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sexta-feira, dezembro 08, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (18)


Por Jefferson Peres

Mas nem todos os grandes pelejadores do passado faziam parte dos bandos. Havia também os combatentes solitários, que jamais participavam de ações coletivas. Não que fossem necessariamente anti-sociais. Podiam ser até pessoas perfeitamente integradas ao meio, com um amplo círculo de amigos, mas orgulhosas demais para pedir ou aceitar ajuda de terceiros em suas questões pessoais. Agiam sempre sozinhos, enfrentando e vencendo desafios, por mais difíceis que se apresentassem, E assim, iam criando fama de valentes, com a notícia de suas façanhas ajudando a construir o mito em que se transformavam alguns deles, principalmente aos olhos dos mais novos, que os viam como heróis de carne e osso.

Danilo Silva, que mais tarde adotaria o sobrenome Du Silvan e morreria como promotor público da capital, era um cultor da forma física. Narcisista, praticava barra e halteres e gostava de exibir, vaidoso, o tórax protuberante e os bíceps salientes. Seu campo de treinamento e de exibição era o vasto pátio externo do Ginásio Pedro II, onde estudava.

Ao lado da quadra de basquete havia uma estrutura metálica, de uns quatro metros de altura, dotada de escadas e barras horizontais e verticais, para a prática de exercícios. Todas as manhãs ele comparecia ao local, vestido com um pequeno calção de banho, para dar o seu mini “show”, ante um pequeno público formado por colegas de ambos os sexos, com predominância do feminino.

Certa vez, instado pelas fãs, galgou a escada e, de lá do alto, resolveu bancar o super-herói, saltando para o solo de areia não muito fofa. A proeza custou-lhe fraturas nos pés e uma boa temporada no hospital. Desde, então, operou-se uma notável mudança em Danilo, que substituiu o culto do corpo pelo do espírito, dedicando-se com paixão às atividades literárias.

Mas um pouco antes desse incidente, ele ainda se envolveria num outro episódio do qual se sairia igualmente de maneira pouco airosa. Um tanto agressivo, já se metera em meia dúzia de brigas, que lhe granjearam a fama de valentão, porque levara a melhor em todas, graças aos seus poderosos músculos. Orgulhoso da fama, encimou-se quando um sol maior se levantou, na pessoa de Abdalla Jezini, um dos “cancões de fogo” da cidade.


Um dia, inconformado com a popularidade do rival, Danilo lhe mandou um recado, desafiando-o para uma luta na “Baixa do JG”, um campo de peladas no local onde hoje se ergue o “Palácio do Rádio”. Abdalla prontamente aceitou o desafio e a notícia logo se espalhou.

No dia marcado, uma pequena multidão se aglomerou na Baixa para assistir o combate. E esse público não saiu frustrado. Foi uma luta prolongada e violenta, mas leal. Infelizmente para Danilo, a sorte não o favoreceu. Após uma demorada troca de socos, “gravatas” e pontapés, Abdalla conseguiu afinal dominá-lo, no chão, e castigou-o sem piedade. Danilo retirou-se abatido, com o nariz sangrando e o rosto cheio de hematomas, enquanto Abdalla vivia mais um instante de triunfo.

Dentre todos que adquiram notoriedade naqueles anos, por sua coragem, um sobreleva em minha memória, acima dos demais, talvez por tê-lo conhecido mais de perto. É Alfredo Aguiar, cujo nome completo, como o de Bilac, é também um alexandrino, embora imperfeito: Alfredo Augusto Braga Vieira de Aguiar.

Seu pai era Francisco das Chagas Aguiar, mais conhecido como Chiquito, que, aos trinta anos de idade, assumia a Prefeitura de Manaus, no governo revolucionário de Ribeiro Júnior. Nas poucas semanas que passou a frente da Comuna, não pôde, obviamente, realizar nenhuma obra importante. Mas deixou registrado um episódio denunciador da sua personalidade, dotada de altivez e senso de humor.

Chiquito tinha baixa estatura, ao passo que Ribeiro Jr. era um homenzarrão. Um dia os dois conversaram, de pé, sobre um assunto em torno do qual divergiam. A discussão se acalorou e Ribeiro Jr., exaltado, levantou a voz. Chiquito, igualmente exaltado, replicou: Se você está gritando comigo porque é mais alto do que eu, não seja por isso. A seguir, mais do que depressa, trepou na cadeira mais próxima e concluiu: Agora eu sou mais alto do que você. Tomado de surpresa, o governador não pode deixar de sorrir da audácia e presença de espírito do auxiliar, e a conversa terminou em paz.

Continuaram amigos, como prova o nome de Alfredo, que lhe foi dado em homenagem a Ribeiro Jr. Além do pai, a quem não conheci, outro membro de sua família foi um exemplo dignificante. Seu irmão, Gualter, cujo nome pronuncio com respeito. Sério em tudo que fazia, era dotado de coragem física, que demonstrou com serenidade e firmeza, sempre que necessário, mas sobretudo de coragem moral, comprovada ao longo de sua vida, durante a qual se manteve fiel às suas idéias ante as circunstâncias  mais adversas. E não mudou em seus últimos anos, quando, alquebrado pela doença, soube enfrentar a morte com galhardia.


Não é de surpreender, assim, que Alfredo tenha sido, em sua mocidade, uma figura singular, que despertava ódio, amor, inveja, admiração, mas ao qual não de podia ser indiferente. Ao contrário dos valentões da época, ele não era um arruaceiro vulgar. Não usava armas, não agredia cidadãos pacatos, não provocava os mais fracos e, como já disse, não se acobertava em turmas. Adorava brigar, mas sempre por um bom motivo e arrostando sozinho as consequências. Nem sempre eram questões pessoais. Podia entrar em briga alheia, desde que a causa lhe parecesse justa.

Por outro lado, estava longe de seu um bronco intratável, que julgasse resolver tudo pela força. Era na verdade um intelectual, autodidata com excelente cultura humanística. Produzia pouco, mas quando o fazia se revelara bom articulista e razoável poeta. Pelo menos um de seus sonetos poderia figurar em qualquer antologia. Politizado, comunista militante, defendia suas idéias com paixão e conhecimento de causa. Era um prazer ouvi-lo, em especial quando tratava discussões, que dificilmente perdia, por ser espirituoso, mordaz e dotado de grande agilidade mental.

Sua aparência física era enganadora. Baixo, magro, dava a impressão de frágil. No entanto, era um feixe de músculos, que lhe dava uma força insuspeitada, capaz de derrubar adversários com quase o dobro do seu peso. Além disso, deslocava-se com incrível rapidez durante a briga, sendo muito difícil atingi-lo. E, quando atacava, os punhos eram acionados com grande velocidade e precisão, numa série sucessiva de golpes que podiam decidir a luta em poucos minutos.

Mais do que a destreza e a força física, porém, intimidava seus antagonistas o gênio de Alfredo, que não esquecia agravos nem aceitava derrotas. Levar vantagem sobre ele só podia causar intranquilidade ao vencedor, que tinha de se preparar-se para um segundo round, porque ele iria fatalmente à forra. Conheço inúmeras passagens da vida de Alfredo, das quais me permito contar algumas.

Seu espaço preferido, como o de muitos intelectuais e boêmios, era o triângulo que tinha como vértices o bar da Avenida, na esquina de Eduardo Ribeiro com Saldanha Marinho, o café Leão de Ouro, na esquina de Eduardo Ribeiro com Henrique Martins, e o café A Baratinha, na esquina de Henrique Martins com Joaquim Sarmento.

Dentro desse espaço se continham, ainda, o Café da Paz, com seu grande salão de sinuca, o cine Avenida, três livrarias e, bem próximos, o cine Odeon e as redações de todos os jornais da cidade. Pode-se dizer, portanto, que ali pulsava o coração de Manaus. E Alfredo era seu frequentador diário.


Um dia, ele se encontrava no bar Avenida, quando reclamou do mau atendimento, irritou-se e saiu dizendo que voltaria para promover uma quebradeira. Horas depois, foi informado de que o dono do bar levara a sério a ameaça e pedira a proteção de cinco ou seis guardas-civis armados de cassetetes. Alfredo já tinha esfriado a cabeça e não pretendia cumprir a promessa. Mas não era homem de recusar desafios como aquele.

Sem pensar duas vezes, dirigiu-se ao bar e passou a provocar os guardas, que reagiram com violência. Ele se defendia com cadeiras, socos e pontapés. Mas, em desvantagem, foi recuando até à calçada, onde arrebatou de um dos guardas o cassetete, que passou a usar. E assim, foi batendo e apanhando, até o lado oposto da Eduardo Ribeiro, onde afinal, foi dominado.

A custo, conseguiram levá-lo a Central de Polícia, sendo liberado mais tarde por interferência de Herculano Castro e Costa, jornalista influente e seu amigo. Passados alguns anos, ao comentar comigo o incidente, Alfredo confessava: “Foi a primeira e última vez que enfrentei guardas armados de cassetetes. Pancada de cassetete arde como fogo. Uma semana depois minhas costas ainda doíam.”

Outra vez, estava na Baratinha, tomando uma média, quando acidentalmente derramou café sobre a calça. Aborrecido, arremessou a xícara à rua. Encontrava-se no café um português, recém-chegado de Portugal, que estava em negociações para arrendar o estabelecimento. Alto e corpulento, o homem de dirigiu a Alfredo, rispidamente, para censurar o seu gesto. Houve o revide, em seguida os dois se engalfinharam e o português conseguiu prender a cabeça do antagonista sob uma forte gravata.

Com muito esforço, os circunstantes conseguiram apartar os contendores e Alfredo foi levado para fora do café por um de seus amigos. Mas, para ele a briga não tinha terminado. Antes de andar meio quarteirão, parou, deu meia-volta e retornou ao café, indo direto ao português, que atingiu com poderoso murro. O homem desabou. Foi tão grande o susto, que desistiu da Baratinha e do Brasil. Semanas depois, voltou para Portugal.

Havia em Manaus, um jornalista, também do gênio explosivo e que habitualmente usava um revólver à cintura. Ao saber que Alfredo havia dado uns tapas em alguém, comentou que com ele seria diferente. Alfredo soube do comentário e passou a caçar o homem.

Uma tarde, ao entrar no bar Americano, tranquilo e decadente, deparou com o próprio, que bebia cerveja em companhia de um amigo. Alfredo nem se deu ao trabalho de interpelar o homem. De dedo em riste, atacou: “Você disse que com você ia ser diferente. E vai ser. Moleque da sua espécie não merece apanhar de tapa.”

A seguir, pegou uma das mãos do outro, espalmou-a e, com os dedos de sua mão direita, aplicou-lhe meia dúzia de sonoros bolos. E retirou-se sem olhar para trás, sem verificar sequer se o homem estava armado.


Por mais de uma vez saiu em defesa de outros, mais fracos, sem ter nada com a briga. Assim aconteceu uma noite, quando lia tranquilamente, numa garçonière na Rua Miranda Leão. De repente, o silêncio foi quebrado pelo som de vozes alteradas que vinham do quarto fronteiro. Seguiu-se um ruído de luta, acompanhado de choro e de grito de uma mulher a pedir socorro.

Alfredo, cavalheiresco, não era homem para deixar sem resposta os apelos de uma dama. E foi bater na porta do quarto, que se abriu, mostrando uma mulher em prantos e um homem forte e mal-encarado, que recebeu o indesejado visitante com quatro pedras na mão. Discutiram e o desconhecido, furioso, partiu para a agressão, que lhe custou muito caro. Levou tremenda surra e teve de ser medicado no Pronto-Socorro. Provavelmente nunca mais bateu em mulher nenhuma.

Somente uma vez Alfredo fugiu a um desafio. O autor da proeza foi Pedro Santiago de Amorim, ou Augusto Sandino, pseudônimo que utilizava em sua mocidade, quando se apresentava em show cantando árias de óperas famosas e canções napolitanas, com sérias pretensões de se tornar um novo Caruso. Meu amigo de infância, sempre foi um excelente caráter, por isso dado a certas quixotadas.

Pedro era colega de Alfredo na antiga Delegacia Fiscal, onde tinha seu cargo a elaboração das folhas de pagamento. Um dia apareceu uma diferença a menor nos vencimentos de Alfredo, que reclamou, exigindo que fizessem a retificação, do contrário ele próprio a faria. Pedro, franzino e baixinho, devia pesar uns quarenta quilos, podendo ser derrubado com um sopro. Mas nem assim se intimidou. Pondo-se de pé, encarou o formidável competidor e, teatral, desafiou: “Nunca! Só se passar por cima do meu cadáver!” Alfredo ainda cerrou o punho, mas logo percebeu que se aplicasse o murro estaria cometendo homicídio. Preferiu engolir a raiva e retira-se, deixando o Pedro gozar, deliciado, o seu dia de herói.

Mas nem todas as passagens curiosas da vida de Alfredo estão relacionadas com brigas. Como já observei, tinha um apurado senso de humor e vivia a maquinar brincadeiras, inclusive a pregada em Adaucto Rocha não foi a única nem a maior. Uma noite, ele e Pedro Lemos (tinha que ser!), em frente à redação de O Jornal, na Eduardo Ribeiro, tiveram a idéia de aprontar uma com Álvaro Bandeira de Melo, pacato e ilustre cidadão que morava do outro lado da avenida, nos altos de um prédio hoje reformado.


Começaram com um telefonema para a Garagem Esportiva, pedindo um carro de praça. Em seguida chamaram a Polícia, para prender um ladrão que estaria tentando arrombar uma casa. Ligaram, a seguir, para o Pronto-Socorro, pedindo a ambulância para atender a um caso de urgência. E, finalmente, deram um quarto telefonema para o Corpo de Bombeiros, comunicando um incêndio. Em todas essas chamadas forneceram o endereço de Álvaro. Em poucos instantes a confusão estava formada. O motorista de praça ficou algum tempo batendo na porta, sem ser atendido, porque o dono da casa havia saído com a mulher.

Nesse momento chega a polícia no carro celular, a velha Manduquinha, e dá voz de prisão ao motorista, que se rebela. Logo chega a ambulância, com a sirene uivando, seguida do carro de bombeiros com o sino tocando. Ao retornar a casa, em companhia da excelentíssima, Álvaro encontrou o pandemônio formado, e por pouco não precisou dos serviços da ambulância. Creio que morreu sem descobrir os autores da façanha, que naquela noite, da porta do jornal, se divertiam a valer.

Outra das suas brincadeiras teve, contudo, inspiração mais generosa. Aconteceu no bar Avenida, onde também funcionava um restaurante. Os garçons, cumprindo ordem superior, passaram a mover campanha sistemática contra os pequenos engraxates que ofereciam seus serviços aos frequentadores. Alguns dos garotos, mais insistentes, eram escorraçados aos empurrões e com xingamentos humilhantes. Alfredo foi inchando e um dia resolveu dar uma lição ao proprietário e a seus fiéis serviçais.

A pretexto de homenagear autoridades e políticos, inclusive o senador Cunha Melo, encomendou um jantar de trinta ou quarenta talheres, com um cardápio dos melhores. Na noite marcada, para surpresa e desgosto do dono e de seus empregados, o restaurante era invadido não por convidados ilustres, mas por um enxame de engraxates, que tomaram assento à mesa caprichosamente arrumada, com o anfitrião, rejubilado, à cabeceira. O jantar decorreu sem incidentes, mas o proprietário vingou-se cobrando o dobro do prelo usual, que Alfredo pagou sem discutir, feliz como uma criança.

Nunca mais vi Alfredo Aguiar, o bravo guerreiro, agora em repouso. Não sei que marcas a vida lhe terá imprimido. Sejam quais forem, serão amenizadas, certamente, pelas recordações de que soube fazer de sua juventude não uma caminhada de cinzenta monotonia, mas antes uma alegre cavalgada com sabor de aventura.

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