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quarta-feira, dezembro 13, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (27)


Por Jefferson Peres

Walmiki Ramayana Paula e Souza de Chevalier era o seu nome completo. Como que antevendo a vocação literária do filho, seu pai lhe deu os nomes de célebre poema épico hindu e do seu autor presumível. Não sei por que Ramayana acabou por estudar Medicina. Dizem seus contemporâneos da faculdade que em suas provas orais ele já fazia verdadeiras dissertações. Formado, guardou o diploma e nunca exerceu efetivamente a profissão. Seu mundo era o das letras e da boêmia, como ele próprio confessava.

Tribuno excepcionalmente dotado, era capaz de discorrer durante horas sobre qualquer tema. Quando ele voltou do Rio, após longos anos de ausência, procurei-o, em nome do Diretório Acadêmico, para convidá-lo a pronunciar uma conferência na Faculdade de Direito. Deixado o tema à sua escolha, decidiu na hora: Democracia Libertária.

À noite, depois de ouvir o discurso de saudação, que coube a mim fazer, tomou a palavra e, por mais de uma hora, discorreu sobre os princípios de um novo regime, que preconizava, bem como sobre o movimento político que estaria sendo articulado para a sua implantação. Ao fim, compreendemos que tínhamos assistido apenas a um prodigioso exercício de imaginação. Mas nem por isso nos sentimos frustrados, pois em compensação nos havíamos regalado com uma bela demonstração de oratória.

Ator nato, tinha um grande pendor para os gestos teatrais. Em 1953 liderou uma ruidosa campanha de arrecadação de donativos em favor das vítimas da enchente. Parece-me vê-lo, ainda em plena Eduardo Ribeiro, sentado no para-lama dianteiro de um velho automóvel, com faixa e alto-falante, a implorar o auxílio da população.

Jornalista de combate, tinha uma pena demolidora, que muito incomodava os adversários durante as campanhas eleitorais. Mas não teve sorte em política, jamais conseguindo galgar nenhum posto eletivo. Em grande parte, talvez, devido ao seu pouco empenho. Levava sua candidatura na brincadeira, como quase tudo que fazia. Gostava mesmo era de varar a madrugada num bate-papo com os amigos, sem preocupação com o tempo. Um eterno menino, que ocupava as horas vagas com trotes irreverentes passados nos figurões da cidade.

Displicente, escreveu apenas dois ou três livros, muito menos do que se poderia esperar de seu enorme talento. Aquele garoto brincalhão quer era Ramayana – oculto na máscara de feições orientais – guardava, no entanto, a mágoa de viver, por circunstâncias diversas, longe do Amazonas, que ele amava com um apego telúrico e uma unção quase religiosa.

Por coincidência ou não, dentre os homens que brilhavam em nosso meio literário, além de Álvaro Maia, também ensaísta e ficcionista, apenas um era, antes e acima de tudo, poeta. Chamava-se Américo Antony. Seu valor intelectual era reconhecido por todos, mas muitos lhe torciam o nariz devido à sua excentricidade. A começar pela figura. Magro, recurvo, cabelos compridos, terno amarfanhado e capa eternamente pendurada no braço, fizesse chuva ou sol.

Formado em direito, foi promotor no interior, mas dedicava aos autos apenas as horas que lhe sobravam da ocupação principal, que era a poesia. Conta-se que quando serviu, em determinada comarca, com Octaviano Mello – pai de Pedro e Anísio Mello –, um homem de letras aprisionado pela magistratura, os dois mantinham o fórum fechado e se deixavam ficar, perdidos, em longas conversas sobre literatura.

Dizia-se, também, com foros de verdade, que umas das muitas mulheres com quem viveu, certo dia entrou na sala em que Américo escrevia um poema e pediu-lhe dinheiro para o mercado. O poeta, indignado com a interrupção, gritou: “Miserável! Espantaste-me as Musas!” Consta que a moça deixou a casa no mesmo dia.

Eu próprio testemunhei uma dessas tiradas de Américo. Certa manhã, quase meio-dia, de regresso das aulas, no colégio Dom Bosco, encontrei Américo cercado de amigos, embaixo de um benjamim, na calçada do Leão de Ouro, esquina de Eduardo Ribeiro, com Henrique Martins. No exato momento em que eu cheguei, ele acabava de declamar um dos seus poemas.

A cerca de dois metros de roda, um jornaleiro, de apelido Ferrugem, entusiasmado, bateu palmas. Ao invés de agradecer, Américo, voltando-se para o rapazinho, perguntou: “Você entende de poesia?” Surpreso, o interpelado meneou a cabeça negativamente, e Américo arrematou: “Pois então não se meta, porque sapateiro não toca rabecão!”

Acho que até hoje, se vivo for, Ferrugem continua sem entender de poesia, e muito menos, das razões do poeta. Mas apesar desse comportamento nada convencional, reprovado pelos mais velhos, os moços reconheciam em Américo um grande talento poético e lhe dedicavam o respeito devido ao artista sério que ele sempre foi.

O último dos monstros sagrados a desaparecer foi Ramayana, já nos anos 70, doente e auto-exilado no Rio de Janeiro. Muito antes havia ocorrido o crepúsculo dos deuses com o fim de uma era em que a sociedade, reverente, cultuava seus intelectuais como figuras do Olimpo.

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