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sábado, junho 24, 2017

Somos todos parentes, parente?


Por Carlos Henrique Magalhães e Silva (*)

Minha mãe é uma índia da etnia Wapixana, nasceu na maloca do Xumina, ao lado da maloca da Raposa, no extremo leste da Terra Indígena da discórdia entre brancos e índios: a Reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, que ganhou espaço na mídia nacional por virar objeto de antagonismo entre partes envolvidas e interessadas e outras nem tanto! Digo isso porque a discussão envolveu, na época, inclusive pessoas cujo único propósito era a autopromoção.

Quando me pego refletindo sobre isso é porque carrego, talvez, um sentimento de culpa de não ser completamente solidário com a causa indígena e porque talvez o que restou de índio em mim corresponda somente à carga genética que herdei. Minha mãe ainda cultiva alguns costumes completamente compreensíveis de sua ascendência, apesar de hoje já ser inteiramente urbanizada.

Ainda gosta de comida apimentada ao extremo, comer carne de sol com xibé (farinha de mandioca misturada com água ou leite) e peixe todo santo dia, entre outros; mas também gosta da programação da TV por assinatura, que julga mais divertida, e nem pensa numa vida sem luz elétrica e água gelada. Será que existe algum problema nisso?

Li recentemente uma reportagem onde um dos seguidores dos irmãos Vilas Boas relata que após uma ausência de 15 anos voltou ao Xingu e se surpreendeu com os antigos amigos índios em roupas “brancas”, camisas e calções da Seleção Brasileira de futebol, e perguntou: “Vocês abandonaram seus costumes de andarem nus e agora vestem as roupas dos homens brancos?” e lhe responderam: “E você, porque não usa mais as roupas do tempo de Cabral?”.

Creio que o amigo índio quis dizer é que não existe nada de corrupto em assimilar algo que lhe traga mais conforto. Uma coisa é a preservação dos costumes e da cultura, da medicina, da culinária, dos ritos festivos e crenças, etc., e outra completamente diferente é abrir mão do crescimento que vem da miscigenação e do usufruto daquilo que queremos e gostamos. Não existe nada de errado em usar o Google ou outro meio de pesquisa da Internet e nem em ter opção de escolha na programação da TV por assinatura.

Sou suspeito, no entanto. Ao mesmo tempo em que me apego ao sentimento preservacionista do índio insistente em mim, não consigo abrir mão das benesses da urbanidade. Meu espírito sangra com as notícias de não sei quantos campos de futebol de matas virgens dão lugar às plantações mecanizadas por dia, que assisto nos telejornais, porque estou convicto que poderíamos viver com menos. Já pensaram que existem plantações de arroz na China que são do mesmo tamanho há milhares de anos?

Não tenho nenhuma dúvida de que os nativos brasileiros têm paixão pela sua terra, e que cuidam dela com muito mais zelo que a maioria. Isso é próprio do indígena: pescar só o que vai consumir, preservando os estoques pesqueiros na certeza de aquilo poderá faltar no futuro caso seja explorado em demasia; caçar só o suficiente para o sustento da família, na firme certeza de agindo assim suas fontes de proteínas estarão garantidas; desmatar somente a parcela que a natureza não reclamará, enfim, se orientar pela certeza que seus descendentes também têm o direito de usufruir dos recursos naturais que ele mesmo já desfruta. Isso não é a ideia de Sustentabilidade?

Ainda não me dei por derrotado. Sou naturalmente otimista! O respeito que tenho por essas ideias me guia na certeza que podemos fazer algo melhor por nosso planeta. Que poderemos dormir mais tranquilos sem ter pesadelos com tsunamis, enchentes, quedas de barreiras, neve nos trópicos e toda sorte de esquisitices de alterações climáticas (e tudo resultado da intervenção desajeitada do homem).

Poderemos sonhar com um futuro melhor se ressuscitarmos o espírito preservacionista que um dia todos tivemos, resgatarmos o índio primitivo de cada um, pois se eles estavam aqui antes de todos, é razoável pensar que de algum modo todos somos parentes. Enfim, ser um pouco índio todo dia e não somente no dia 19 de abril.


(*) Carlos Henrique Magalhães e Silva é gerente geral da Agência Asa Branca, da Caixa Econômica Federal, em Roraima.

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