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sexta-feira, dezembro 08, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (20)


Por Jefferson Peres

Para um jovem da minha geração era muito difícil manter relações íntimas com moças de família, de qualquer classe social, entendidas como tais as que viviam em companhia dos pais. A violação do tabu da virgindade tinha sérias implicações, que iam do casamento forçado ao processo por crime de sedução.

Não era fácil mesmo com as moças faladas, isto é, as suspeitas de não serem virgens, que davam preferência a forasteiros, como aviadores civis e caixeiros-viajantes, por temerem a indiscrição da rapaziada local. Apenas os mais ousados conseguiam vencer essas barreiras, dispostos a enfrentar as consequências.

A grande maioria tinha de recorrer mesmo às profissionais para satisfazer os reclamos da natureza. Frequentar prostitutas era uma prática exercida com habitualidade por jovens de todas as classes.

Com tão grande clientela, não é de estranhar que a Zona do Meretrício, ou simplesmente Zona, ocupasse uma área tão ampla, considerando as dimensões da cidade. Reduzida hoje, ao que parece, à Rua Henrique Antony, à época abrangia, também, a Itamaracá, parte da Frei José dos Inocentes e alguns quarteirões da  Saldanha Marinho, da Lobo d’ Almada e da Joaquim Sarmento.

Embora não houvesse uma separação nítida e precisa, pode-se dizer que as três primeiras ruas constituíam o que o povo chamava de zona estragada, onde viviam mulheres decadentes, algumas em deploráveis condições físicas. Moravam em quartinhos precários, à porta dos quais ficavam a chamar os fregueses e a oferecer seus serviços por qualquer preço.

Nas demais ruas predominavam as pensões, ou sejam, bordeis dirigidos por ex-prostitutas, que cobravam aluguel das pensionistas e exploravam o serviço de bar. Só por exceção um cliente entrava diretamente para o quarto, sem a pausa obrigatória para uma cerveja ou uma dose whisky.

Alguns desses prostíbulos eram bem instalados, limpos, com assoalhos encerados e cortinas nas janelas. Geralmente, a dona ocupava a sala da frente, que seria a de visitas, e as meninas utilizavam a alcova e os quartos da puxada. Na sala de jantar, transformada em bar, era recebida a clientela.


As pensões mais famosas e concorridas do meu tempo eram a da Lola e a da Maria da Luz, vizinhas, na Rua Saldanha Marinho, e a Royal, na Joaquim Sarmento, a única que tinha nome, dirigida pela Hortência, uma mulher já velhusca, alta, educada e de aparência respeitável, que muitas vezes sentava à mesa para conversar com os frequentadores.

Essas senhoras eram muito zelosas do conceito de seus estabelecimentos. Por isso, exerciam permanente vigilância sobre a saúde das suas pensionistas, que eram obrigadas a lhes comunicar sem demora o aparecimento de qualquer doença venérea, para tratamento imediato, antes que os clientes fossem contaminados. O que nem sempre podia ser evitado, porque algumas dessas moléstias, como a gonorreia, por exemplo, são transmissíveis durante o período de incubação, que se estende por vários dias. Assim, esses cuidados diminuíam mais não eliminavam a propagação de tais doenças, que apresentavam incidência muito elevada.

Os homens da minha geração bem que poderiam pedir à Santa Sé a canonização de sir Alexandre Fleming, pois têm para com ele uma dívida de gratidão irresgatável. Antes da penicilina, o tratamento dessas doenças, segundo depoimento dos mais velhos, era penoso e muitos desmaiavam de dor nos consultórios médicos. Pior ainda, algumas eram de cura difícil e incerta, podendo deixar sequelas terríveis. Não poucos se arruinaram fisicamente.

Quando iniciei minha vida sexual já havia penicilina, mas era um remédio caro e de conservação difícil, pois tinha de ser mantida em geladeira para não perder suas propriedades curativas. Somente na década de 50 seu preço barateou e passou a ser adquirida facilmente em qualquer farmácia. E, só então, as doenças venéreas deixaram de ser os fantasmas que tanto nos perturbavam o sono.

Essas profissionais do sexo sofriam uma forte discriminação, motivo por que viviam confinadas na Zona como num gueto, do qual pouco se afastavam, a não ser para cabarés e certos balneários exclusivos. Quando frequentavam lugares públicos, comportavam-se discretamente e procuravam passar despercebidas, receosas de serem convividas a ser retirar.

Sua presença podia liquidar um estabelecimento, já que senhoras respeitáveis não admitiam dividir o mesmo espaço com raparigas, que era a palavra usualmente empregada para designá-las. É curioso como esse vocábulo, que em bom vernáculo significa apenas o feminino de rapaz, pôde adquirir um sentido tão pejorativo.

Mas, semântica à parte, vale assinalar que essas mulheres, apesar de viverem exclusivamente da profissão, e depois de tão machucadas pela vida, ainda podiam ter, muitas vezes, o comportamento de adolescentes românticas. Quase todas, ou pelo menos uma boa parte delas, tinham os seus xodós, ou seja, os homens por quem morriam de amores. Às vezes, literalmente, porque podiam ir ao suicídio quando abandonadas.


Tive alguns amigos que, embora desfrutassem do privilégio da entrada franca no quarto dos seus xodós, não chegavam propriamente a ser invejados. Ciumentas e exclusivistas, elas armavam cenas desagradáveis e transformavam as vidas dos seus amados num purgatório.

Em compensação, com os clientes comuns o relacionamento era puramente profissional, com pagamento em dinheiro, e à vista. Quando enganadas, tornavam-se ferozes, o que não impedia que o calote, ou xexo, fosse aplicado com relativa frequência. Havia até aqueles useiros e vezeiros nessa prática, apesar dos riscos. Conheço alguns casos dos quais fui praticamente testemunha, porque tiveram como protagonistas amigos meus e me foram narrados horas depois de ocorridos.

Um dos meus companheiros de roda, mais tarde ilustre membro do Ministério Público, era à época um duro, que vivia do magérrimo salário de repórter. Um dia, sem um tostão no bolso, resolveu farrear na pensão da Lola. Chegou muito cedo, antes da abertura do expediente. Ainda assim, foi admitido por uma das mulheres, que o conhecia. Sentou-se no bar, onde já se encontravam cinco ou seis pensionistas.

Uma delas lhe perguntou se pagaria uma dose de whisky, ao que ele assentiu, sendo logo assediado pelas outras, às quais generosamente também atendeu. Logo depois patrocinou uma segunda rodada, mesmo sabendo que seu plano estava prejudicado, porque teria de pagar a conta do bar antes de ir para o quarto. Resolveu, então, bater em retirada.

A pretexto de ir ao mictório, dirigiu-se aos fundos, seguido por uma das mulheres, já desconfiada, desceu a escada, ganhou o saguão, onde escorregou, sujando-se todo, mas ainda assim conseguiu saltar o muro para a casa vizinha. Era outra pensão, em cuja sala irrompeu, em meio a um grande alvoroço das mulheres, saindo pela porta da frente. Na rua, foi perseguido por um guarda até à Praça da Matriz, onde conseguiu despistá-lo. Mas a aventura ainda não havia terminado.

Na fuga ele perdera um dos sapatos, e agora surgia o problema do retorno a casa, pois morava com uma tia, sua mãe adotiva e senhora dos rígidos costumes. Aflito, pediu socorro ao nosso amigo comum José Oliva, o Pítias, que lhe emprestou um par de sapatos brancos. Ao chegar à casa, a brancura dos sapatos chamou atenção, de imediato, obrigando-o a um puxado exercício de imaginação para inventar uma história com um mínimo de verossimilhança.


Esse mesmo personagem não demoraria a se meter em outra enrascada. Em fins dos anos quarenta a Zona foi enriquecida com uma cara nova, que gerou enorme interesse no nosso grupo. Chamava-se Zilpa e morava numa estância que se estendia da Frei José dos Inocentes à Saldanha Marinho.

Morena clara, alta, lábios suculentos, olhos ligeiramente amendoados, revelando a ascendência quíchua ou aymará, lembrava um pouco a deusa Ava Gadner. Segundo versão corrente, fora seduzida por um moço de família libanesa, que em seguida a abandonara, abrindo-lhe o caminho da prostituição, como já fizera com meia dúzia de outras jovens suburbanas. Mas o certo é que o amigo de quem falo, sem dinheiro, como sempre, logo engendrou uma farsa para conquistar a bela Zilpa sem fazer desembolso.

Um dia bateu-lhe à porta e, falando um espanhol de péssima qualidade, apresentou-se como agente do FBI, de nacionalidade colombiana, que procurava um perigoso gangster. E exibiu a fotografia do meu amigo Mário Rocha, mais tarde representante do Itamaraty em Manaus, que somente anos depois tomou conhecimento do episódio.

Daí a conversa enveredou por outros rumos, foi mencionada de passagem uma polpuda quantia em dólares que o nosso amigo estaria prestes a receber e, como era de esperar, Zilpa acabou cedendo. Nesse dia e nos subsequentes. No terceiro dia, como ela reclamasse por dinheiro, deu-lhe por conta um cordão de outo, de pequeno valor, que trazia ao pescoço.

No sexto dia, já impaciente, ela fez uma cobrança mais incisiva, e ele, sorrindo e em bom português, resolveu contar a verdade. Mas a mulher não achou nenhuma graça. Armada de um tamborete, perseguiu-o pelo pequeno quarto, até que ele conseguiu destrancar a portar e fugir, livrando-se de um sufoco que poderia ter-lhe custado muito caro.

Mas Zilpa, ao que parece, tinha uma grande reserva de boa-fé, pois foi enganada novamente por outro companheiro nosso, hoje funcionário aposentado no Basa. Este conseguiu enrolar a morena com a história de uma herança, que estava na iminência de receber. E foi tão persuasivo, que se instalou em seu quarto com mala e tudo, vivendo no paraíso durante uma semana. No sétimo dia, ao perceber que a situação era insustentável, decidiu sair à francesa. 

De manhã bem cedo pegou a mala e se esgueirou sem fazer ruído, mas no meio da passagem da estância foi notado por uma vizinha, que deu o alarme, O jeito foi correr, perseguido pelas mulheres, aos gritos de xexeiro e sob o bombardeio de sapatos, vassoura e outros petardos, dos quais se defendeu como pôde, fazendo a maleta de escudo.


Esse companheiro, incorrigível como o outro, quando ainda servia ao Exército, entrou um dia numa pensão na Lobo d’Almada, igualmente disposto a escapulir sem pagar. Mas se deu mal. A mulher percebeu a tempo a manobra e exigiu pagamento. Sem outra saída, viu-se obrigado a deixar o capote militar como garantia. No dia seguinte, arranjou dinheiro e foi resgatá-lo, a fim de escapar de um inevitável xadrez.

Um terceiro membro do grupo, mais tarde respeitável integrante do Poder Judiciário, certa vez se meteu em apuros por motivo semelhante. Seu alvo foi uma das meninas da Zona, que ganhara fama por ter bezerro, particularidade anatômica raríssima, muito apreciada pelos homens, e que, por isso mesmo, elevava a cotação das mulheres que a possuíam.

Esse amigo procurou-a, tiveram o encontro, num quarto da Frei José dos Inocentes e, antes de efetuado o pagamento, se dirigiram, juntos, para o reservado do bar Americano, que em sua fase decadente era frequentado por prostitutas. Sentaram-se, tomando cerveja quando, a certa altura, sempre com o velho pretexto de ir ao mictório, ele se levantou e empreendeu a fuga.

Perseguido pela mulher, subiu a Eduardo Ribeiro, correndo, debaixo da chuva, no momento em que acabava a sessão do Avenida. Em meio à curiosidade dos passantes, a perseguição continuou até as proximidades do Tribunal, quando a mulher afinal desistiu. Poucos depois o nosso amigo chegava à sua casa, na Praça da Saudade, com a roupa ensopada e o coração aos pulos, de cansaço e de susto.

Poderia mencionar ainda outras passagens, para mostrar os expedientes a que tinha de recorrer a rapaziada para exercer uma atividade que podia sair bastante onerosa. Principalmente quando tínhamos de procurar as mulheres mais cotadas, em cabarés distantes, como o Bar da Panair e o Quitandinha. Somados a cachê da mulher, a despesa do bar, o aluguel do quarto e a corrida de carro, ida e volta, o montante dos gastos podia ser proibitivo para a grande maioria.

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