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segunda-feira, maio 22, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (3)


Por Jefferson Peres

Se a classe média residia, quase toda, no centro, não o fazia, porém, com exclusividade. Uma parte da população pobre também habitava dentro do perímetro central, alojada em cortiços, chamados popularmente de “estâncias”. Nesta acepção, aliás, um regionalismo, porque fora daqui nunca o vi empregado nesse sentido.

Eram encontradas às dezenas em toda a cidade, dentro de amplos terrenos, com as casas de madeira, de dois ou três cômodos, contíguas, às vezes formando ruas internas. Ocupadas por famílias de seis ou mais pessoas vivendo em promiscuidade, com banheiros coletivos e separadas por tabiques que não permitiam a menor privacidade.

Alugadas por proprietários, geralmente portugueses ou espanhóis, não faziam quaisquer melhoramento nas casas, mas davam a seus ocupantes, no entanto, a vantagem de não depender de transporte para trabalhar.

Os homens eram operários de oficinas, serventes ou contínuos de repartições públicas, balconistas de lojas ou, ainda, vendedores ambulantes. As mulheres, quase sempre lavadeiras, atendiam à vasta clientela das redondezas.

Numa época em que não existia uma lavanderia sequer na cidade, nem eram conhecidas as máquinas de lavar, as famílias de classe média dependiam quase inteiramente do serviço dessas mulheres.

Às segundas-feiras, elas ou seus filhos vinham receber a roupa suja, que era amontoada em grandes trouxas, formadas por lençóis amarrados pelas pontas. Aos sábados, era trazida de volta, lavada e passada, cuidadosamente arrumada em tabuleiros.

Outras, ainda, completavam a renda familiar costurando para fora, especialmente roupas de crianças e camisa masculinas.


As crianças, além de ajudar as mães, frequentavam o grupo escolar mais próximo, juntamente com os filhos das famílias de classe mais elevada, com os quais partilhavam as mesmas brincadeiras.

As turmas de rua eram heterogêneas e até a adolescência não havia discriminação social. A meninada toda se confundia numa grande festa democrática.

Apesar de a sociedade ser preconceituosa, a proximidade física e o espírito de vizinhança tornavam quase impossível a separação.

A sociedade adotava padrões de comportamento rigidamente vitorianos. Na mente de todos havia clara noção do bem e do mal, do certo e do errado. Os valores estabelecidos nunca eram desafiados abertamente. Quando violados, as aparências deviam ser mantidas a todo custo, sob pena de sanções sociais, às vezes ostensivas, às vezes dissimuladas, mas sempre eficientes.

A família era do tipo patriarcal, centrada na figura do pai, cuja autoridade não merecia contestação. A mãe era respeitada, ouvida, mas as decisões cabiam ao marido, ao qual manifestava inteira submissão.

Tratava-se de um problema de ordem cultural, para o qual concorria grandemente a dependência econômica da mulher, que geralmente não possuía fonte de renda. Contavam-se nos dedos as mulheres casadas que trabalhavam fora de casa, e muitas que tinham emprego quando solteiras, pediam demissão depois de casadas, por imposição dos maridos.


Para uma senhora da classe média, trabalhar implicava em perda de status, além de atrapalhar as suas funções principais, que consistiam em administrar o lar e cuidar do marido e dos filhos.

Algumas recebiam mesada para suas despesas pessoais; e outras tinham de recorrer aos maridos a cada vez que precisavam atender às necessidades mais corriqueiras, como pegar o bonde ou tomar um sorvete. Sair, só com autorização e acompanhadas, nem que fosse com uma empregada.

E havia aquelas, vítimas de maridos ciumentos, que viviam reclusas e raramente eram vistas, a não ser em companhia dos próprios. Alguns eram tão rigorosamente possessivos e autoritários que até escolhiam os vestidos das mulheres.

A sociedade conjugal era indissolúvel, de direito e de fato. Mesmo quando já não existia vida em comum, o casal continuava coabitando.

Conheci um desses casos levado ao extremo. Um cidadão português, comerciante, foi flagrado pela esposa na cama com a empregada, dentro de casa. Desde esse dia romperam relações, mas não se separaram. Comunicavam-se através dos filhos, durante anos, e morreram sem se falar.

Outros possuíam amantes teúdas e manteúdas, mas continuavam oficialmente com a esposa, única com a qual se apresentavam em público. A separação só ocorria por motivo muito grave, quando a vítima era o marido. 

Então a esposa discretamente saía de cena, quase sempre mudando-se para outra cidade, porque se tornava insuportável, em seu meio, a condição de mulher largada.

E quando o marido ultrajado reconstituía o lar com uma outra, esta, por mais digna que fosse, se abstinha de vida social, para não causar constrangimentos. Porque só eram aceitas sem restrições as esposas legítimas. As uniões de fato eram apenas toleradas.


Ouvi falar vagamente de manifestações de hostilidade aberta, mas nunca as presenciei, nem soube de fatos concretos. Ao que parece, havia, sim, gestos sutis ou mal dissimulados, que deixavam clara a desaprovação.

Por outro lado, a educação conservadora que haviam tido gerava nessas senhoras um forte sentimento de culpa por haver desafiado tabus religiosos e sociais. Daí o modo de vida que se impunham, discreto, recolhido, limitando-se as relações ao convívio de um número reduzido de parentes e amigos, sem dar pretexto à mais leve censura.

O relacionamento no seio da família era respeitoso. Os filhos, mesmo na idade adulta, davam aos pais o tratamento de Senhor e Senhora. Antes de deitar, as crianças, obrigatoriamente, iam pedir a bênção ao pai, à mãe e aos avós. Hábito que continuava a ser cultivado pelos filhos casados, que passavam diariamente na casa dos pais, também para tomar a benção.

A obediência era absoluta. Dificilmente um filho menor ousava a ser malcriado. As repreensões eram ouvidas em silêncio, do contrário o castigo viria na forma de cinturão, chinelo ou palmatória. Ou ainda, com a privação de divertimentos, como a proibição do cinema aos domingos.

Fumar na presença dos pais era impensável. Neste particular, nem os mais liberais, como meu pai, por exemplo, costumavam transigir.


Certa ocasião, um dos meus irmãos mais velhos, com dezesseis ou dezessete anos, por inadvertência ou para testar o velho, puxou o cigarro e o acendeu. Meu pai, sem alterar a voz, fulminou: “Apague isso. Da próxima vez você vai engolir o cigarro”.

A ordem foi obedecida imediatamente, com um pedido de desculpas, e não houve próxima vez, porque meu irmão jamais repetiu a dose. E havia os mais intolerantes, que não admitiam que os filhos fumassem em qualquer idade.

Lembro-me do Augusto Careca, um dos frequentadores do Café do Pina, com mais de trinta anos e uma calvície acentuada, que lhe dava um ar de quarentão. Muito tímido, mesmo nessa idade, tremia em presença do pai autoritário e repressor. Era uma gozação geral quando o velho, um português alto e sisudo, assomava à distância de 100 metros, e o Augusto, mais do que depressa, se livrava do corpo de delito, mal disfarçando o temor e o embaraço de que ficava tomado.

Palavrão era coisa proibida para mulheres e crianças, ou em suas presenças. Era permitido apenas aos homens adultos em rodas masculinas. Os menores do sexo masculino também o empregavam comumente, mas nunca na frente de adultos, sob pena de castigo. As mulheres de qualquer idade não o usavam em circunstância alguma.

Não me lembro de ter ouvido nomes feios ditos por minha mãe, minhas tias, minhas irmãs, minhas primas, amigas e namoradas. Era algo que nivelava as mulheres a prostitutas. Tão indecoroso, que um palavrão, proferido em presença de moças e senhoras, provocava violentas reações de pais, maridos e namorados ofendidos que não vacilavam, muitas vezes, em agredir fisicamente o ofensor.

E não era raro encontrar homens que, mesmo longe de mulheres, jamais usavam palavras chulas.

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