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sábado, setembro 23, 2017

Eu conheço esse cara


Por Ivan Lessa

Estou na bica de mandar uma bala na minha cabeça.

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Tiro o caderno de capa verde, em espiral, do bolso. Anoto lá: 13.8.06. E a hora em que pousamos no Galeão: 17 e 20. São 28 anos, seis meses e sete dias sem dar o ar de minha graça. Ausência é palavra muito forte para a paisagem vista lá de cima.

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O aeroporto está vazio e, para mim, novinho em folha. Minhas malas são as primeiras a surgirem no carrossel. O Rio não costumava me dar esse tipo de colher de chá. Alfândega, receita, polícia, chamem do que quiserem, mas são todos muito solícitos, embora com a indiferença que afeta os pobres que têm de trabalhar no domingo.

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No carro, a caminho do hotel, vou não reconhecendo nada. O que é um ótimo ou um péssimo sinal. Num certo ponto do trajeto, um fedorzinho familiar. Agora, sim. Mais adiante, lá em cima, um marco: Manguinhos? Igreja da Penha? Tanto faz. Toda minha fé está nas paisagens.

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Estou em plena Linha Vermelha. Pergunto pela Amarela. Há anos leio horrores sobre ambas. Bato no bolso do paletó conferindo passaporte e carteira. Aguardo a pista bloqueada, os meliantes armados saltando da murada e dando início ao saque das 6 da tarde. Pergunto pelos traficantes da favela da Maré, que costumam fechar as pistas para atravessar carregamentos de drogas e armas. Ninguém sabe do que estou falando. Ninguém viu o filme. E as balas perdidas? Parece que no sábado uma ou outra pessoa achou duas ou três, informa um companheiro.

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Não há bala perdida. Apenas desencontros.

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Olha aí, a paisagem continua impondo sua presença diante da equipe adversária: lagoa Rodrigo de Freitas. Quando publicitário, ajudei a vender muito apartamento com linhas mendazes: “Viva uma vida de luxo num recanto tranqüilo da Lagoa”. A mortandade trimestral de peixes ficava pelos arrastões das entrelinhas. Idem os ninhos de gaviões (até na Prudente de Moraes tinha), que atacavam residentes pacatos e, vez por outra, arrancavam seus olhos, como nas histórias de fadas. Continua bonitona a lagoa. Cresceu uns cinco ou seis andares.

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Amo hotel. Não conheço o Rio de hotel decente. As noitadas no — não citarei nomes — não contam. Aqui sou hóspede e não truão. Pelo menos até onde a criadagem (Nossa! Como tem criadagem nesta cidade. Voltarei ao assunto, se encontrar alguém alfabetizado e que conheça taquigrafia) é capaz de sacar ou dizer. Desfaço mala, chuveiro-me, vou para onde sou esperado por amigos.




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Quando me preparava para este pulo, peguei uma folha e comecei a escrever o nome de amigos e amigas que gostaria de rever. Preparava-me para encher ao menos um caderno de bom tamanho. Não chegaram a dez. Dou-me a desculpa de que morreram todos ou foram para Petrópolis ou Brasília. A verdade é que, mesmo morando nesta enorme (então bem menor) cidade, minha vida sempre se passou — a sério, para valer — entre uma dúzia de pessoas e outros tantos quarteirões. O resto era paisagem (ela de novo, sempre ela), pano de fundo, cenário para dar clima. Isso. O Rio era um clima. Ao menos, não me esborracho no lugar-comum do “Rio ser um estado de espírito”. Estado de espírito é agora, com sete mil homicídios anuais, onde antes só tinha Dana de Teffé, Crime do Sacopã, Caso Aída Cury, Fera da Penha e, essa última, sejamos francos, não podia ser mais classe operária. Pobre morria muito pouco e, mesmo em jornal vagabundo, com o mínimo de estardalhaço. Morriam feio, como sempre, mas baixinho. Agora, virou manchete. Pelo menos dura um dia só. Os dois jornais e 1/3 do Rio fazem aquele estardalhaço na primeira página e, dia seguinte, esquecem, não dão seqüência. Deve ser por isso que, até agora, com essa filmarada americana toda, não se conseguiu traduzir “serial killer” para, digamos, “assassino sequencial”.

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Mas eu estava entre os amigos, surpresa para uns, chatice para outros. Sim, estou bastante queimado. Sol de Cascais, no Estoril. Londres não dá para isso. Ninguém diz o que está pensando: “Como estamos acabados, meu Deus!”

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Procuro ser rápido no gatilho, que já o fui. Nada. Não me ocorre uma observação inteligente ou bon mot, conforme dois ou três ainda diziam, quando me mandei. Repito e ouço repetida a frase que nem por isso deixa de ser verdadeira: “Puxa, o tempo passa, hein?” E o coro, “É verdade, é verdade…”

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Na manhã de segunda-feira, maus amigos me levam à Visconde de Pirajá, dão-me refresco de açaí (aqui em Londres o indiano da esquina vende. É engarrafado e comercializado por uma indústria chamada “Monkee”) e, como o dia está bonito e beira os 28° neste inverno, decidem que devo ir à praia. Fazem com que eu compre uma sunga azul grotesca (de lycra, creio) e um par de havaianas, que os brasileiros juram ser invenção deles (não é). Depois de fuçar duas livrarias empostadíssimas, vou mudar de roupa na casa de um deles que, como todo mundo que é gente, mora na Vieira Souto, o metro quadrado mais caro do mundo, conforme gostam de se gabar os brasileiros (não é).

É biboca após biboca na Visconde de Pirajá. Todas aos urros, aos berros. Coisas escritas. Em acrílico, nos toldos. Farmácia, drogaria, butique. Não sabem, mas estão todas liquidando. Papai Noel ficou maluco, é hoje só amanhã não tem mais, salvados do incêndio. Isso, incêndio. Estão todas em plena conflagração comercial e não o sabem.

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De sunga azul de lycra (o pissilone é indispensável) e havaianas, as ilegítimas, vou à praia. Ali por volta da Montenegro e Joana Angélica. Pela primeira vez na vida, acho, sem camisa com maço de cigarro e isqueiro no bolso. Olho para baixo e nada. Estou assexuado. Uma vergonha. Confesso-me ao companheiro e, dando um toque de erudição e humor, conto a história de Hemingway, que um dia cismou de botar roupa de toureiro e ir treinar numa tourada. Olhou para baixo e, tal como eu, neris de pitibiriba — e parece que Papa era bom de pitibiriba. A. E. Hotchener, seu amigo e mais tarde biógrafo, consolou o escritor: “Dominguín usava dois lenços, Hem.” Sem lenço, sem documento, mas nunca um Caetano, vou no meu doce balanço, caminho do mar.

Eu reconheceria esta areia em qualquer praia ou deserto do mundo. Primeiro, a relva tímida em torno dessa novidade dos quiosques. Depois, um ligeiro declive, areia pelando como psoríase, corridinha (ai!) até chegar àquela parte mais fina, varrida por ventos noturnos, onde se formam pequenas telhas, que, ontem, como hoje, dá para se ir arredondando até formar um biscoito com um furo no meio e, então, jogar nos outros meninos. Não faço isso porque tenho medo de apanhar. Por fim, a areia fofa, revirada por maquinário especial todas as noites (e os namorados?), assegura-me o companheiro. Faço-me croquete em dois segundos. Talvez seja a falta de lenços.

Eu reconheceria esta água em qualquer praia do mundo. Deixo-me afundar um pouco, já que o tempo do mergulho se foi, sinto o sal na boca e na narina, conto nas pernas as camadas da água. Uma mais fria até o tornozelo, depois mais morna perto das coxas, mais fria de novo na cintura. Não fico dez minutos na água.

Uma senhora tomou conta de minhas havaianas, as fajutas, e das chaves do companheiro. Um nordestino traz a água de coco com canudinho para a gente tomar. Gozado, eu só passei a apreciar, para valer, água de coco em Londres, onde só tem, quando tem, industrializada.

Cadê as bundudas? Cadê o arrastão?

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De tarde, acertando os fusos horários no hotel, vou ao caderno verde em espiral e hieroglifo uma outra pequena dúvida. Há um problema aqui e pela proa: o que fazer com estes dias? Onde botá-los depois? Foto não me diz nada. Confio tanto em palavra escrita quanto em nossa Constituição. Não tenho mais tempo para esquecer mais coisas.

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Há uma técnica para se deixar o país em que se nasceu, não chega a ser arte. Simples como o quê: seguir em frente e não olhar para trás, feito a mulher de Lot ou Orfeu. É imprescindível não recorrer nem à Bíblia (tem uma na gaveta da cabeceira) nem à poesia. Principalmente poesia. Em prosa, não contam Proust (com exaltado fervor), Fitzgerald, Thomas Wolfe, retratos de Itabira na parede e até o melhor e menos citado, Camões, que, em português de seus dias, e nossos ainda, escreveu, “a grande dor das coisas que passaram”. Via mais com um só olho o grande vate português do que nós com todos três.

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Confiro o frigobar, mexo em todos aqueles vidrinhos no banheiro, apalpo o exagero de toalhas e roupão de velour, abro a sacola de praia com suas recomendações antiassalto e subseqüente morte. Ligo e desligo a televisão. Estão todos tentando falar português e não conseguindo.

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Dizem as moças ancoradas a seus âncoras na televisão: “Pois é, Cláudio…”, “É isso mesmo, Fernandes…” Estão improvisando, dando naturalidade, interagindo, disseram para elas. Sempre e sempre pondo a ênfase na palavra errada, em geral um pronome possessivo. As âncoras começam a entrevistar autoridades como a prostituta — ou prostituto, estava escuro — no Jardim de Alá, “O Senhor quer fazer um amorzinho legal?” “São apenas 50 reais, senhor” Ô Senhor! O gênio da língua pede algo diferente, senhor nunca no fim ou no começo da frase. Isso é dublagem, sô! Um pouco mais de intimidade e é “seu” mesmo. “Seu” Manuel, quer fazer um amorzinho legal por 10 reais?, conforme se pergunta para o dono do armazém.

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Bengalo-me por um ou dois quarteirões da Vieira Souto. O verbo “bengalar” não existe, mas eu uso uma bengala e, como estou no Brasil, passa a existir. Aqui se inventa, aqui se dá asas ao homem, aqui se planta, aqui se dá. Mas eu me bengalava. Pego um táxi. Sugiro uma volta pela praia com voz tristonha de manco (para que não me assalte e mate), mesmo sentado no banco de trás. Peço que vá devagar. De onde dá para se ir, no Arpoador, aquele edifício pó de pedra, que era o único que driblava o gabarito de quatro andares (isso, como tudo mais, nunca ficou claro), até a subida para a Niemeyer, é uma jaula só. Pobres ricos, pobres elites, pobres classes dominantes: tudo vivendo atrás de grades, guardadas por nordestinos incompetentes com calça azul-marinho e camisa branca puídas. Visualizo as classes abastecidas, à noite, uivando em seu cativeiro. Os porteiros fingindo não ouvir, afiando suas peixeiras.

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Teve o muro de Berlim, há a menos divulgada muralha erguida por Israel e a ainda mais invisível Barreira da Orla Marítima Carioca. À noitinha, camionetas (chamam agora de “van”) passam pela Vieira Souto e Delfim Moreira e gritam nomes, para mim cabalísticos, que serão amanhã documentários e filmes premiados com palmas, leões de ouro e oscars: “Cunhataí, Serependi, Nove Cabeças, Xerebendim” e por aí afora. Tem gente, ou quase gente, entrando e indo. Parece que é a outra parte da vida deles. Parecem palestinos com sua trabalheira para — inevitável a construção verbal — irem trabalhar.

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Tenho que ter em mente duas ou três coisas que fazem parte deste meu périplo. Primeiro, que todo suicida volta ao local onde, indigitado e tresloucado, ateou fogo às próprias vestes. Segundo, que tudo que eu escrever poderá ser usado contra mim. Ainda, que aqui não reconheço nada e nada faz questão de me reconhecer ou conhecer.

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Qualquer pessoa com seus quarenta anos, não tem nada a ver comigo, nada terá a ver comigo, nestes dez rápidos dias. Quem tinha doze anos, ou por aí, quando peguei a Avenida Brasil e segui para o Galeão, é de uma nacionalidade outra, beira o alienígena. Meu negócio são cabelos brancos.

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Deve ser por isso que paro e olho para trás, ou para o outro lado da rua, quando vejo alguém de cabelos brancos. Digo alto, sozinho ou para quem quiser me ouvir:

— Eu conheço esse cara.

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Sempre no táxi, anoto algumas frases para logo mais no caderninho verde em espiral. Não há, neste passeio, esquina ou canto em que eu não tenha sido brutalmente infeliz ou estupidamente feliz. Em algum lugar alguém deve ter escrito que uma cidade é aquilo que dela se resolveu ver ou lembrar. Também que não é que a gente se lembre da cidade, é uma parte misteriosa e calada da cidade que se lembra da gente, mas finge que não, que não é com ela, que não sabe nada de nós.

E eu que tinha jurado para mim mesmo e meus patrocinadores que não tentaria em linha nenhuma ser “interessante”. Perdão, patrocinadores. Perdão, chofer de táxi. Por penitência, resolvo citar, atravessando o sinal verde do lugar-comum, uns versos do Borges: “Y la ciudad, ahora, es como un plano de mis humillaciones y fracasos.” E cuidado que ainda vem Jorgito por aí.

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Eu: “Casa da Feijoada”, “Delícia Tropical”. Tá certo. São nomes nossos, são nossos nomes. Agora, que frescura é essa de “Doncaster, “Nero´s Palace”, “Desir d’Argent”?

Chofer de táxi: O senhor é um nacionalista, estou certo?

Eu: (com medo de muita intimidade) Mais ou menos. Depende da nação.

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Na praia, para um moleque, pegando uma água de coco num quiosque, talvez minha 34ª em três dias:

Eu: Ei, garoto!

Garoto: Quequiqué?

Eu: Você é de assalto ou de drogas?

Garoto: Os dois.

Eu: (fechado em copas) Faz muito bem, meu filho. — E me mando.

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Essas minhas duas conversações mais interessantes em dez dias. Teve também uma apenas telefônica com a Clementina, empregada (gozado essa palavra me insulta um pouco) do Jaguar. O papo foi pessoal demais e não estou autorizado a reproduzi-lo sob qualquer forma.

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Gozado. A gente vê aquele Cristãozão lá no morro, o mar, as ilhas, o verde todo e, mentalmente, como um elevador, vamos fazendo uma musiquinha enlatada interna. Em geral, “Aquarela do Brasil”, “Onde o Céu Azul é Mais Azul”, “Corcovado”, “Garota de Ipanema”, “Rio de Janeiro”, “Valsa de uma Cidade”, por aí. Para ser franco, nada descreve melhor o Rio do que — quem diria? — o Aloysio de Oliveira, com música do Tom. “Inútil Paisagem”. Confiram:

Mas pra quê
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar
Pra quê
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem

Estou certo ou não estou certo? Certíssimo, claro, tira a paisagem e sobra aquilo que a gente — que vocês — sabem. De cartão-postal, plano geral e bandeja feita com asa de borboleta, não vale. Assim até Brixton, aqui em Londres, é páreo.




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E o tédio de tudo que passou, a chatice do passado? Essa não ocorreu a nosso querido Marcel, que, mais uma vez, dormiu demais, acordou quando já era noitinha. O passado é meio ridículo. Feito aqueles filmes mudos, granulados, coberto de riscos. As pessoas andando pra cima e pra baixo em passo acelerado, os homens de bigodinho, tirando e pondo o chapéu, olhando para a câmera, dizendo coisas ininteligíveis. Tudo pronto para cair de bunda no chão.

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Muita força para achar graça no que me cerca. Eu fui, olhei para trás e me transformei numa “estáltua” (como dizem os teleatores) de paçoca. Agora chove, venta, troveja e tanto meu projeto “Aquarius” quanto o do maestro Isaac Karabtchevsky foram para as picas. Desmilinguo-me no ar condicionado do quarto de hotel diante das Cagarras, nós dois, que nos vimos tanto e até hoje não nos cumprimentamos.

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Cumprimento, subindo a Niemeyer, em perigoso passeio noturno, o portão da casa de Elis, quando ela estava casada com Ronaldo Bôscoli e, aos domingos, expulsava da casa, aos berros, quem estivesse puxando um fumuzinho legal, conforme se dizia. Como subiu gente! E continuamos a subidinha cautelosa.

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De noite, na Vieira Souto, esperando um amigo, sempre de carro e com ar condicionado (ninguém sente calor. Sente-se é assalto) ouço um baita ruído, meio trovão contido, em nada familiar. Logo me dou conta: foi o Vidigal que avançou mais dez centímetros.

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No boteco, pela segunda vez, para as empadinhas. Só então me dou conta, fora buteco mesmo, daqueles com U, balcão para a cachaça, duas mesas de mármore barato e havia, pregado na parede, um telefone. Queria ter um pastel de ar por telefonema dado depois de meia-noite  para uma jovem senhora que morava nas cercanias. Seu telefone tinha 8, tinha, 9 e tinha 0, que essas coisas, esses números a gente não esquece nunca, nunca, nunca. Era briga feia após briga feia, as pazes — não chamemos aquilo de pazes — feitas de madrugada. Às vezes, eu muito alto, não tinha peito para falar. Ela dizia para que eu viesse, que ela abria a porta da portaria. Eu caminhava o quarteirão e meio até a entradinha do pequeno edifício onde ela já me esperava. Só dei pela coisa de volta a Londres. Tenho um frio na barriga e uma porção de lugares-comuns pelo corpo de nosso cancioneiro e cheguei a botar na vitrola Elizeth cantando “Que é Que Vamos Dizer”, do Marino Pinto, que eu pedia para meu compadre, Mister Eco, botar mil vezes seguidas no som, para escarafunchar mais a coisa. Nem dá para chamar de ferida. Na época, com aquela idade, menos de trinta anos, devia ser bom. A uma certa altura, eu não tinha mais como distinguir a diferença. Borges ataca de madrugada e eu o parafraseio: numa certa faixa de disco, será sempre 1963.

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Domingo no Centro. Tudo fechado. Ninguém nas ruas. Meus cicerones não são daqui, não manjam porra nenhuma do Centro. Querem me mostrar a Colombo. Expliquei que está fechada, como o resto. Fomos assim mesmo. Nada mais desolado no mundo. Eu ia dizer que estava saigonizada a cidade, mas Saigon, pomba, se estourou toda, mas saiu vitoriosa de não pouca bosta. Vamos errando caminho por caminho. Pude constatar mais uma vez a destruição do Palácio Monroe pelo Geisel, que parece agora que é “Sacerdote” ou “Feiticeiro”. Bobagem da turma. Chama tudo de “Açougueiro” e “Carniceiro” e façamos as pazes com a realidade.

Apesar de eu explicar direitinho onde fica a Gonçalves Dias, estamos na Praça Tiradentes e eu posso apontar curiosidades, o Recreio, o João Caetano, falar do Baile das Atrizes. Também passamos por Senhor dos Passos, sem restaurante árabe, e, bobeássemos, iríamos até a Aldeia Campista, Gamboa, por aí. Ninguém na rua. Estacionamos na Rio Branco onde deveria estar aquela galeria que eu não me lembro o nome. Na esquina de Ouvidor, um nordestino — sempre, sempre os nordestinos — com uma camiseta escrita “Fuck you!”, armado apenas de iPod, revela que a Colombo é aquele toldo azul lá embaixo. Muito chique, aliás.

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Ligo para a primeira namorada. Está divorciada. Combinamos nos ver. Em Cascais, achei fotos nossas tiradas em 1951. Sorridentes no Posto Seis, crentes que tudo ia acabar bem. De certa maneira, estávamos certos. Acabou e aqui estou eu, aqui estás tu, eu Joujou, tu Balangandãs.Tirei cópia de todas fotos e trouxe num envelope pardo. Passados 55 anos, falamos calmamente um com o outro, sem sentimentalismos, sem aflições. Somos a coisa mais natural desse mundo, só que 55 anos mais velhos. Marcamos encontro no bar do hotel, meio da tarde. Tomamos refresco de morango. Eu, dois, para não perder a fama de exageradão. Falamos de coisas normais, gentes normais. Nada mais nos espanta. Nenhuma hora da saudade. Apenas o inegável prazer de nos vermos. Por menos de hora e meia. Ocorre-me um dado fantástico. Digo para ela nos imaginar, em 1951, falando sobre os acontecimentos passados há 55 anos, lá por volta de 1897. Estaríamos então discutindo Canudos e a morte ainda recente de Antônio Conselheiro. É a única maneira de se contar o tempo, de se usar um calendário de verdade. Ir à história para valer.

Rimos do susto.

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Por sobre as nossas cabeças brancas, duas fadinhas, feito aquela do Peter Pan, a Sininho, jogam peteca na beira da água do Posto Seis. Riem, em seus maiôs de duas peças, e aumentam a velocidade do ritmo do jogo, que é disputado com aquela peteca formada de várias camadas de borracha redonda, com algumas penas amarelas em cima. E nos despedimos, os quatro. A gente se vê. Afinal, eu tenho em casa os discos de Jacob do Bandolim, Jorge Veiga e tudo que pude de Sílvio Caldas. “Todo mundo chorou de saudade, todo mundo menos eu.” Ah, sim, a gente se vê. Se vê.

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Mataram, no meio da semana, um rapaz português em frente a um hotel que agora fica onde era o Cine Rian, que é Nair ao contrário. O rapaz levou a sacola do hotel anunciando-se turista. Levou uma peixeira no estômago. Deu um dia no jornal. No outro, sumiu. Feito sumiu o assalto e a morte de um procurador na avenida Brasil, uma ou duas semanas antes. Ambos não viveram mais que o tempo de uma manhã. Feito as rosas de um poema

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Tiro uma tarde para render homenagem às nossas estátuas. Começo no Leblon, com Zózimo Barroso do Amaral, o paletó pendurado em dois dedos de uma das duas (ou seriam três?) mãos. Um livro do lado simboliza a eternidade de seu pensamento e sua obra. Em seguida, passo por Drummond, na beira da praia, de costas para o mar. Deveriam é ter botado (ou colocado, conforme enfiam agora) na fila do ônibus da Francisco Sá, esquina de Conselheiro Lafayette, bem depois da cabrochinha que ia para a Central. O poeta com a expressão concentrada de quem já começou a bolar as candentes entrelinhas de sua coluna no JB condenando algumas das arbitrariedades (ao menos contra livro, pô!) do regime militar. Depois passamos pelo Ibrahim, agora de ouro, em praça própria, na semi-rotunda de quem vai entrar no Copacabana Palace. Ainda é perigoso fazer qualquer brincadeira com o Turco. Mesmo a salvo, em Londres, enfio o galho. A de Ary Barroso, a pessoa que dirige o carro se nega a me levar. Perigoso demais. Morei 100 metros adiante, na Ribeiro da Costa, quando eu é que era perigoso. Mas a melhor estátua, a que vai para o trono, a que ganha o troféu “Fernando Pessoa na Brasileira em Lisboa”, é a do Braguinha, o João de Barro, ainda vivo, compositor de milhares de sambas e marchas inesquecíveis, tais como “A Mulher do Fu Manchu”,”A Serpente do Faquir” e “Bandeira de Minha Terra”, todas três em parceria com Alberto Ribeiro.

Não entendo é por que não botam todos eles a cavalo. Afinal, estátua eqüestre é muito mais respeitada. Vejam só a do Marechal Deodoro.




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Mais uma vez, antes de me mandar, peço para ver os edifícios de nossa orla marítima. Quero guardar na retina e nos ouvidos o doudo vernáculo arquitetônico, por trás das grades, deblaterando em suas jaulas, falando em línguas. O preciso equivalente à menina do Exorcista, quando tomada pelo demônio Pazuzu. Edifícios que dão uma volta de 360º na cabeça, viram os olhos para dentro, ficam verdes, e vomitam na cara dos turistas. Alguém tem de ir e preparar um “coffee-table book” com eles. Sem esquecer daquele cara do Bar 20.

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Lá vão eles de novo pela Avenida Atlântica. Os vinte macaquinhos daquele episódio de “Os Simpsons”. Na vida real, são iguaizinhos aos retratados pelo Matt Groening. Os tambores de gasolina jamaicanos, sempre presentes, reforçam ainda mais a realidade dos fatos.

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Tardinha e vou encontrar, na velha Taberna Atlântica, o amigo que não vejo há sessenta anos. Tarde também para nós, velhos também. Passamos a nos falar apenas de alguns anos para cá. Email. Troca daqueles pequenos filmes, graças, gracinhas e graçoilas informáticas. Ele trouxe as fotos oficiais do colégio para os anos de 1944 a 1946. Lá estamos os dois, no meio de uma porção de outros meninos, nas três fotos dos três anos em que estávamos na mesma classe. No lusco-fusco (ô alegria de enfim usar a palavra de dois barris!), ele me aponta quem é quem e o que anda fazendo ou parou inteiramente de fazer. São os famosos dois dedos de prosa: o sinal da vitória dado na direção geral do tempo. Aqui estamos, ó Tempo, eu tomando a água de coco que ele teve a gentileza de ir pegar, logo em frente; ele pronto para entregar, de cor e salteado, a ficha técnica de toda uma leva dos anos 40. E você aí, Tempo, gaguejando a mesma coisa dia após dia.

Em sessenta anos, não trocamos tantas palavras quanto nos quarenta minutos em que estivemos juntos. O papo continuará por outros caminhos — cibernéticos, claro. A vitória sobre o Tempo — tome lá mais uma maiúscula, paspalhão! — é nossa e foi de lavagem.

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Fui prudente e não perguntei “Então, o que é que há de novo?”

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No quarto do hotel, o rapaz (do norte, ora se!) veio me deixar o bombom que, de certo por recato, deixa na mesa de cabeceira e não pousado no travesseiro. Como em outras oportunidades, despede-se com “um abraço, ‘seu’ Ivan”. Gosto da intimidade, prezo o “seu” em vez de “senhor”.

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Vou até a janela pegar os 180º de Arpoador a Leblon e ver se o Vidigal, aquele cágado gigantesco sofrendo dos efeitos da explosão atômica, como nos péssimos filmes de ficção científica, cresceu mais uns centímetros de ontem para hoje. Uns metros, seria o ideal. Lá estão as vans e suas falas cabalísticas. Nenhum ônibus da Favelastur. Não são bestas de fazerem excursão à noite. Só entre nove e duas da tarde. Um pouco mais à direita, a tenda branca que me confundiu há uns dias. Tinha uma bandeira do Brasil, que essas estão em toda parte, e uma da Itália. Perguntei ao companheiro se era jogo de vôlei ou sofríamos a visita de algum alto dignatário italiano, inaugurando novo restaurante metido a besta nas cercanias. O companheiro explicou que não era nada disso. Apenas uma forma que os hotéis da orla encontraram para não se chatearem com as prostitutas. Os encontros amorosos são marcados na tal tenda e a bandeira indica a nacionalidade, e, conseqüentemente, a língua, do freguês em potencial. Um “fucktur” paradão, por assim dizer. A bandeira da Itália tremula muito nas areias de Ipanema. Buona gente. Espero que não fajutem tanto quanto nos restaurantes arrogantes que melhor presença fariam na New Jersey de Os Sopranos.

E que paguem o que é justo a nossas jovens que se fazem passar por “demaiores”, fazendo-as assim um pouquinho mais felizes do que diante de, digamos, um ravióli de pato, ou um misto quente travestido de tramezzino.

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Dezessete amigos, nove ex-namoradas, 146 conhecidos, 48 parentes, 329 botecos, 112 restaurantes, 18 cinemas, e paro por aí, deprimido, fazendo a lista de perdidos, nestas quase três décadas. Preciso de um Lexotan. Preciso de muito Lexotan. Não vejo outra coisa a não ser gente, de minha intimidade ou não, tomando Lexotan. Isso me lembra o Zagallo e aquele campeonato do mundo, perdido também. Não sei se Zagallo entra na lista ou não. Amanhã pergunto a alguém, que, como é costume nosso, prazeroso me dará a notícia, caso calhe de ser infausta.

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Zapeio. Dei a sorte de pegar temporada de eleições. Vans de verde e amarelo nas ruas quase atropelando os macaquinhos dos Simpsons. Na televisão, tem o horário gratuito de campanha eleitoral. Surgem na tela, uns por um tempinho, outros por um tempão, uns homenzinhos estranhos, todos com sotaque nordestino, dizendo de forma enfática coisas incompreensíveis. Fosse na rua, daria uma gorjeta pra todo mundo e pediria que saíssem de minha frente. Parece que há um sistema aleatório de partidos. Siglas todas, ou quase todas, começando com P. Detenho-me num comercial filmado no antiqüíssimo cacoete do cinema verité. Trata-se de um homem, suponho que seja o candidato, num cenário paupérrimo, sendo argüido judicialmente. Esse pelo menos o que bolaram em matéria de “cenário” (roteiro, guión), conforme agora cismaram de escrever, dizer, chamar. São perguntas idiotas, sem pé nem cabeça, respondidas pelo, quero crer, futuro deputado, senador ou governador, que une sobriedade à sua inegável objetividade. No encerramento do comercial eleitoral gratuito, o candidato é mostrado como se flagrado às escondidas, conversando com um, suponho, cabo ou sargento eleitoral. “Então, como é que foi, Marcola?” E o futuro eleito, sem titubear: “Foi ridículo.” Tinha toda razão. Fora mesmo. Seu partido, se é que consigo decifrar direito o que garatugei aqui num recibo do “Bob’s”, é o PCC. Pena. Deve ser comunista.

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Eu falei em recibo do “Bob’s”. É mesmo, está aqui do meu lado olhando para mim. Este o cartão-postal que resolvi trazer comigo. Lá está, “Venbo comércio de Alimentos Ltda, rua Visconde de Pirajá, 463, loja a, Ipanema. 1 milk shake ovo, R$ 5.80.” Não, não é de ovo. É de Ovomaltine. Tomei uns quatro ou cinco na temporada. Justifica — e como! — o slogan da Venbo: Gostoso como eu gosto. Pena a decadência das instalações. Era todo de metal reluzente, gente muito limpinha e bem treinada servindo. Agora… Bem, deixa pra lá.

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Na banca de jornais, depois de mais um milk shake, este tamanho grande. Como temos jornais e revistas e nada, nada para se ler. Isso é que é vida. Sobrar tempo para os livros que vão empilhando em casa, hein? Jornal carioca eu adoro. Pego de manhã, na entrada do refeitório (é isso?) do breakfast (esse é isso) no hotel e rigorosamente estão lidos em cinco minutos os dois e 1/3. Nem dá para sujar as mãos. Até outro dia, eles melhoravam muito quando catados na Net. Agora foram e “melhoraram”. Você é obrigado a ler aqueles classificados todos, tudo quanto é anúncio de loja de eletrodomésticos e loções para bronzear — hmmmm — a pele.

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O refeitório do breakfast. Bem cedinho, umas sete da manhã. Lá estão, naquele uniforme esportivo, dois ou três soldadinhos americanos com tema de camuflagem tropical. No peito, em cima do bolso direito, “US Army” e uma bandeirinha. Na Comunidade Européia daria, não digo casus belli, mas, ao menos, um papo entusiasmado, interessante, entre certos segmentos da população e os defensores e distribuidores e atacantes do nobre jogo democrático.

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Na banca, eu acabo comprando é paçoquinha e mariola, que um companheiro paulista insiste em chamar de “bananinha”. Eu e o jornaleiro rimos muito. Pobres paulistas, bem que merecem aqueles baianos todos. Baiano é como eles chamam os nordestinos.

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A via dos corredores perto dos quiosques. Devem estar ficando fortes e saudáveis, formosos é que não. Não mesmo. Aprendem ainda a esquecer, a deixar para lá. Deve ser bom estar fechado naquele corpo, suando e ofegando. Depois vem um idiota, escreve que somos hedonistas e tem todo mundo que ficar rebolando por aí, digitalizado, diante dessas câmeras. Anda-se na rua e, acima da zoeira dos toldos, luminosos ou não, lá estão: centro de malhação após centro de malhação. Malhai-vos, cariocas suleiros, malhai-vos, antes que venha o derradeiro arrastão para a última malhação.

Mas isso só pode ser mágoa de um caboclo que, como eu, tem de ir com bengalinha até a esquina.

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Final de temporada. Dez dias é um pouco por sobre o demais, feito se dizia. Mesmo protegido por excelente hotel e ainda melhores amigos. Todos preocupados em servir bem ao velhinho, nesta cidade de moços. Eu não consegui encaixar, em papo ou texto, uma única observação digna de nota ou nota digna de observação. Um presente enorme assalta — deve ser o tal do arrastão — o passado, todo retalhado em postas fedidas (faisandés, digamos), com que vivo em Londres, satisfeito que tenha acabado e que, a cada dia, vou aprimorando mais, ajudado por velhos filmes, velhas revistas, velhas fotos, velhos livros. Um velho se cercando de velharias para atravessar o dia, a semana, o mês, e, com sorte, o ano. O presente me assalta e me leva todos os documentos. Tudo cópia fotostática, que o original deixei em Londres, que eu não sou besta.

Faz sentido? Não vem ao caso. O que interessa é que passei, de algum tempo para cá, a me entender comigo mesmo, que é o que importa. Eu manjo de perder cidades. De estalo, seria capaz de citar três ou quatro. Mas isso é muito pessoal e as gentes com a papelada em ordem para passar pela minha aduana são poucas. Mesmo se levarmos em conta que eu sou o único brasileiro, vivo ou morto, que não sabe batucar em caixa de fósforos ou coisa alguma.

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Copacabana, Ipanema, Leblon, Centro, zonas Leste e Oeste, o que quiserem. Curtam o pôr-do-sol, recortem o Corcovado e os Dois Irmãos e botem à venda no eBay. Virá gente. Muita gente. Mas uma vezinha só, ao contrário de Naomi Cambell, que, como se sabe, nasceu e continua assombrando o pobre do bairro de Catumbi. Aqui, no Rio, como poderia escrever o poeta sobre Macau, nada de interessante ou sério aconteceu ou acontecerá.

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De que eu mais gostei, além da imensa alegria de rever amigos? Daqueles guetos que eu continuarei a conhecer de propaganda, cinematográfica ou televisiva, pois é isso que fazem deles. Desses imensos campos que por pouco escapam do horrendo apodo de serem chamados “de concentração” ou “de extermínio”. São assentamentos ou colonatos, bantustões, a que dão o pitoresco nome de “comunidades” ou o sentimental “favelas”.




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Trepada num balde, diante do carro parado diante do sinal (uma gentileza, já que as autoridades recomendam não respeitá-los), uma menina tenta equilibrar três bolas amarelas de tênis, enquanto um — comparsa? — pendura no espelho retrovisor um saco de balas pobres que nunca, nunca será vendido.

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Passam de novo os macaquinhos dos Simpsons, enquanto um moleque taludo faz xixi no meio da rua, diante de todos, mexendo assim com o equilíbrio do meio ambiente mundial, ajudando no cavar o abismo da desigualdade social reinante no país. Essa turma dos Simpsons é tudo uma canalha só!

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Sabe-se que a noção de indivíduo nasceu com a Renascença. Quando nasceu, ou nascerá, o carioca? Ou o brasileiro? Quem fez a caricatura maldosa? Millôr ou Jaguar?

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O ar do Rio tem uma luminosidade que, em nele se procurando tocar, sente-se uma mistura do recato da ostra diante da gota de limão ou de virgem, com falsa modéstia, frente a frente ao marzapo ebúrneo. (Também dá uma tosse danada em quem sofre de enfisema. Nisso que dá tentar fazer literatura barata.)

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Um cidadão, numa mesa de bar, eu tomando um caldo de feijão, me falou da lúcida e violenta alegria sexual de se abrir um rombo com chumbo na cara de alguém e depois ir revirar os bolsos do presunto para roubar suas coisas, enquanto, do lado, a meninada joga bola de gude. É, ele usou as palavras “alegria sexual”.

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A sisudez estúpida do futuro. A imbecilidade enfadonha do presente. Bom mesmo é o passado, com o qual a gente pode bulir, mexer, atirar a língua, depois sair correndo e, do outro lado da rua, gritar “Fiau!”. Mas há um preço enorme a ser pago e não aceitam cartão de crédito.

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Seguinte: para cada naipe de passado guardado, há uns dez ou doze de presente tentando cobrir. Para cada sorvete do Moraes, há um milk shake de Ovomaltine se interpondo. Para cada porteiro do cine Ipanema que fechou, há uma moça na portaria do hotel perita em ligar laptop (“Temos nomes iguais. Eu sou Ivana. Meu pai era Ivan também.”). E assim por diante. Dez dias não dão para apagar. Da mesma maneira com que lutei durante o mesmo tempo com as luzinhas vermelhas do telefone do hotel, sempre apagando e acendendo, sempre eu derrubando tudo pelo quarto, sempre tendo que chamar o arrumador, o mesmo que, logo no segundo dia, perguntou se podia aspirar, e eu — o grande brincalhão! — disse que “só se for com o aspirador.” Deve ser por isso que me desejava um abraço cada vez que me via. Essas coisas fazem uma algazarra temporal dos diabos na cuca.

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Aí entra a bala na cabeça que mencionei há — quanto tempo foi mesmo? Ela passou dez dias escavocando e escarafunchando aquilo lá. Espalhando miolo e fibras nervosas pela aura do córtex cerebral, os segredos do lugar onde o hipocampo seleciona novas sensações a serem comparadas às antigas. Neurotransmissões se calaram com os estalos dos fogos de artifício sinápticos. A bala foi detonada no Galeão e fez seu percurso de dez dias a 700 km/h.

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Eu quase que não senti. Agora é tentar me recuperar, e a algumas coisas, e botar tudo em seus devidos lugares. Só um troço: que coisas? Que devidos lugares?


(publicado na revista Piauí, em 1º de outubro de 2006)

segunda-feira, setembro 04, 2017

Sobre essa coisa de escrever


Por Joaquim Ferreira dos Santos

A estudante perguntou como era essa coisa de escrever. Eu fiz o gênero fofo. Moleza, disse. Primeiro, evite estes coloquialismos de “fofo” e “moleza”, passe longe das gírias ainda não dicionarizadas e de tudo mais que soe mais falado do que escrito. Isto aqui não é rádio FM.

De vez em quando, para não acharem que você mora trancado com o Domingos Paschoal Cegalla ou outro gramático de chicote, aplique uma gíria como se fosse um piparote de leve no cangote do texto, mas, em geral, evite. Fuja dessas rimas bobinhas, desses motes sonoros. O leitor pode se achar diante de um rapper frustrado e dar cambalhotas. Mas, atenção, se soar muito escrito, reescreva.

Quando quiser aplicar um “mas”, tome fôlego, ligue para o 0800 do Instituto Fernando Pessoa, peça autorização ao bispo de plantão e, por favor, volte atrás. É um cacoete facilitador.

Dele deve ter vindo a expressão “cheio de mas-mas”, ou seja, uma pessoa cheia de “não é bem assim”, uma chata que usa o truque de afirmar e depois, como se fosse estilo, obtemperar.

Não tergiverse, não diga palavras complicadas, não escreva nas entrelinhas. Seja acima de tudo afirmativo, reto no assunto. Nada de passar páginas descrevendo o clima da estação, esse aborrecimento suportável apenas quando vemos as curvas da Garota do Tempo recortadas contra o chroma-key do “Jornal Nacional”.

Abaixo o prólogo com a lente aberta, nada daquelas observações sensíveis sobre a paisagem e, a não ser que você seja o Dashiell Hammett ou o Raymond Chandler, esqueça o queixo quadrado do bandido ou a descrição pormenorizada dos personagens. Corte o que for possível. Depois dê uma de Raymond Carver e, nem aí para os pruridos da vaidade, mande o resto para o editor acabar de cortar.

Sempre cabe uma linha a menos no texto, é o efeito Rexona aplicado na axila gramatical. Evite essas metáforas complicadas, passe por cima de expressões como “em geral”, como está no primeiro parágrafo, pois elas têm a mesma função-paralelepípedo dos parênteses, dos travessões. Chute para fora da página tudo mais que faça as pessoas tropeçarem na leitura ou darem aquela ré em busca do verdadeiro sentido da frase que passou.

Deixe tudo em pratos limpos, sem tamanho lugar-comum. Ouça a voz do flanelinha semântico gritando a chave para o bom texto. “Deixa solto, doutor.”

É mais ou menos por aí, eu disse para a menina que me perguntou como é essa coisa de escrever.

Para sinalizar o trânsito das ideias, use apenas o ponto e a vírgula, nunca juntos. Faça com que o primeiro chegue logo, e a outra apareça o mínimo possível. Vista Hemingway, só frases curtas. Ouça João Cabral, nada de perfumar a rosa com adjetivos.

Mergulhe Rubem Braga, palavras, de preferência com até três sílabas. “Pormenorizada”, vista acima, é palavrão absoluto. Dispense, sem pormenores.

O texto deve correr sem obstáculos, interjeições, dois pontos, reticências e sinais que só confundem o passageiro que quer chegar logo ao ponto final. Cuidado com o “que quer” da frase anterior, pois da plateia um gaiato pode ecoar um “quequerequé” e estará coberto de razão. A propósito, eu disse para a menina, perca a razão quando lhe aparecer um clichê desses pela frente.

Você já se livrou do “mas”, agora vai cuidar do “que” e em breve ficará livre da tentação de sofisticar o texto com uma expressão estrangeira. É out. Escreva em português. Aproveite e diga ao diagramador para colocar o título da matéria na horizontal e não de cabeça para baixo, como está na moda, como se estivesse num jornal japonês.

Pode-se escrever baixinho, como faz o Verissimo, que ouviu muito Mario Reis para chegar àquela perfeição de texto de câmara. Outra opção é desabafar pelos cinco mil alto-falantes o que lhe vai na pena da alma, como faz o Xico Sá, que aprendeu a escrever com o Waldick Soriano.

Escreva com a sonoridade que lhe aprouver, nunca com cacófatos assim ou verbos que façam o leitor perguntar para o vizinho do lado que maluquice é essa de “aprouver”. Fuja da voz passiva, da forma negativa, do gerundismo e principalmente da voz dos outros. Se falo fino, se falo grosso, ninguém tem nada com isso. O orgulho do próprio “falo”, e fazê-lo firme e com charme, é uma das chaves do ofício.

De vez em quando, abra um parágrafo para o leitor respirar. Alguns deles têm a mania de pegar o bonde no meio do caminho e, com mais parágrafos abertos, mais possibilidades de ele embarcar na viagem que o texto oferece. Escrever é dar carona.

Eu disse isso e outro tanto do mesmo para a menina. Jamais afirmei, jamais expliquei, jamais contei ou usei qualquer outro verbo de carregação da frase que não fosse o dizer. Evitei também qualquer advérbio em seguida, como “enfaticamente”, “seriamente” ou “bemhumoradamente”.

Antes do ponto final, eu disse para a menina que tantas regras, e outras a serem ditas num próximo encontro, serviam apenas de lençol. Elas forram o texto, deixam tudo limpo e dão conforto. Escrever é desarrumar a cama.

Duas palavrinhas para o Serge


Por Rafael Galvão

O Serge postou um comentário sobre o lamentável histórico deste blog e em vez de comentar o comentário achei que ele merecia uma resposta mais elaborada. Obviamente, como qualquer post neste blog de um preguiçoso, isso fez com que ela demorasse muito mais para ser escrita do que devia. São os percalços da vida.

O comentário do Serge me lembrou de outros tempos, um período que era o auge não apenas deste blog, mas de toda a blogoseira. Os diarinhos, mais ou menos nos moldes de boa parte do Facebook de hoje, estavam dando lugar a abordagens mais complexas. 

Aos blogs do Hermenauta, do Alex, do Marcus, do Doni, do Idelber, do Milton, do Bia, do Ina, condomínios como o Verbeat, o Interney e O Pensador Solitário  um bocado de gente que tinha o que dizer e tentava fazê-lo de forma razoavelmente elaborada. 

Acho que ali se criou ao menos o embrião de uma comunidade heterogênea e eventualmente conflituosa, mas empolgante. Li muita gente boa ao longo daqueles anos; gente criativa, talentosa, engraçada e séria. Fiz alguns amigos para sempre. Mas, principalmente, ri muito.

Com o tempo, a maioria de nós cansou de escrever potoca e foi arranjar coisa melhor para fazer na vida. Virtualmente todos os blogs que compartilhavam o mesmo ecossistema deste desapareceram. A profissionalização da plataforma também fez com que a maior parte dos blogs se tornasse cada vez mais redundante.

O fato é que há um bocado de gente falando de coisas com mais propriedade do que eu  menos Beatles, claro, mas tem gente boa o suficiente para me fazer pensar duas vezes antes de escrever qualquer coisa sobre o assunto (o melhor blog do mundo sobre os Fab Four, a propósito, é este aqui: A Moral to This Song). Mas acho que esses tempos passaram, mesmo, porque as tecnologias mudaram. Twitter e Facebook suplantaram os blogs.

Isso não é uma confissão de ludismo; porque reclamar disso é como o dono de cinema que reclama da Netflix, e porque embora use hoje muito pouco, já houve um tempo em que eu estava quase viciado naquela miséria. Mas não dá para negar que o Facebook tornou os blogs obsoletos. Blogs como este aqui  essencialmente ensaísticos, sem escopo definido, basicamente conversa jogada fora, uma espécie de bar virtual  foram perdendo o sentido, até porque Facebook e Twitter são muito mais eficientes nesse aspecto.

É por isso que a maior parte daquelas pessoas que escreviam blogs pode ser encontrada hoje no Facebook; mas num fenômeno curioso, poucas, pouquíssimas escrevendo algo remotamente bom quanto seus blogs d’antanho.

Acho que funciona assim: o sujeito pensa em algo sobre o que gostaria de escrever. Nos tempos do blog ele escreveria um texto mais longo e mais pensado. Hoje ele simplesmente joga imediatamente no Facebook ou no Twitter uma ideia concisa, excessivamente simplificada do que gostaria de dizer. E daí não há mais motivo para escrever.

A impressão que tenho é que o que se escreve no Facebook são essencialmente comentários que buscam o simplismo, links para alguma coisa, autopromoção descarada, essas coisas. Parece haver uma busca pela frase definitiva, o aforismo “lacrador” que vai ser compartilhado mais vezes, o que por si só condiciona qualquer debate a pouco mais que uma batalha de slogans. 

Posts  hoje chamados “textões”, o que já indica a má vontade com que são vistos  nem são raros, mas sofrem de um mal inevitável: estão soterrados em uma imensidão de outros textões e textinhos. Não têm a dignidade que sua posição de destaque em um blog lhe dava. Mais que isso, o grande problema é que ao mesmo tempo outras 10, 20 pessoas estão escrevendo essencialmente a mesma coisa, com maior ou menor grau de raiva.

Eu não tenho muitas dúvidas de que o Facebook é um dos responsáveis pelo estado psicológico atual do mundo, pelo aumento da ansiedade, da irritação, da intolerância: para o bem ou para o mal, uma certa hierarquia de vozes se perdeu, e o resultado, ao menos por enquanto, é um mal-estar generalizado, um recrudescimento de confrontos que eram apenas latentes ou estavam disfarçados.

Mas o pior, mesmo, é que ele acabou com os blogs.

Este blog mesmo “acabou” em 2010, e não pode culpar as redes sociais; tinha virado uma obrigação que passava a me incomodar, porque já não fazia tanto sentido. O fato de saber que há leitores exerce uma influência que pode ser positiva ou deletéria, porque por mais que a gente negue isso lhe obriga a escrever, de certa forma, e é positiva quando você está com vontade e deletéria quando o saco está cheio. 

Além disso, depois de quase dois mil posts é meio difícil achar algo que lhe interesse e que você não tenha escrito. Os comentários razoavelmente despretensiosos sobre quaisquer bobagens que eu fazia aqui no começo começaram a parecer insuficientes, à medida que gente que se levava mais a sério, com mais gana, começou a escrever o que eu teria escrito.

Finalmente, a “facebookização” do debate, o crescimento do processo de “guetização” impulsionado pela ascensão desses movimentos identitários de todos os tipos, quase invariavelmente infantilizados, ajuda.

Dia desses teve uma passeata da mulher negra. Uma moça disse que, se você não fosse negra, que ficasse em casa. Tem discussão possível nesse caso? Eu não tenho tempo nem estômago para esse tipo de debate. Na verdade, não tenho mais para quase nenhum, nem os bons. Os tempos em que eu me divertia com as pseudo-feministas passaram.

Mas a verdade é que, depois de tantos anos, ele tinha passado a ser parte da minha vida; por isso voltei, mas sem a obrigação que eu mesmo me impunha. E ele vai ficar por aqui para sempre, acho (ou pelo menos até eu morrer, se é que vou morrer um dia, e deixar de reservar o domínio); às vezes com um texto, às vezes não.

Não acho que precise de mais que isso. Ele já está vivendo em um tempo emprestado, mas que bom; a este blog, que me deu alegrias, raivas e amigos, basta apenas continuar existindo. Não porque é ou deixa de ser lido: mas porque é parte indissociável de minha história.

A Amazônia não merece isso, Temer!


Por Fernando Gabeira

Tenho discretas razões para supor que Temer compreenderá o equívoco de abrir para a mineração, na Amazônia, uma área do tamanho da Dinamarca. No passado, ele se tornou dono de terras em Alto Paraíso, e a comunidade que trabalhava há anos ali foi a Brasília pedir ajuda. Terras em Goiás foram distribuídas a políticos do PMDB. Temer nem sabia exatamente como eram e o que produziam. Pressionado pelos agricultores alternativos que trabalhavam ali, Temer resolveu abrir mão de suas terras e as doou à cidade de Alto Paraíso.

Agora, não se trata apenas de alguns, mas de 47 mil hectares. As terras não são de Temer, mas do Brasil e, de uma forma indireta, de toda a Humanidade. Quando os militares criaram a reserva, a ideia era pesquisar e explorar os recursos de uma forma estratégica. Não creio que pensaram nisso como um momentâneo desafogo a uma crise econômica provocada pela incompetência e corrupção.

Não quero raciocinar em termos de estatal ou privado, ou mesmo de nacional ou estrangeiro. Depois que os militares criaram a reserva, muita água passou por baixo da ponte, ou mesmo por cima, com os eventos climáticos extremos.

No fim da década dos 1980, o Brasil ainda era um vilão internacional porque desmatava a Amazônia. Lembro-me de uma reunião de cúpula na Holanda em que Sarney não foi porque tinha medo de uma reação negativa. Na época, além das queimadas e de outros fatores, houve ainda o episódio de negarem passaporte a Juruna.

Com a realização da Rio-92, o maior encontro de estadistas no pós-guerra, o papel do Brasil começou a se alterar. De vilão ambiental, tornou-se um interlocutor importante e passou a ser visto como ator decisivo nos acordos sobre o aquecimento global.

A Amazônia tornou-se para o mundo um espaço a ser preservado, respeitada a autonomia nacional sobre suas terras. Países como a Noruega acharam que se a Amazônia era importante para a sobrevivência de todos, deveriam investir nela em projetos sustentáveis. E fizeram isso.

Você mesmo esteve na Noruega, embora a tenha confundido com a Suécia.

A grande crise iniciada em 2008 e fatos posteriores, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, enfraqueceram mas não destruíram a disposição planetária de contribuir com a Amazônia.

Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta. E de uma certa maneira, despreza os potenciais investimentos em projetos sustentáveis em nome de uma saída que me parece anacrônica e predatória.

Tudo bem, Temer, você dirá que serão respeitadas as regras ambientais para a mineração. Mas quem percorre Minas Gerais e outros pontos do país constata rapidamente que elas não são respeitadas no Sudeste onde, teoricamente, concentra-se o grosso da fiscalização.

No segundo decreto, você criou um comitê ligado à chefia da Casa Civil para monitorar as atividades de mineração nessa faixa que engloba parte do Amapá e do Pará. Não consigo me convencer disso. O chefe da Civil, Eliseu Padilha, é investigado por crimes ambientais no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul. E as acusações são amplas, vão de desmatamento a construção de pistas de pouso clandestinas. Pouca gente sabe disso. Mas está disponível na internet e no próprio Supremo.

Além de arruinar o trabalho de construção da imagem nacional, o governo nos propõe uma fórmula de controle na qual a raposa toma conta do galinheiro. O namoro do PMDB com as riquezas naturais da Amazônia vem de longe. Romero Jucá é o mais destacado parlamentar buscando fórmulas para regulamentar a mineração nas terras indígenas.

Nesse momento, Temer, você está cedendo às piores influências no manejo da Amazônia. Se fosse simplesmente um opositor, talvez pudesse me alegrar com essa decisão. Antes de ser opositor, sou brasileiro e lamento ver o Brasil caindo de novo naquele desprezo internacional que sentimos em Haia, no fim da década de 1980. É uma ilusão você pensar que tudo dará certo. Até mesmo Padilha e Jucá, que devem estar comemorando, não percebem que estão atraindo um furacão contra eles. Deveriam ser mais discretos, mas a aposta é de levar tudo porque aqui não se pune ninguém.

No momento em que publico este artigo, estou tentando entrar na reserva, que não tem acesso fácil. O argumento de que garimpeiros clandestinos estão por lá não justifica esta abertura às grandes empresas. Aliás, Temer, existe uma possibilidade de você estar se deixando execrar inutilmente. As empresas que você quer atrair também estão no mundo e devem sofrer pesadas campanhas em seus países de origem.

Não me importa que você confunda Noruega com Suécia, Paraguai com Portugal, ou mesmo reviva a União Soviética. O essencial é não confundir a Amazônia com Goiás, onde tantas terras foram passadas a líderes do PMDB. É um lugar tão complexo, capaz de sepultar não apenas os sonhos pioneiros como o de Henry Ford, mas também as grandes trapaças.