosto pela música levou Dedé a ajudar na criação do programa “Carrossel da Saudade”, ainda no ar na Tv Cultura do Amazonas. Carminé também foi seguidas vezes convidado a ser jurado no desfile das escolas de samba de Manaus.

Pelos relevantes serviços prestados à sociedade, Carminé recebeu a medalha “Rodolpho Valle”, da Câmara Municipal de Manaus. Entre seus livros mais conhecidos está “Terezinha Morango – Cinderela Amazônica”.

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