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quarta-feira, maio 31, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (33)


Por Jefferson Peres

No final dos anos 40 um grupo de adolescentes começou a se reunir no porão da residência de Anísio Mello, na Rua Dr. Moreira. Tinham entre si uma grande afinidade: eram todos poetas. Chamavam-se Carlos Farias de Carvalho, Jorge Tufic, Alencar e Silva, Luiz Bacellar, Antísthenes Pinto e Guimarães de Paula. Ainda seguiam as escolas romântica, parnasiana e simbolista, e eram cultores de Castro Alves, Bilac e Cruz e Sousa.

Em 1951 o grupo se separou, quando Farias, Alencar, Tufic e Antísthenes empreenderam uma viagem ao sul, a fim de entrar em contato com os meios culturais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Na Paulicéia conheceram casualmente Ramayana de Chevalier, então assessor de Adalberto Vale, presidente da Prudência Capitalização, uma poderosa empresa do ramo de seguros. Graças a Ramayana, conseguiram o apoio financeiro de Adalberto e estenderam a viagem até Porto Alegre, de onde retornaram a Manaus. A viagem entusiasmou-os tanto que, dois anos depois faziam outra com destino ao eixo Rio-São Paulo.

Na segunda foram Alencar, Tufic e Guimarães, que já encontraram Antísthenes no Rio. Outra vez de volta a Manaus, chegaram definitivamente rompidos com os cânones acadêmicos e dispostos a empreender em nossa terra um movimento de renovação cultural. Faltava-lhes, porém, o instrumento adequado a ser utilizado na execução do projeto, pois eles continuavam a se reunir em bares e porões, para discursões muito proveitosas para eles mesmos, mas sem nenhuma repercussão no meio.

Em 1954 um outro grupo de jovens, com preocupações principalmente políticas, decidiu certa noite, num banco da praça da Polícia, fundar uma associação de estudos políticos, sociais e literários. Tomaram parte da reunião Saul Benchimol, Francisco Batista, Theodoro Botinelly, José Trindade, Luiz Bacellar, Farias de Carvalho, Fernando Collyer e João Bosco Araújo.

Por sugestão de Saul, a agremiação adotou o nome de Clube da Madrugada, tanto pelos hábitos notívagos dos seus fundadores, como pelo caráter simbólico da palavra, a prenunciar um novo dia no panorama cultural da terra. E, a partir daí, passaram a se reunir todos os sábados, sempre no mesmo lugar. Logo, porém, tiveram ingresso os outros poetas da Rua Dr. Moreira, Alencar, Tufic, Guimarães e, um pouco mais tarde, Antísthenes, Luiz Ruas, Elson Farias e Ernesto Penafort, enquanto alguns dos sócios fundadores iam-se afastando gradativamente.



O Clube perdeu seu caráter eclético, sugerido na proposta original, para se tornar mais homogêneo, adquirindo uma feição nitidamente artístico-literária. Foi esse grupo de poetas que lhe imprimiu a marca e lhe traçou o rumo. Não só poetas, mas também ficcionistas e ensaístas, muito deles, aos quais se juntaram outros, como Ernesto Pinto Filho, Arthur Engrácio, Francisco Vasconcellos e Aluísio Sampaio, além de artistas plásticos, como Moacyr Andrade e Afrânio Castro, e musicistas, como Nivaldo Santiago e Pedro Amorim.

Estava deflagrado o movimento que iria provocar importantes transformações na literatura e na arte e nosso Estado. O sopro vivificador, ao subverter os valores estéticos, renovou profundamente em termos de linguagem, temática e estilo. Essa renovação continuou, por três décadas, até meados dos anos oitenta, apenas sem o ímpeto e a iconoclastia da fase inicial. 

Talvez o segredo do Clube seja explicado pela sistemática recusa que seus membros sempre opuseram às tentativas de transformá-lo numa entidade convencional. Nunca foi possível confiná-lo entre as paredes de uma sede ou aprisioná-lo na camisa-de-força de um estatuto.

Quem sabe por isso, não se burocratizou nem estagnou, continuando a fluir com suas águas oxigenadas, livremente, como um rio. Alegro-me de haver tomado parte nesse movimento, desde o início, praticamente, pois nele ingressei dois anos depois de sua fundação. Durante algum tempo exerci militância firme, enquanto alimentei pretensões literárias. Ocorre que essas ambições se exauriram com os sonetos da juventude.

Quando adquiri autocrítica suficiente para reconhecer que meus poemas eram definitivamente medíocres, decidi parar, livrando a arte poética de novos ultrajes. E, aos poucos, fui deixando de frequentar o Clube. Mas nunca formalizei meu desligamento. Nem poderia fazê-lo. Identificado com suas origens, ligado afetivamente à maioria dos seus membros, sinto-me preso ao Clube por amarras que nem o tempo nem o distanciamento físico poderão jamais dissolver.

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